quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A China durante a I Guerra Mundial e seu rescaldo

O Diário de Notícias (DN), do passado dia 16 de fevereiro, a páginas 34, na secção Artes, apresenta a recensão crítica do livro China na Grande Guerra, de Luís Cunha, sob as grandes parangonas “China não combateu na Grande Guerra, mas a Flandres está cheia de cemitérios chineses”.
É óbvio que o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em meados de 1914 não chegou ao conhecimento dos 140 mil trabalhadores chineses que, tempos depois, vieram transportados para a Europa com o fim de participarem na produção de munições. Sendo assim, não será de somenos a importância conhecer as circunstâncias da entrada da China na I Grande Guerra.
Vamos tentá-lo com base no conteúdo do aludido artigo e noutras informações adrede colhidas.
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Antes do início formal da guerra, as principais potências europeias já tinham estabelecido alianças militares estratégicas: a Tríplice Aliança (formada pela Alemanha, Itália e Império Austro-Húngaro); e a Tríplice Entente (formada pela Inglaterra, França e Rússia). Ao integrar uma dessas alianças estratégicas, cada país membro comprometia-se a entrar em guerra caso um dos aliados estivesse envolvido nela.
Assim, quando a guerra começou, mercê do arquiduquicídio, de um lado estavam a Inglaterra e a França, a que se associou a Rússia; do outro, a Alemanha e o Império Austro-Húngaro. Porém, a Itália constituiu a exceção, pois, apesar de fazer parte da Tríplice Aliança, permaneceu neutra até maio de 1915, quando “trocou de time”, entrando na guerra ao lado dos países que formavam a Tríplice Entente. O que a fez mudar de posição, ou seja, sair da postura de neutralidade e passar a integrar o bloco contrário, foi a promessa dos seus novos aliados de que receberia o território de regiões fronteiriças da Áustria.
Em 1917, a Inglaterra e a França perderam a Rússia como aliada, mas, em compensação, ganharam outro aliado, os Estados Unidos. Naquele ano, a Rússia passara pela revolução bolchevista, que derrubou a monarquia imperial russa, e um novo governo acabou por assinar, pelo Tratado de Brest-Litovski, uma paz em separado com os alemães.
Os seus antigos aliados entenderam a saída da Rússia como uma traição. Os Estados Unidos, por seu turno, sentiram-se na necessidade de declarar guerra à Alemanha pelo facto de vários dos seus navios terem sido torpedeados por submarinos alemães. O torpedeamento dos navios norte-americanos resultou do propósito alemão de torpedear todos os navios que fossem encontrados em águas inimigas, mesmo que tais navios fossem de países neutros (também foram afundados navios brasileiros) e os Estados Unidos eram os principais fornecedores de matérias-primas para a Inglaterra.  
Um outro país que entrou na guerra foi o Japão com o objetivo se apoderar de colónias alemãs no Oriente: Tsingtao ou Shandong, na China, e as Ilhas Carolinas, Marshall e Marianas, localizadas no Oceano Pacífico. Conseguidos os seus intentos, retirou-se do conflito.
Os chineses, sobre os quais pairava a ameaça de guerra civil, declararam guerra à Alemanha, em agosto de 1917, com o fito de contar com a colaboração das potências coloniais no pós-guerra. Neste sentido, os líderes republicanos, que, até àquele ano, mantinham um estatuto de neutralidade (mas de cooperação com a Tríplice Entente), solicitavam especificamente: que as grandes potências abdicassem das suas esferas de influências na China; que fossem retiradas as tropas estrangeiras; que lhes fossem abolidas a jurisdição consular e os correios postais estrangeiros; e que lhes fossem devolvidas as concessões e territórios arrendados, bem como a restituição das alfândegas.
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O acima referido livro, da autoria daquele investigador do Instituto do Oriente, glosa o papel da China no primeiro conflito de repercussões mundiais e o modo como “o gigante asiático, apesar de estar ao lado da Grã-Bretanha e da França contra as potências” da Europa Central, “foi maltratado na conferência de Versalhes”, em que, a contrario, o império nipónico foi contemplado com todo o tipo de atenções por parte dos vencedores ocidentais.
A falta de mão de obra, devida ao envio de milhões de homens para as frentes de combate, levou a que tanto os ingleses como os franceses procedessem ao recrutamento de trabalhadores chineses, os coolies. Vinham de país aliado, mas não conheciam o terreno para integrarem as forças em combate. Todavia, foram de enorme utilidade no esforço de guerra, mormente no fabrico de munições e na preparação de equipamentos militares e logísticos, nomeadamente a reparação de carros blindados e canhões. E, apesar disso, não deixaram de passar por humilhações indizíveis. Os Estados Unidos viviam sob a síndrome do “perigo amarelo”, pelo que a imigração chinesa era de todo excluída. Assim, estes trabalhadores, depois de forçados a atravessar o Oceano Pacífico, eram encurralados em vagões fechados para cruzarem de comboio o Canadá até à Costa Atlântica e depois encaminhados para a Flandres. Esta forma de racismo persistia na Europa, ainda que menos ostensiva do lado dos franceses.
O investigador em causa, comentando esta postura racista contra quem vinha ajudar os europeus no principal palco dos confrontos bélicos, fossem tropas indianas (ao serviço da metrópole britânica), fossem os imigrados chineses para garantir a mão de obra do serviço de guerra, constata: “Por via da guerra, a população europeia teve um contacto de proximidade com quatro milhões de homens de diversas raças, oriundos de todos os cantos dos impérios coloniais”.
