sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Choque de civilizações ou encontro de culturas?

Com data de 3 de fevereiro, a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) deu a lume um comunicado em que suscita a reflexão de todos em prol do diálogo, considerando que ele se torna cada vez mais urgente. O documento daquele organismo da Igreja Católica em Portugal surge no rescaldo dos recentes ataques terroristas de Paris e da Nigéria.
A CNJP, sublinhando as repercussões de tais acontecimentos, reconhece que eles “suscitam em muitos dúvidas sobre a viabilidade da convivência pacífica e harmoniosa entre pessoas de diferentes culturas e religiões nas sociedades europeias”. Mais anota que muitos veem como ameaça “a presença de pessoas de fé islâmica”.
Talvez fosse, a meu ver, mais justo e isento que os defensores da conhecida, que não comprovada, “tese do choque de civilizações”, se interrogassem sobre o choque de interesses, os não assumidos ódios rácicos, as emergentes rivalidades étnicas e algumas mostras de xenofobia.
Porém, a CNJP, partindo da verificação de que, “num mundo globalizado e na era das comunicações sem barreiras”, se afigura ilusório e empobrecedor pensar em sociedades e povos culturalmente uniformes e isolados, pretende com este contributo reflexivo realçar a sua convicção de que se torna hoje “ainda mais importante, benéfico e urgente” o diálogo entre as diferentes culturas e religiões. Vem a Comissão alinhada com o pensamento papal que recorrentemente apela à cultura do encontro, tal como a ONU (Organização das Nações Unidas), que também tem desenvolvido iniciativas com vista ao diálogo entre culturas e à cooperação entre as diversas religiões. O próprio ex-Presidente Jorge Sampaio foi durante alguns anos o representante do secretário-geral da ONU
A Santa Sé, para estas matérias e similares, dispõe de estruturas específicas como o Pontifício Conselho “Justiça e Paz"”; o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso; e o Pontifício Conselho para a Cultura.
Ora, a CNJP exprime a sua convicção de que é o diálogo intercultural e inter-religioso “que mais facilita o acolhimento dos muçulmanos nas sociedades europeias”, norteado por uma autêntica “cultura do encontro e da hospitalidade”, sendo, por isso, também ele “o mais potente antídoto contra o terrorismo de matriz fundamentalista”. Escuda-se a CNJP na palavra do Papa Francisco a respeito do diálogo inter-religioso na sua programática exortação apostólica Evangelli Gaudium (n. 250):
“Uma atitude na verdade e no amor deve caraterizar o diálogo com os crentes das religiões não cristãs (…)”, é “uma condição necessária para a paz (..)”; com ele “aprendemos a aceitar os outros na sua maneira diferente de ser, de pensar e de se exprimir”.
Cita, a seguir, um apontamento do recente discurso de Francisco aos participantes num encontro promovido pelo Pontifício Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos, em que se destaca o valor da educação para este diálogo: “…o antídoto mais eficaz contra qualquer forma de violência é a educação à descoberta e à aceitação da diferença como riqueza e fecundidade”.
Portanto, a primeira atitude há de ser a da aceitação da diferença. E é através da educação que se preparam as pessoas para esse reconhecimento e aceitação da diferença enriquecedora.
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Entretanto, a CNJP faz algumas advertências:
- Não confundir expressões marginais de fanatismo extremista, que instrumentaliza a religião islâmica em torno dum projeto ideológico-político, com o sentir da maioria dos muçulmanos;
- Não eliminar do espaço público todas as manifestações religiosas, relegando-as para a esfera estritamente privada;
- Não pretender que os muçulmanos e outros crentes deixem de o ser, reneguem a sua fé, para poderem ser acolhidos nas sociedades europeias;
- Entender axiologicamente o sentido da liberdade de expressão;
- Travar a instigação à violência e à discriminação, bem como o insulto, a provocação gratuita e a ofensa aos sentimentos religiosos dos outros;
- Não legitimar, como resposta à ofensa aos sentimentos religiosos, o recurso à violência e a qualquer atentado contra a vida humana.
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Também aos verdadeiros muçulmanos (fiéis ao Alcorão) – muitos vivem e trabalham em Portugal – repugna o terrorismo e a instrumentalização da fé para justificar e legitimar o fanatismo extremista. Importa, aqui, distinguir “fanatismo” e “fundamentalismo”. No sentido próprio, fundamentalismo será a ideia e a dinâmica de retorno aos fundamentos ou bases da religião, o regresso às fontes, a reforma, a refontalização (nos séculos XVI e XVII, as ordens religiosas que remontavam ao espírito fontal da sua fundação diziam-se “descalças”, face às congéneres que mão aceitavam essa refontalização, que eram as “calçadas”) – ao passo que o aludido fanatismo será a adesão cega a uma vertente da religião que se considera a única interpretação legítima da religião e que justifica todo e qualquer meio adotado para a consecução dos objetivos.
