O cardeal Oscar Andrés Cardenal
Rodríguez Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa e Presidente da Caritas
Internationalis esteve em Portugal no passado dia 13 dezembro de 2014 e
proferiu uma conferência em torno do tema Dimensão
Social da Evangelização no Mundo de Hoje. Considerando que falava em
contexto “Cáritas”, cujo trabalho quis enaltecer, começou por se referir ao
princípio pragmático da Evanglização: “o Evangelho confirma-se com obras”. E
este é um dos dados que urge evidenciar para garantir e alimentar “o fogo da
nossa esperança nestes tempos de desencanto, desenraizamento e abandono”. Segue-se
uma síntese do conteúdo exposto pelo insigne conferencista, com a limitação e
especificidade do nosso olhar.
***
Hoje, a evangelização assenta numa
Pastoral Social de base missionária,
que, em vez de viver obcecada pela transmissão da doutrina, se centre no
anúncio do essencial ao homem, que inclui a dimensão social como inerente à sua
condição de pessoa necessitada de evangelização. Para a evangelização ser
“plena”, tem de ser “integral”. E para isso deve iluminar a dimensão “social” com
a caridade, justiça e verdade. Assim, o social na evangelização não é opcional,
já que se torna elemento constitutivo da ação evangelizadora.
Na esteira das afirmações papais,
a mensagem evangélica, graças à velocidade da comunicação e sua aleatória seleção,
corre o risco de aparecer mutilada e reduzida a aspetos secundários, que per se não manifestam o fulcro da boa
nova. Já passou o tempo em que, depois de se falar da missão como
evangelização, conversão e anúncio do kérigma, se podia considerar na práxis pastoral “o social” como derivado da missão, e que, de certo modo, se podia separar
o “espiritual” do “social”, sem qualquer dialética e sem razão ou postulado
sério que o explicasse. Hoje, é inaceitável evangelizar sem alterar o contexto
– sem tocar a realidade pessoal, laboral, familiar, económica, securitária, da
saúde e do bem-estar. Por isso, na exortação apostólica EG-Evangelii Gaudium (34-39), Francisco equaciona com
precisão teológica a temática da hierarquia das verdades. Não se pode falar
mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Cristo, mais do Papa que da Palavra
de Deus, mais de Deus que do homem.
É preciso
repensar objectivos e princípios.
O Santo Padre contrapõe uma nova
pastoral em chave de missão que abandona o critério do “sempre se fez assim” e
convida pastores e demais cristãos a serem “audazes” e “criativos” em repensar
os objetivos, estruturas, estilos e métodos evangelizadores das comunidades.
Para o Papa, “uma identificação dos fins, sem a condigna busca comunitária de
meios para os alcançar, está condenada a traduzir-se em mera fantasia” (EG
33). Não passará de
“fantasia” a pastoral que se desinteresse do social ou sobredimensione uma área
da vida humana, mas que negligencie ou omita as demais. Segundo Francisco,
importa não caminhar sozinho, mas ter em conta os irmãos e a guia dos Bispos,
num discernimento pastoral sábio e realista (cf EG 33). Analisando a EG, descobrimos
que o Pontífice utiliza, no texto, duas palavras que são a espinha dorsal do documento:
alegria e misericórdia. É que há nesta conversão uma hierarquia de verdades,
poucas e essenciais, e no centro está o amor encarnado na pessoa de Jesus. E o
Cristo encarnado dos Evangelhos é de “carne e osso”. Porque houve Encarnação, a
evangelização não pode ignorar a pessoa e a sua situação.
***
Hierarquia de verdades
“Uma pastoral em chave
missionária” – diz o Papa – “não está obsessionada pela transmissão
desarticulada duma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir.
Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue
realmente a todos sem exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no
essencial” (EG 35),
no belo, importante, atraente e necessário. Isto aplica-se ao dogma, ao ensinamento
da Igreja e ao ensino moral. Já Tomás de Aquino, na Summa Theologiae, considerava que “em si mesma a misericórdia é a
maior das virtudes, pois lhe pertence debruçar-se sobre os outros e, mais ainda,
socorrer as suas deficiências”. Assim, o Papa retoma o que o Vaticano II
ensina, ao assegurar que existe hierarquia na doutrina católica: “Todas as
verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma
fé, mas algumas são mais importantes por exprimirem mais diretamente o coração
do Evangelho”. Neste núcleo fundamental, sobressai a beleza do amor salvífico
de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado (cf
EG 36). E essa
“beleza” não compreende plenamente se não atuar através da caridade em todas as
suas expressões, na qual a “social” é essencial, inegável, imprescindível. É
natural que no anúncio do Evangelho seja necessária a proporção adequada, que
advém da frequência com que se mencionam alguns temas e do enfoque que se
coloca na sua predicação. E nessa adequada proporção deve incluir-se a dimensão
social do Evangelho, onde os pobres constituem opção fundamental. “Não é
preciso mutilar a integridade da mensagem do Evangelho” (EG
39) – diz Francisco,
que acrescenta – “cada verdade entende-se melhor se a colocarmos em relação com
a totalidade harmoniosa da mensagem”. Isto supõe o equilíbrio, harmonia e
sintonia necessários para o serviço evangelizador não ser apenas de palavras
sem obras, mas anúncio da fé convertido numa constatação credível. É Cristo
quem adverte: “Pelos frutos, os conhecereis.” (Mt 7,20).
O cardeal apresenta exemplos para
corroborar as ideias expostas, de que se evoca um, que melhor as espelha: Religiosas
responsáveis por um centro médico em zona popular de Tegucigalpa, registam as
pessoas que chegam, dialogam com elas, preenchem um formulário e conduzem-nas
aos médicos segundo a necessidade. Mas, antes de os pacientes voltarem a casa,
são entrevistados e convidados pelas irmãs para grupos de formação para o
desenvolvimento ou para fazer parte duma microempresa, ou levar os filhos à
catequese caso sejam católicos, ou incentivam-nos a integrar um grupo de
oração, a participar num curso de autoestima ou coisa do género. Divisa-se aqui
o modelo evangelização – dimensão social bem integrado e que responde à pessoa
na sua condição biográfica e pessoal (o que o Papa chama de periferias existenciais).
Onde se pode falar de Cristo, deixar
de o fazer é um erro. Mera filantropia não é evangelização. Por isso, tem razão
o Papa ao afirmar “que a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de
cuidado espiritual. (…) A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se,
sobretudo, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária” (EG
200), acompanhada das
outras solicitudes. A fé anuncia-se com as palavras e difunde-se com as obras –
duas realidades que se adicionam e interagem. Quando se descura a mutualidade
ativa entre anúncio da fé e serviço ao próximo, é preciso reler as bem-aventuranças.
Ao invés, se a evangelização não surge com força e atração, “o edifício moral
da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas”, porque não é o próprio
Evangelho que se anuncia, mas umas “acentuações doutrinais ou morais, que
derivam de certas opções ideológicas”. Se assim for, a mensagem corre o risco
de perder a “frescura” e não ter “o perfume do Evangelho (ib).
A dimensão social da
evangelização – revisitar o cap. IV da Evangelii Gaudium
A tarefa evangelizadora exige a
promoção integral de cada ser humano (cf EG 182). Por isso, ninguém pode exigir
que releguemos a religião para a intimidade pessoal, sem influência na vida
social e nacional. A fé autêntica – não cómoda nem individualista – comporta o
profundo desejo de mudar o mundo, porque amamos este Planeta, onde Deus nos
colocou, e amamos a humanidade que o habita. Fazemos da terra a casa comum, e
todos somos irmãos.
Assim, os cristãos, incluindo os
Pastores, são chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor (cf
EG 183-184). Cada um
dos cristãos e as comunidades são chamados a ser instrumentos de Deus, no
serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se em
pleno na sociedade (cf EG 187). A opção preferencial pelos pobres, que deve
traduzir-se sobretudo na solicitude religiosa privilegiada e prioritária, não exonera
ninguém da preocupação pelos pobres e pela justiça social. Enquanto não forem
radicalmente solucionados os problemas dos pobres, pela renúncia à autonomia
absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas
estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo. A
desigualdade é a raiz dos males sociais. (cf EG 200-202). A dignidade de cada pessoa e o
bem comum devem ser questões estruturantes de toda a política económica (cf
EG 203). Mas o crescimento
equitativo exige mais que o mero crescimento económico; requer decisões,
programas, mecanismos e processos especificamente orientados para a melhor distribuição
das entradas, criação de oportunidades de trabalho, promoção integral dos
pobres que supere o assistencialismo (cf EG 204). Tem de crescer o número de
políticos capazes de entrar num autêntico diálogo que vise sanar as raízes
profundas dos males do mundo.
