O Jornal de Negócios, de 13 de fevereiro,
publica uma entrevista do Dr. António Gentil Martins em que o ilustre médico de
84 anos, dando conta da sua luta contra o Serviço Nacional de Saúde, no quadro
da evolução do país, opina que “este SNS foi um feito histórico irresponsável”.
Aquele
cirurgião pediátrico e oncológico, que, em 1978 separou as primeiras gémeas
siamesas que sobreviveram em Portugal, foi bastonário da Ordem dos Médicos (OM) e perfilha ideias totalmente em oposição às do atual
bastonário, de que dei conta em reflexão há uns tempos.
Em 20 de
abril de 2012, Gentil Martins dizia ao jornal I que a solução para o beco sem saída por que passa o SNS desde
1979, consiste em retomar uma ideia de há uns 30 anos: seguro nacional de saúde
e liberdade de escolha. Recorda que esta ideia integrou um projeto
de serviço nacional de saúde que constava dum programa de governo – projeto que
acabou por ser rejeitado.
Especificando
a sua posição, defende “um seguro nacional de saúde obrigatório” que permita “continuar
a ter saúde gratuita no ato da prestação, sem pagar mais do que se paga hoje,
com hipótese de escolher ir ao público, privado ou social, em função da
qualidade e resultados”. E vaticinou: “Mesmo que o SNS se aguente mais uns tempos,
acabará por rebentar”. Mas não deixa de insistir na validade do seu contributo
pelo regresso à solução preconizada pelo modelo que apresentou enquanto bastonário
da Ordem dos Médicos, no final dos anos 1970. O “livro” continua na mala e vai
sendo entregue a quem se interesse. E fê-lo chegar ao secretário de Estado
Adjunto e da Saúde Leal da Costa.
Passarei a
respigar o essencial de suas ideias sobre o sistema de saúde, bem como das de A.
Arnaut (seu
antagonista), criador
político do SNS, tecendo algumas considerações, no final.
***
Não obstante, em 2012, dizia que estavam a melhorar
muitas coisas, mas longe do que precisamos e sem se perceber que resultados se
pretendem atingir. Estranhava que as pessoas continuassem “a referir-se ao
Serviço Nacional de Saúde, o que é um disparate total e uma falsidade”,
declarando que “o que temos é um sistema nacional de saúde onde devem interagir
os serviços privados, os serviços sociais e uma parte do Estado que é o SNS”. Tendo
de se “garantir um sistema nacional de saúde que dê cobertura e qualidade a
toda a gente”, do seu ponto de vista, não tem de ser o Estado a garantir essa
universalidade e qualidade, nem isso é possível. Questionado sobre os suportes do
seu ponto de vista, explica:
O sistema está errado. Nós somos o país da UE onde a
nível individual mais se paga pela saúde, cerca de 30%, quando a média europeia
é de 20%. Andamos a enganar-nos uns aos outros quando falamos de SNS universal
e tendencialmente gratuito. Sem liberdade de escolha, de nada serve. Temos de
poder escolher onde somos tratados com base em indicadores de qualidade e
competência. Hoje, o que temos é um copagamento, e cada vez vai ser pior.
Nenhum político tem coragem de falar sobre limitações.
Mais. Tem a convicção de que o SNS não é sustentável. Concede
que pode, evitando o desperdício, aguentar-se provisoriamente a situação atual por
mais algum tempo. Mas, a prazo, rebentará por causa do envelhecimento e dos
avanços da tecnologia.
Erradamente as pessoas se terão convencido de que tudo era de
graça e nada gastavam, sendo essencial que as pessoas saibam quanto custa o que
lhes é feito em termos de saúde. Admite que ir a um hospital do Estado até pode
ficar mais caro a todos do que a instituição ou consultório privados. Não pode
aceitar-se é níveis diferentes de qualidade e competência. Opina que tanto faz
que seja o público, o privado ou o social a prestar os cuidados de saúde. A pessoa
deve é ter direito a ir aonde se sentir melhor e de ser bem atendida e tratada onde
quer que vá, pagando o mesmo. Mas, para isso, há que estruturar-se uma
contratualização dos cuidados.
Conhecem-se três grandes e diferentes sistemas de saúde
possíveis: o privado, livre, mas socialmente injusto; o estatal, onde a pessoa
tem de ir ao médico que lhe impõem; e o sistema convencionado, que assegura
também completa cobertura universal, dando os mesmos cuidados possíveis, mas
permitindo liberdade de escolha do profissional ou da instituição. Não é isto
que existe em Portugal, pois temos um sistema falso, hipócrita, ilusório e que
vive da ilusão. Tem vantagens que não se podem esquecer, mas que poderiam ser
maiores.