Com os muçulmanos genuínos “podem os cristãos encontrar riquezas comuns”, nas malhas dos princípios do amor a Deus e ao próximo, e criar laços de fraternidade, tal como o consigna a declaração Nostra Aetate (n. 5), do Concílio Vaticano II:
“A Igreja olha (…) com estima para os Muçulmanos, que adoram o Deus único, vivo e subsistente, misericordioso e omnipotente (…)”; “Embora ao longo dos séculos não poucas discórdias e inimizades tenham surgido entre Cristãos e Muçulmanos, o sagrado Concílio exorta todos para que, esquecendo o passado, pratiquem sinceramente a mútua compreensão, defendam e promovam, em comum, a justiça social, os bens morais, a paz e a liberdade para todos os homens”.
Nestes termos, a CNJP declara inequivocamente que “o conflito de civilizações do passado não tem, pois, que reproduzir-se no futuro”.
Depois, não constitui qualquer solução, para evitar o choque de culturas, a eliminação do espaço público de todas as manifestações religiosas, relegando-as para a esfera estritamente privada.
Dado que muitas pessoas encontram nas religiões “um sentido para as suas vidas, a força para enfrentar as dificuldades, o cimento da harmonia familiar e comunitária”, não se pode pretender que “os muçulmanos e outros crentes deixem de o ser, reneguem a sua fé, para poderem ser acolhidos nas sociedades europeias”. Uma tal pretensão – explicita a CNJP – favoreceria o extremismo fundamentalista, “que rejeita esse acolhimento”. A esse respeito, o Papa Francisco, no seu discurso ao Parlamento Europeu, associou esse extremismo ao “grande vazio de ideais a que assistimos no chamado Ocidente”, citando uma afirmação de Bento XVI, seu imediato predecessor: “o que gera a violência não é a glorificação de Deus, mas o seu esquecimento”.
Sobre a liberdade de expressão, que “é um valor precioso das sociedades livres e democráticas”, é preciso reconhecer os seus limites, decorrentes da sua própria índole, já que não é património exclusivo deste ou daquele indivíduo, mas património comum, de que todos e cada um se devem e podem apropriar na justa medida. Sobre este inestimável valor da condição humana, afirmou Bento XVI na sua viagem ao Líbano:
“A liberdade humana é sempre uma liberdade compartilhada, que pode crescer apenas na partilha, na solidariedade, no viver juntos, com determinadas regras”.
Ora, aplicando as exigências e regras da liberdade de expressão, parece oportuno deixar claro que “a convivência e o diálogo entre pessoas de diferentes culturas e religiões supõem a liberdade de debate de ideias e de crítica”. Porém, “já extravasam desse âmbito a instigação à violência e à discriminação, o insulto, a provocação gratuita e a ofensa aos sentimentos religiosos dos outros”, sendo verdade que “há até quem se sinta mais gravemente ferido com uma ofensa a esses sentimentos do que com uma ofensa física ou verbal à sua pessoa”.
Todavia, tendo em conta que “a vida humana tem sempre um valor supremo”, é preciso declarar, sem margem para dúvidas, que “nunca a ofensa aos sentimentos religiosos pode justificar o recurso à violência, e nem sequer atenua a gravidade de atentados contra a vida”.
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Por outro lado, a CNJP entende que, a par do diálogo entre culturas e religiões (e tão urgente como ele), deve cuidar-se da remoção de factores que conduzem à pobreza e exclusão social. Isto, por duas razões de peso: uma, pela positiva, a promoção de uma cultura do encontro e da hospitalidade supõe a criação de condições materiais de vida conformes à dignidade humana; e outra, pela negativa, o desespero de quem “não tem nada a perder”, muitas vezes, facilita o recrutamento para organizações terroristas.
E, em paralelo com a liberdade de expressão, que é um valor fundamental, coexiste um outro valor fundamental – a liberdade religiosa. Neste pressuposto, o diálogo entre culturas e religiões “não pode levar a esquecer as violações da liberdade religiosa e perseguições de que, em muitos países, são vítimas crentes de várias religiões e que atualmente atingem em grande número cristãos de várias denominações”. A este respeito, a CNJP assegura que “também a maioria dos muçulmanos não se identifica com essas perseguições, mesmo quando elas se desencadeiam em nome da fé islâmica”. Sendo assim, importa que “se ouça com mais vigor”, como inestimável contributo para a diminuição dessas perseguições, “a voz dessa maioria muçulmana”.
Finalmente e em suma, a Comissão Nacional Justiça e Paz vem reiterar a certeza de que “o diálogo entre diferentes culturas e religiões é hoje mais importante ainda, como alternativa ao choque de civilizações e antídoto contra o terrorismo, e de que esse diálogo supõe o combate à pobreza e exclusão social, a rejeição da violência, a liberdade do debate de ideias e o respeito pelos sentimentos religiosos dos outros”.
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Fica assim exposta uma clara posição contrastante, mas construtiva, de um organismo eclesial e social face quer àquela onda do que afirmam “Je suis Charlie” quer à daqueles que declaram “Je ne suis pas Charlie”. Trata-se, pois, de uma intervenção cívica com foros de inspiração de destemida postura política em prol da lucidez e da coexistência pacífica e cooperativa, em prol do bem comum.

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