Com data de 3 de fevereiro, a
Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) deu a lume um comunicado em que
suscita a reflexão de todos em prol do diálogo, considerando que ele se torna
cada vez mais urgente. O documento daquele organismo da Igreja Católica em
Portugal surge no rescaldo dos recentes ataques terroristas de Paris e da
Nigéria.
A CNJP, sublinhando as repercussões
de tais acontecimentos, reconhece que eles “suscitam em muitos dúvidas sobre a
viabilidade da convivência pacífica e harmoniosa entre pessoas de diferentes
culturas e religiões nas sociedades europeias”. Mais anota que muitos veem como
ameaça “a presença de pessoas de fé islâmica”.
Talvez fosse, a meu ver, mais
justo e isento que os defensores da conhecida, que não comprovada, “tese do
choque de civilizações”, se interrogassem sobre o choque de interesses, os não
assumidos ódios rácicos, as emergentes rivalidades étnicas e algumas mostras de
xenofobia.
Porém, a CNJP, partindo da
verificação de que, “num mundo globalizado e na era das comunicações sem
barreiras”, se afigura ilusório e empobrecedor pensar em sociedades e povos culturalmente
uniformes e isolados, pretende com este contributo reflexivo realçar a sua
convicção de que se torna hoje “ainda mais importante, benéfico e urgente” o
diálogo entre as diferentes culturas e religiões. Vem a Comissão alinhada com o
pensamento papal que recorrentemente apela à cultura do encontro, tal como a
ONU (Organização
das Nações Unidas),
que também tem desenvolvido iniciativas com vista ao diálogo entre culturas e à
cooperação entre as diversas religiões. O próprio ex-Presidente Jorge Sampaio
foi durante alguns anos o representante do secretário-geral da ONU
A Santa Sé, para estas matérias e
similares, dispõe de estruturas específicas como o Pontifício Conselho “Justiça e Paz"”; o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso;
e o Pontifício Conselho para a Cultura.
Ora, a CNJP exprime a sua
convicção de que é o diálogo intercultural e inter-religioso “que mais facilita
o acolhimento dos muçulmanos nas sociedades europeias”, norteado por uma autêntica
“cultura do encontro e da hospitalidade”, sendo, por isso, também ele “o mais
potente antídoto contra o terrorismo de matriz fundamentalista”. Escuda-se a
CNJP na palavra do Papa Francisco a respeito do diálogo inter-religioso na sua
programática exortação apostólica Evangelli
Gaudium (n. 250):
“Uma
atitude na verdade e no amor deve caraterizar o diálogo com os crentes das
religiões não cristãs (…)”, é “uma condição necessária para a paz (..)”; com
ele “aprendemos a aceitar os outros na sua maneira diferente de ser, de pensar
e de se exprimir”.
Cita, a seguir, um apontamento do
recente discurso de Francisco aos participantes num encontro promovido pelo
Pontifício Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos, em que se destaca o valor
da educação para este diálogo: “…o
antídoto mais eficaz contra qualquer forma de violência é a educação à
descoberta e à aceitação da diferença como riqueza e fecundidade”.
Portanto, a primeira atitude há
de ser a da aceitação da diferença. E é através da educação que se preparam as
pessoas para esse reconhecimento e aceitação da diferença enriquecedora.
***
Entretanto, a CNJP faz algumas advertências:
- Não confundir expressões
marginais de fanatismo extremista, que instrumentaliza a religião islâmica em
torno dum projeto ideológico-político, com o sentir da maioria dos muçulmanos;
- Não eliminar do espaço público
todas as manifestações religiosas, relegando-as para a esfera estritamente
privada;
- Não pretender que os muçulmanos
e outros crentes deixem de o ser, reneguem a sua fé, para poderem ser acolhidos
nas sociedades europeias;
- Entender axiologicamente o
sentido da liberdade de expressão;
- Travar a instigação à violência
e à discriminação, bem como o insulto, a provocação gratuita e a ofensa aos
sentimentos religiosos dos outros;
- Não legitimar, como resposta à
ofensa aos sentimentos religiosos, o recurso à violência e a qualquer atentado
contra a vida humana.
***
Também aos verdadeiros muçulmanos
(fiéis
ao Alcorão) – muitos
vivem e trabalham em Portugal – repugna o terrorismo e a instrumentalização da
fé para justificar e legitimar o fanatismo extremista. Importa, aqui, distinguir
“fanatismo” e “fundamentalismo”. No sentido próprio, fundamentalismo será a ideia
e a dinâmica de retorno aos fundamentos ou bases da religião, o regresso às
fontes, a reforma, a refontalização (nos séculos XVI e XVII,
as ordens religiosas que remontavam ao espírito fontal da sua fundação diziam-se
“descalças”, face às congéneres que mão aceitavam essa refontalização, que eram
as “calçadas”) – ao passo
que o aludido fanatismo será a adesão cega a uma vertente da religião que se
considera a única interpretação legítima da religião e que justifica todo e
qualquer meio adotado para a consecução dos objetivos.
Com os muçulmanos genuínos “podem
os cristãos encontrar riquezas comuns”, nas malhas dos princípios do amor a
Deus e ao próximo, e criar laços de fraternidade, tal como o consigna a
declaração Nostra Aetate (n.