Pensa o ilustre médico octogenário que é de implementar
o projeto que propusera há mais de 30 anos, semelhante ao que se pratica na
Holanda: um seguro nacional de saúde que financie as contratualizações de
serviços tanto no Estado como no privado ou social. Este seguro obrigatório
seria pago em função dos rendimentos de cada um. Se uma pessoa pode e quer
investir mais na sua saúde e ter direito a melhores condições e tecnologias
mais caras, poderá pagar um prémio maior, complementar. Com as receitas dos
impostos será possível pagar o prémio do seguro a quem não tenha essa
possibilidade, garantindo assim a universalidade. As exceções de carência nunca
poderiam comportar mais de metade da população isenta de taxas, que hoje parecem
mais um cofinanciamento. Reconhece a utilidade das taxas para moderar, mas
que não podem ser um cofinanciamento. E aponta outra vantagem do seguro: “a
pessoa paga quando está saudável e não tem de gastar todos os seus recursos
quando está doente, que é quando é mais difícil”.
Ademais, admite que se fazem consultas sem sentido, o
que aumenta os gastos. Põe o enfoque na necessidade de uma relação de empatia
entre a pessoa e o médico, o que nem sempre acontece na forma como os serviços
do Estado funcionam. Se qualquer ato médico (por exemplo, uma consulta) custasse o mesmo no Estado, no privado ou no social,
as pessoas poderiam ir aonde queriam, sem penalização financeira. A liberdade
de escolha traria a empatia e a melhoria da relação de confiança médico-doente.
Por outro lado, sendo remunerado conforme os doentes o preferissem, “o
profissional procuraria sempre ser mais amável, mais humano e mais competente,
para melhor sobreviver”, sendo compensado pelo seu desempenho.
Quanto aos seguros privados atuais, acha que não
constituem solução, pois, “além de não cobrirem as malformações congénitas
ou as doenças graves e crónicas, são de renovação anual”. E explica algumas
limitações da prestação securitária atual:
Se custou muito num ano, no ano seguinte não renovam o
contrato. Por outro lado, se a pessoa atinge o “teto financeiro” contratado por
ter uma doença grave, acaba por não ficar coberto no excedente de eventuais
despesas – e tem de recorrer ao SNS, que é pago por todos nós. Isto não é
socialmente correto. Os seguros privados são feitos para ganhar dinheiro, o que
é legítimo, desde que com moderação.
Nem todos os médicos seriam obrigados a aderir a este modelo de cuidados contratualizados pela
via do seguro nacional, com preços regulados. Nos países onde isto se
pratica (França, Holanda, Bélgica, Alemanha), mais de
90% aderem. Porém, adiantou:
Quem não adere continua a exercer no privado, por sua
conta. A maior parte aceita o contrato. Quem pratica os cuidados recebe do
fundo segurador nacional. Quem for melhor, tiver mais qualidade e melhores
resultados, mantém-se. Quem não tiver qualidade desaparece – seja público,
privado ou social.
Assume que é uma proposta contra o atual SNS e que agora “têm
vindo a fazer progressivamente muito do que tínhamos proposto há mais de 30
anos”, já que “dantes, na clínica geral, o ordenado era igual”, mas “agora já
se concebem incentivos: se trabalhar mais, ganha mais, caso dos médicos de
família nas Unidades de Saúde Familiar”. Ora, o modelo do seguro nacional até
nisso seria bom: “se o sistema beneficiar quem trabalha mais e melhor, são
precisos menos médicos”. E sentencia:
Precisamos de mais médicos quando temos burocratas que
querem fazer o menos possível. O que propomos é que a pessoa vá aonde quiser e
o prestador ou tem qualidade ou “está tramado”. Outra coisa para a qual
tínhamos alertado, e de que agora se fala mais, é o quão perigoso é o excesso
de médicos para manter a qualidade da medicina. Esteve em Portugal uma comissão
internacional que disse que cinco cursos de Medicina eram perfeitamente
suficientes para o país e com um acesso inferior ao que está a ser feito agora.
Daqui a uns anos é absolutamente impossível especializar todos os
profissionais. Ter faculdades de Medicina a mais é um crime que pode baixar a
qualidade da medicina...
Sobre o acesso aos cursos de Medicina, dizia que “a primeira
coisa importante para entrar em Medicina era a vocação e não os 18, 19 ou 20 de
média”. Preconizava:
Que, para entrar, fosse obrigatório ter feito
voluntariado social e demonstrar que se estava disposto a sacrificar-se pelos
outros. Depois, os candidatos deveriam ter uma média razoável (14 ou 15 valores
no secundário). Finalmente, haveria um concurso, com matéria conhecida, com x
vagas a determinar de acordo com as necessidades previsíveis para o país,
entrando então os melhores.