O que poderia constituir um normal encontro de culturas não passou de um afrontoso choque cultural cujos efeitos se fizeram sentir, em especial, sobre a força expedicionária chinesa. Os ingleses, no alinhamento com a tradição imperialista davam-lhes um tratamento rude ou mesmo desumano. Os franceses, mais humanos, propiciavam condições de vida e de trabalho mais aceitáveis e “tratamento mais afável”. Porém, facilmente os cediam aos norte-americanos, que se destacavam nos mais cruéis dos maus tratos sobre os imigrados chineses. Tanto assim foi que o autor, citando o sociólogo Max Weber, verifica que “os Aliados recorriam a bárbaros de todo o tamanho para destruir a Alemanha”. De todos os modos, os 140 mil chineses, que tanto prestavam apoio junto à linha da frente como ficavam na retaguarda nas indústrias úteis à guerra, eram efetivamente maltratados pelos aliados, mas também eram odiados pelos alemães que os viam como inimigos. Todavia, não seria possível a utilização dos carros blindados – “uma tecnologia militar pioneira à época – se não fosse o trabalho, aliás bem elogiado, de reparação e manutenção” da parte da mão de obra dos chineses.
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Finda a guerra com o armistício a 11 de novembro de 1918, foi necessária uma conferência para estabelecer as condições do pós-guerra. A isto vem o Tratado de Versalhes (também conhecido como Tratado de Paris), assinado a 28 de junho de 1919, que dita o fim oficial da I Guerra Mundial ou I Grande Guerra.
A negociação do tratado levou cerca de 6 meses contados a partir do armistício, que pusera fim aos combates propriamente ditos. O ponto principal do tratado estipulava que a Alemanha seria apontada como a responsável pelo início da guerra e, sendo assim, deveria cumprir uma série de reparações destinadas aos integrantes da Tríplice Entente, o nome da coligação adversária da Alemanha e seus aliados. Entre tais reparações, foi estipulada a obrigação de ceder partes do seu território aos países fronteiriços, perda do seu império colonial na África, na Ásia e no Pacífico, a ser dividido entre os vencedores do conflito, bem como a diminuição do exército, a cessão de exploração de recursos económicos de regiões estratégicas do país, além de uma soma absurda de indemnizações a pagar.
Porém, apesar do apoio do Presidente Wilson, dos Estados Unidos, as reivindicações chinesas, para pôr fim ao estatuto semicolonial em que aquele grande país se encontrava, não foram aceites, dado que a Inglaterra, a França e o Japão se negaram a acatá-las.
O povo chinês não perdoou a alegada incompetência dos diplomatas chineses na conferência de paz em Versalhes. E o fracasso chinês provocou enormes manifestações estudantis em Pequim, a 4 de maio de 1919, dirigidas não só contra a dominação estrangeira, mas também contra a impotência do governo nacional – o que levou à renúncia dos ministros filo-nipónicos. E a China não assinou o Tratado de Paz. Todavia, a situação não foi alterada em nada. No entanto, para muitos historiadores da China contemporânea, o “Movimento Quatro de Maio” constitui o marco da marcha no rumo da libertação nacional. A revolta estudantil e a operária subsequente rasgaram o caminho crítico contra o imobilismo social, votando ao declínio os antigos valores, e rumo à adoção de condições teóricas e culturais que ultrapassassem a mediocridade e a paralisia em que se encontrava a nação, além da vexante subordinação às potências estrangeiras.
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Mas voltando ao livro, o trabalho dos chineses na Europa não terminou com o Tratado de Paz. Os chineses continuavam a morrer e a ser sepultados na Flandres, pois lhes cabia a tarefa de limpeza dos campos de batalha, nomeadamente a destruição de munições perdidas não rebentadas e a regularização do terreno das trincheiras. E não houve o cuidado de repatriar os cadáveres.
A China foi pura e simplesmente desprezada na distribuição de dividendos pelo facto de não ter chegado a envolver tropas. Isto sucedeu “apesar do brilhante desempenho de diplomatas como Wellington Koo (então pouco apreciado na China), formado na América e que viria a ter uma carreira brilhante ao serviço da República da China, sendo um dos fundadores da SDN (Sociedade das Nações) e, mais tarde, da ONU (Organização das Nações Unidas). Os líderes europeus vencedores preferiram premiar o esforço nipónico, que se reduziu a pouco mais que a conquista de Shandong e o envio de uma frota para o Mediterrâneo para acolitar a proteção dos navios da Tríplice Entente. Mas, enquanto a China era considerada uma nação fraca (controlável pelos europeus), apesar do derrube da dinastia Qing, o Japão era tratado com temor como país que era preciso apaziguar. No entanto, este país, na II Guerra Mundial, esteve do outro lado, o dos alemães: ocupou a China e invadiu a Ásia, acabando por levar com duas bombas atómicas.
O atual regime chinês não apreciava sobremaneira o papel determinante do papel da China naquele período de redimensionamento do mundo e na construção identitária da China contemporânea. Agora, as autoridades querem, mudando de agulha, recuperar aquela memória histórica nacionalista e valorizar a ajuda que o seu país prestou à Europa.

Não é que eles querem penetrar na Europa para se descongestionarem como país e se afirmarem económica e estrategicamente?

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