5), do Concílio
Vaticano II:
“A
Igreja olha (…) com estima para os Muçulmanos, que adoram o Deus único, vivo e
subsistente, misericordioso e omnipotente (…)”; “Embora ao longo dos séculos
não poucas discórdias e inimizades tenham surgido entre Cristãos e Muçulmanos,
o sagrado Concílio exorta todos para que, esquecendo o passado, pratiquem
sinceramente a mútua compreensão, defendam e promovam, em comum, a justiça
social, os bens morais, a paz e a liberdade para todos os homens”.
Nestes termos, a CNJP declara
inequivocamente que “o conflito de civilizações do passado não tem, pois, que
reproduzir-se no futuro”.
Depois, não constitui qualquer solução,
para evitar o choque de culturas, a eliminação do espaço público de todas as
manifestações religiosas, relegando-as para a esfera estritamente privada.
Dado que muitas pessoas encontram
nas religiões “um sentido para as suas vidas, a força para enfrentar as
dificuldades, o cimento da harmonia familiar e comunitária”, não se pode
pretender que “os muçulmanos e outros crentes deixem de o ser, reneguem a sua
fé, para poderem ser acolhidos nas sociedades europeias”. Uma tal pretensão –
explicita a CNJP – favoreceria o extremismo fundamentalista, “que rejeita esse
acolhimento”. A esse respeito, o Papa Francisco, no seu discurso ao Parlamento
Europeu, associou esse extremismo ao “grande vazio de ideais a que assistimos
no chamado Ocidente”, citando uma afirmação de Bento XVI, seu imediato
predecessor: “o que gera a violência não é a glorificação de Deus, mas o seu
esquecimento”.
Sobre a liberdade de expressão,
que “é um valor precioso das sociedades livres e democráticas”, é preciso
reconhecer os seus limites, decorrentes da sua própria índole, já que não é
património exclusivo deste ou daquele indivíduo, mas património comum, de que
todos e cada um se devem e podem apropriar na justa medida. Sobre este
inestimável valor da condição humana, afirmou Bento XVI na sua viagem ao
Líbano:
“A
liberdade humana é sempre uma liberdade compartilhada, que pode crescer apenas
na partilha, na solidariedade, no viver juntos, com determinadas regras”.
Ora, aplicando as exigências e
regras da liberdade de expressão, parece oportuno deixar claro que “a
convivência e o diálogo entre pessoas de diferentes culturas e religiões supõem
a liberdade de debate de ideias e de crítica”. Porém, “já extravasam desse
âmbito a instigação à violência e à discriminação, o insulto, a provocação
gratuita e a ofensa aos sentimentos religiosos dos outros”, sendo verdade que “há
até quem se sinta mais gravemente ferido com uma ofensa a esses sentimentos do
que com uma ofensa física ou verbal à sua pessoa”.
Todavia, tendo em conta que “a
vida humana tem sempre um valor supremo”, é preciso declarar, sem margem para
dúvidas, que “nunca a ofensa aos sentimentos religiosos pode justificar o
recurso à violência, e nem sequer atenua a gravidade de atentados contra a vida”.
***
Por outro lado, a CNJP entende
que, a par do diálogo entre culturas e religiões (e
tão urgente como ele),
deve cuidar-se da remoção de factores que conduzem à pobreza e exclusão social.
Isto, por duas razões de peso: uma, pela positiva, a promoção de uma cultura do
encontro e da hospitalidade supõe a criação de condições materiais de vida
conformes à dignidade humana; e outra, pela negativa, o desespero de quem “não
tem nada a perder”, muitas vezes, facilita o recrutamento para organizações
terroristas.
E, em paralelo com a liberdade de
expressão, que é um valor fundamental, coexiste um outro valor fundamental – a liberdade
religiosa. Neste pressuposto, o diálogo entre culturas e religiões “não pode
levar a esquecer as violações da liberdade religiosa e perseguições de que, em
muitos países, são vítimas crentes de várias religiões e que atualmente atingem
em grande número cristãos de várias denominações”. A este respeito, a CNJP assegura
que “também a maioria dos muçulmanos não se identifica com essas perseguições,
mesmo quando elas se desencadeiam em nome da fé islâmica”. Sendo assim, importa
que “se ouça com mais vigor”, como inestimável contributo para a diminuição
dessas perseguições, “a voz dessa maioria muçulmana”.
Finalmente e em suma, a Comissão
Nacional Justiça e Paz vem reiterar a certeza de que “o diálogo entre
diferentes culturas e religiões é hoje mais importante ainda, como alternativa
ao choque de civilizações e antídoto contra o terrorismo, e de que esse diálogo
supõe o combate à pobreza e exclusão social, a rejeição da violência, a
liberdade do debate de ideias e o respeito pelos sentimentos religiosos dos
outros”.
***
Fica assim exposta uma clara
posição contrastante, mas construtiva, de um organismo eclesial e social face
quer àquela onda do que afirmam “Je suis
Charlie” quer à daqueles que declaram “Je
ne suis pas Charlie”. Trata-se, pois, de uma intervenção cívica com foros
de inspiração de destemida postura política em prol da lucidez e da coexistência
pacífica e cooperativa, em prol do bem comum.
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