Sendo a política uma sublime
vocação, uma das formas da caridade, porque busca o bem comum, urge que surjam
políticos que tomem a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável
que governantes e poder financeiro alarguem as suas perspetivas, promovendo
trabalho digno, instrução e cuidados sanitários para todos os cidadãos. A
partir duma abertura à transcendência, forma-se uma nova mentalidade política e
económica que ajudará a superar a dicotomia entre economia e bem comum (cf
EG 205). Jesus, o
evangelizador por excelência e o Evangelho em pessoa, identificou-Se sobretudo
com os mais pequeninos (cf Mt 25,40) – o que recorda que somos
chamados a cuidar dos mais frágeis: os sem-abrigo, os toxicodependentes, os
refugiados, os povos indígenas, os idosos cada vez mais sós e abandonados, (…)
os migrantes (cf EG 209-210).
Não podemos fazer de distraídos. Há muitas cumplicidades (cf
EG 211).
Duplamente pobres são as mulheres
que padecem exclusão, maus-tratos e violência, porque têm menos possibilidades
de defender os seus direitos. Porém, entre elas, encontram-se admiráveis gestos
de heroísmo quotidiano (cf EG 212). E há outros seres frágeis e indefesos, que ficam
à mercê dos interesses económicos ou dum uso indiscriminado. Ora, nós, os seres
humanos, não somos s beneficiários, mas também guardiões das outras criaturas (cf
EG 215). São quatro
os princípios que orientam o desenvolvimento da convivência social e a
construção de um povo. ´
1 – O tempo é superior ao espaço.
Devem privilegiar-se ações que gerem novos dinamismos na sociedade e comprometam
outras pessoas e grupos a desenvolvê-los até frutificarem em factos
importantes, sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes (EG 222-223).
2 – A unidade prevalece sobre o
conflito. Este não pode ser ignorado ou dissimulado. Se ficamos encurralados
nele, perdemos a perspetiva e a realidade fica fragmentada. O modo mais
adequado de o enfrentar é aceitá-lo, suportá-lo, resolvê-lo e transformá-lo no
elo de ligação a novo processo. Assim, é possível desenvolver a comunhão na
diferença (EG 226-228).
3 – A realidade é mais importante que a
ideia. Há uma tensão
bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade é; a ideia elabora-se. Entre
elas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia se separe
da realidade (cf EG 231).
4 – O todo é superior à parte.
Há também tensão entre a globalização e a localização. É preciso alargar sempre
o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos. Mas há que o
fazer sem se evadir nem se desenraizar (cf EG 234-235).
A evangelização implica, pois, um
caminho de diálogo: diálogo com os Estados, com a sociedade – que inclui o
diálogo com as culturas e as ciências – e com os outros crentes que não fazem
parte da Igreja Católica. Em todos os casos, a Igreja fala a partir da luz que
a fé lhe dá, oferece a sua experiência bimilenária e conserva sempre na memória
as vidas e sofrimentos dos seres humanos. A Igreja proclama o “evangelho da
paz” (Ef
6,15).
Após esta revisitação ao cap. IV
da EG, evidencia-se-nos um desafio: começar o que ainda não se começou e
continuar o que se iniciou na viagem audaz pelo mundo, manejando, ao mesmo
tempo, dois remos: o da evangelização e o da ação pastoral da caridade social.
O Evangelho resume-se no amor
O amor fraterno tem a origem em
Deus, que é amor e que nos amou primeiro. Ele difunde o seu amor em nós através
do Espírito para em cada um o amor crescer, amadurecer e se parecer com o
autêntico amor, aquele com que Cristo nos amou. Se amamos é porque Deus nos
comunica o amor. Se amamos, é por causa da morte de Cristo, por amor, e da
ressurreição, que tornaram possível o amor. O amor de Jesus é a medida do amor.