Verifica que, neste aspeto, nada mudou, as vagas
aumentaram e continua-se a entrar com média de 18,5. Nos primeiros anos, muitos
alunos desistem porque não se adaptam, o que é desperdício de tempo e dinheiro.
Raras vezes reprovam nos exames do fim do internato, mesmo que não tenham a
competência devida, tornando-se preponderante o fator social: não merecem o
desemprego. Nem todos os médicos podem ser especialistas ao fim dos seus anos
de internato oficial (quatro a seis anos, conforme as especialidades).
Defende que o título de especialista deveria ser dado
pela OM, após provas exigentes, mas que não interfeririam com o direito ao
trabalho nos hospitais onde até então haviam estagiado.
***
“Tem de se perceber”, segundo o que sentencia, “de uma
vez para sempre que o Serviço Nacional de Saúde não é o sistema nacional de
saúde que a Constituição consagra”. É certo que “um sistema universal e de
qualidade exige liberdade de escolha, mas nunca poderá ser tendencialmente
gratuito senão no ato da prestação”. Entende que “as pessoas terão acesso ao
que o Estado pode dar”, mas certamente não poderá dar tudo a toda a gente. “Os
médicos não deixarão de fazer pelos doentes tudo o que puderem, mas são os
políticos, como representantes das pessoas, que terão de decidir sobre os
recursos disponíveis.
Justifica a criação do SNS,
com a configuração atual, por alegadamente ser um imperativo constitucional, como dizia o Dr. António Arnaut, “que
aliás dizia outra coisa muito curiosa: quando lhe perguntaram quanto ia custar,
disse que não fazia ideia, não tinha feito contas, porque era um imperativo
constitucional. E por isso deu o resultado que deu”.
***
Por seu
turno, António Arnaut, o “pai” do
SNS, homenageado a 15 de setembro de 2014, Dia do Serviço Nacional de Saúde, fez declarações ao jornal As Beiras, a 7 de outubro do mesmo ano. Segundo
ele, o SNS foi criado com o FMI em Portugal e operou milagres. Analisando
a evolução do setor, inquieta-se com
a realidade atual.
Criou o Serviço Nacional de Saúde (SNS) quando foi
ministro dos Assuntos Sociais, em 1978.
Fadado para Ministro da Justiça para “acabar com a
corrupção na Polícia Judiciária”, ainda esboçou o programa do ministério,
delineando as bases de um serviço nacional de justiça, em que previa a criação da
carreira de defensor público, paralela à do Ministério Público. Existindo já a
carreira de acusador público, que é o Ministério Público, achava que os pobres
tinham direito também a justiça igual à dos ricos – solução recomendada recentemente
pela consultora da ONU e que a Ministra da Justiça rejeita.
Mas Arnaut tomou posse como ministro dos Assuntos
Sociais, Saúde e a Segurança Social, porque Mário Soares não tinha conseguido quem
aceitasse essa pasta, pasta muito difícil, na altura em que havia muitos
problemas entre médicos (havia ainda os anos policlínicos) e entre enfermeiros. Ora, a condição que pôs foi a
de criar o Serviço Nacional de Saúde (SNS), para o que, a sugestão de Soares de
escolher um bom secretário de Estado da Saúde, a escolha recaiu no Dr. Mário
Mendes, médico de Coimbra (cujo convite foi preparado por Miguel Torga), que lhe deu uma colaboração extraordinária.
Assim, se Arnaut foi o impulsionador político do SNS,
até contra o próprio partido, a parte técnica foi feita por Mário Mendes e por
Gonçalves Ferreira, um homem que sabia muito de saúde pública e tinha sido
secretário de Estado no governo de Marcelo Caetano.
O II Governo Constitucional tomou posse a 23 de
janeiro de 1978 e, ao fim de um mês, o anteprojeto do SNS estava pronto. Foi apresentado
publicamente em princípios de abril e “foi aí que o CDS, que estava com o PS no
Governo, e as forças da direita, viram que era a sério”. A criação do SNS era,
para o Ministro, “um ponto de honra, não recuava um milímetro, não retirava uma
vírgula”, porque “o SNS foi prometido solenemente, em nome do Governo, em nome
do partido e em meu nome pessoal” – assegura.