Por isso, o crescimento do amor não tem limites na vida. Aprender a amar é a
grande tarefa da espiritualidade cristã, sempre inacabada. A bem-aventurança da
misericórdia ensina que esta consiste simultaneamente na solidariedade e
compromisso de amor eficaz com o irmão necessitado que está na miséria, no
perdão das ofensas e na reconciliação. A misericórdia é a prática do amor e
indica-nos os caminhos concretos da encarnação do amor: a reconciliação, a
libertação das misérias. Os ensinamentos de Jesus revelam que a misericórdia é
a única via universal que gera fraternidade (faz-nos irmãos e
irmãs uns dos outros).
Esta é a mensagem da parábola do bom samaritano, a parábola da verdadeira
prática da misericórdia e do amor fraterno (Lc 10,25-37). S. Paulo recorda-nos que de
nada serve entregarmo-nos aos pobres, ao martírio, se nos faltar o amor (1Co
13,1ss). Ante o
mandamento de crescer no amor devemos aceitar que não sabemos amar. O nosso
amor é, por vezes, uma caricatura (Rm 12,9). Consome-nos o egoísmo, as
preocupações e a sensibilidade. Sabemos que a caridade fraterna é a realização
cristã e humana mais difícil: amar como Cristo ama. Sabemos que na terra não
alcançaremos essa perfeição do amor, que fracassamos a cada passo, que não
superamos divisões e rancores, que somos, em cada dia, cobardes no serviço, no
acolhimento, no perdão e na dádiva da vida pelos outros. Isto não significa que
não queremos amar ou que de facto não amemos. Os amores, os caminhos do amor –
amar é querer amar. O que Deus nos pede não é o sucesso da caridade, mas o
esforço permanente por crescer no amor e na luta de aprender a amar, que começa
todos os dias. Nesta luta, a dimensão “humana” e “evangélica” do amor caminham
lado a lado, sem ruturas ou contradições. Não há separação entre o amor humano
e a caridade cristã. Nem deve haver uma disjunção entre evangelização e ação
social nascida na caridade. O Espírito de Deus revela-se nos valores da
entrega, do serviço, nas aspirações da justiça e da solidariedade, em cada
conversão, nos pequenos, nos que sofrem, nos indigentes. A realidade humana, as
culturas, estão cheias da presença do Espírito e da ação de Deus que constrói o
Reino, levando-nos a experimentar o próprio Deus.
O Evangelho tem a força
originária de fazer propostas. Cabe-nos apresentá-lo na sua amplitude, sem lhe ofuscar
a beleza nem enfraquecer a atração para que ele esteja junto dos homens e
mulheres que lutam contra as dificuldades da vida quotidiana, pela busca de
sentido para a vida, ou que estão longe da Igreja. Dececionadas ou isoladas, estas
pessoas são seduzidas por discursos que negam a dimensão transcendente da
pessoa, da vida e das relações humanas, em especial em situações de sofrimento
e de morte. O testemunho dos cristãos e da comunidade ilumina o caminho e
sustenta as suas aspirações de procura da felicidade. Mas a dimensão social da
missão supõe fazermo-nos contemplativos na ação. Ambas as dimensões da
espiritualidade do evangelizador são inseparáveis: O Deus experimentado e amado
em si mesmo e por si mesmo; e o Deus experimentado e amado pelos irmãos. A
primeira dimensão salienta que o cristianismo é transcendente a qualquer
realidade temporal; a segunda, que é encarnado e inseparável do irmão. A
caridade social não é apenas descobrir a presença de Jesus nos irmãos (“a
mim o fazes”), mas
também o apelo à ação em seu favor, ao compromisso. Por isso, se evangelizamos
com Cristo no coração, fazemos as obras que Ele fez. Jesus alargou os
horizontes e as exigências do amor e deu-lhe uma razão nova e um sentido novo.
Mas as suas exigências de caridade evangélica realizam-se e desenvolvem-se no
interior do amor humano, na afetividade e no coração, ainda que superados pela
fé e pela ação do Espírito. Aprendemos a amar seguindo Jesus por amor. Ele
mostra-nos a verdadeira prática do amor e comunica-nos a luz da vida para poder
amar como Ele nos amou e poder evangelizar como Ele evangelizou.
***
Eis uma pequena súmula da
conferência do Presidente da Caritas
Internationalis, um recado aos portugueses, que é de ter em boa conta em
ordem a uma prática mais lúcida empenhada.
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