***
O Governo caiu ainda em agosto desse ano, mas antes o
Ministro proferiu um despacho a criar o SNS, datado de 20 de julho de 78 e
publicado no Diário da República de 29 de julho de 78. Depois, na Assembleia da
República, como deputado, apresentou o anteprojeto do SNS como projeto de lei
do PS, que, na votação final global, obteve os votos favoráveis do PS, do PCP e
de um deputado da UDP, e teve os votos contra do PSD e do CDS. A Lei n.º 56/79,
que cria o SNS, seria publicada a 15 de setembro de 1979.
A maior parte dos partidos estava contra a criação do
SNS (e mesmo
algumas pessoas do PS), por
alegadas dificuldades orçamentais e por não acreditarem na sua sustentabilidade
financeira. A isto, o deputado respondia que, “se os políticos fossem doentes
das caixas, em vez de serem tratados em clínicas privadas, defenderiam o SNS”.
E sustenta que “ainda hoje isso acontece. A maior parte dos políticos não são
doentes do SNS e, às vezes, ignoram os benefícios alcançados”. Além de algumas incompreensões
da direção do partido socialista, Arnaut teve de enfrentar “os grupos de
pressão, o setor privado, que era insignificante em relação à sua dimensão
atual, a austeridade agressiva da direita de interesses e da direita
parlamentar e a oposição do bastonário da OM, Gentil Martins”, de quem depois
se tornou amigo.
***
Revisitando o passado, reconhece que o país estava à
beira da bancarrota: 1978 foi o ano da 1.ª intervenção do FMI. “Mas o SNS, com
todas as suas dificuldades e insuficiências, que teve e tem (agora com o
agravamento de algumas, operou milagres em dois planos). No plano dos resultados, os indicadores de saúde mostram
um salto qualitativo enorme. Basta ver a esperança média de vida, que passou
dos 75 para os 80 anos, ou a mortalidade infantil, que estava próxima dos 40
por mil e baixou para três por mil. Passámos da cauda dos indicadores
sanitários para os primeiros lugares do
ranking mundial em saúde. E, para lá do benefício nos indicadores de saúde,
o SNS representou uma enorme valia no respeito da dignidade das pessoas, na
segurança na doença, no bem-estar, na coesão social. Mas operou ainda, segundo
o ex-ministro e ex-deputado, um milagre sociopolítico, ou seja, todos (?) se
converteram ao SNS. A direita que votou contra em 78 apoia hoje o SNS. E parece
fazê-lo com sinceridade, face aos resultados. Quem poderá ser contra um bom serviço
público de saúde, que trate de forma igual, digna, todos os cidadãos, sem
discriminação? – questiona.
***
Por mim, julgo dever tecer as
seguintes considerações, à laia de comentário:
- Dadas as resistências que
Arnaut teve, mesmo do próprio PS, compreende-se a degradação a que os políticos
deixaram chegar o SNS, por causa da ambição dos lóbis industriais e comerciais,
da troika, da inabilidade negocial dos sucessivos governos, que tratam melhor
os serviços privados (a que os políticos recorrem) que o SNS, ou da comodidade dos
governantes.
- Não parece que a amizade de
Gentil Martins e Arnaut tenham convertido aquele ao SNS, já que Martins não acredita
na sustentabilidade do SNS, a prazo; e a direita não aceita o SNS com
sinceridade, mas porque não o vence (no âmbito do politicamente
correto), lida com
ele.
- A solução de Arnaut e a de
Martins não são de matrizes diferentes no essencial. O que difere a fonte
principal de financiamento; no primeiro caso, o orçamento do Estado; no
segundo, um seguro nacional de saúde, que logicamente seria administrado pelo
Estado, como a ADSE.
- Nunca Arnaut pôs em causa a
liberdade de escolha. Se bem me lembro, o seu escopo prioritário era colocar
médicos em todo o país. Aliás a escolha dos seus colaboradores afiança a validade
do sistema.
- Quanto ao seguro nacional de
saúde, há que dizer que as seguradoras, quer no tempo da estatização, quer no
atual de regime privado, sempre se cobraram bem, serviram e servem mal, eram e
são enganadas, desresponsabilizaram-se e desresponsabilizam-se. A ADSE, que
alguns consideram um seguro de saúde para trabalhadores públicos, tem feito imensos
cortes, serve pouco bem e tem sido bem enganada, segundo indicadores vertidos para
a Comunicação Social.
- Penso boas as considerações de Gentil
Martins sobre o acesso aos cursos de Medicina e a crítica ao excesso de especialização,
mas não o acompanho na exiguidade numérica das escolas de formação médica. Cinco,
sete ou nove escolas de Medicina não são mesmo suficientes!
Precisamos mais de política que
tome a peito o bem público e os legítimos interesses dos cidadãos e de muito menos
mercantilismo em saúde!
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