quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O Evangelho confirma-se com obras!

O cardeal Oscar Andrés Cardenal Rodríguez Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa e Presidente da Caritas Internationalis esteve em Portugal no passado dia 13 dezembro de 2014 e proferiu uma conferência em torno do tema Dimensão Social da Evangelização no Mundo de Hoje. Considerando que falava em contexto “Cáritas”, cujo trabalho quis enaltecer, começou por se referir ao princípio pragmático da Evanglização: “o Evangelho confirma-se com obras”. E este é um dos dados que urge evidenciar para garantir e alimentar “o fogo da nossa esperança nestes tempos de desencanto, desenraizamento e abandono”. Segue-se uma síntese do conteúdo exposto pelo insigne conferencista, com a limitação e especificidade do nosso olhar.
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Hoje, a evangelização assenta numa Pastoral Social de base missionária, que, em vez de viver obcecada pela transmissão da doutrina, se centre no anúncio do essencial ao homem, que inclui a dimensão social como inerente à sua condição de pessoa necessitada de evangelização. Para a evangelização ser “plena”, tem de ser “integral”. E para isso deve iluminar a dimensão “social” com a caridade, justiça e verdade. Assim, o social na evangelização não é opcional, já que se torna elemento constitutivo da ação evangelizadora.
Na esteira das afirmações papais, a mensagem evangélica, graças à velocidade da comunicação e sua aleatória seleção, corre o risco de aparecer mutilada e reduzida a aspetos secundários, que per se não manifestam o fulcro da boa nova. Já passou o tempo em que, depois de se falar da missão como evangelização, conversão e anúncio do kérigma, se podia considerar na práxis pastoral “o social” como derivado da missão, e que, de certo modo, se podia separar o “espiritual” do “social”, sem qualquer dialética e sem razão ou postulado sério que o explicasse. Hoje, é inaceitável evangelizar sem alterar o contexto – sem tocar a realidade pessoal, laboral, familiar, económica, securitária, da saúde e do bem-estar. Por isso, na exortação apostólica EG-Evangelii Gaudium (34-39), Francisco equaciona com precisão teológica a temática da hierarquia das verdades. Não se pode falar mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus, mais de Deus que do homem.
É preciso repensar objectivos e princípios.  
O Santo Padre contrapõe uma nova pastoral em chave de missão que abandona o critério do “sempre se fez assim” e convida pastores e demais cristãos a serem “audazes” e “criativos” em repensar os objetivos, estruturas, estilos e métodos evangelizadores das comunidades. Para o Papa, “uma identificação dos fins, sem a condigna busca comunitária de meios para os alcançar, está condenada a traduzir-se em mera fantasia” (EG 33). Não passará de “fantasia” a pastoral que se desinteresse do social ou sobredimensione uma área da vida humana, mas que negligencie ou omita as demais. Segundo Francisco, importa não caminhar sozinho, mas ter em conta os irmãos e a guia dos Bispos, num discernimento pastoral sábio e realista (cf EG 33). Analisando a EG, descobrimos que o Pontífice utiliza, no texto, duas palavras que são a espinha dorsal do documento: alegria e misericórdia. É que há nesta conversão uma hierarquia de verdades, poucas e essenciais, e no centro está o amor encarnado na pessoa de Jesus. E o Cristo encarnado dos Evangelhos é de “carne e osso”. Porque houve Encarnação, a evangelização não pode ignorar a pessoa e a sua situação.  
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Hierarquia de verdades
“Uma pastoral em chave missionária” – diz o Papa – “não está obsessionada pela transmissão desarticulada duma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial” (EG 35), no belo, importante, atraente e necessário. Isto aplica-se ao dogma, ao ensinamento da Igreja e ao ensino moral. Já Tomás de Aquino, na Summa Theologiae, considerava que “em si mesma a misericórdia é a maior das virtudes, pois lhe pertence debruçar-se sobre os outros e, mais ainda, socorrer as suas deficiências”. Assim, o Papa retoma o que o Vaticano II ensina, ao assegurar que existe hierarquia na doutrina católica: “Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas são mais importantes por exprimirem mais diretamente o coração do Evangelho”. Neste núcleo fundamental, sobressai a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado (cf EG 36). E essa “beleza” não compreende plenamente se não atuar através da caridade em todas as suas expressões, na qual a “social” é essencial, inegável, imprescindível. É natural que no anúncio do Evangelho seja necessária a proporção adequada, que advém da frequência com que se mencionam alguns temas e do enfoque que se coloca na sua predicação. E nessa adequada proporção deve incluir-se a dimensão social do Evangelho, onde os pobres constituem opção fundamental. “Não é preciso mutilar a integridade da mensagem do Evangelho” (EG 39) – diz Francisco, que acrescenta – “cada verdade entende-se melhor se a colocarmos em relação com a totalidade harmoniosa da mensagem”. Isto supõe o equilíbrio, harmonia e sintonia necessários para o serviço evangelizador não ser apenas de palavras sem obras, mas anúncio da fé convertido numa constatação credível. É Cristo quem adverte: “Pelos frutos, os conhecereis.” (Mt 7,20).
O cardeal apresenta exemplos para corroborar as ideias expostas, de que se evoca um, que melhor as espelha: Religiosas responsáveis por um centro médico em zona popular de Tegucigalpa, registam as pessoas que chegam, dialogam com elas, preenchem um formulário e conduzem-nas aos médicos segundo a necessidade. Mas, antes de os pacientes voltarem a casa, são entrevistados e convidados pelas irmãs para grupos de formação para o desenvolvimento ou para fazer parte duma microempresa, ou levar os filhos à catequese caso sejam católicos, ou incentivam-nos a integrar um grupo de oração, a participar num curso de autoestima ou coisa do género. Divisa-se aqui o modelo evangelização – dimensão social bem integrado e que responde à pessoa na sua condição biográfica e pessoal (o que o Papa chama de periferias existenciais).
Onde se pode falar de Cristo, deixar de o fazer é um erro. Mera filantropia não é evangelização. Por isso, tem razão o Papa ao afirmar “que a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual. (…) A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, sobretudo, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária” (EG 200), acompanhada das outras solicitudes. A fé anuncia-se com as palavras e difunde-se com as obras – duas realidades que se adicionam e interagem. Quando se descura a mutualidade ativa entre anúncio da fé e serviço ao próximo, é preciso reler as bem-aventuranças. Ao invés, se a evangelização não surge com força e atração, “o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas”, porque não é o próprio Evangelho que se anuncia, mas umas “acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas”. Se assim for, a mensagem corre o risco de perder a “frescura” e não ter “o perfume do Evangelho (ib).
A dimensão social da evangelização – revisitar o cap. IV da Evangelii Gaudium
A tarefa evangelizadora exige a promoção integral de cada ser humano (cf EG 182). Por isso, ninguém pode exigir que releguemos a religião para a intimidade pessoal, sem influência na vida social e nacional. A fé autêntica – não cómoda nem individualista – comporta o profundo desejo de mudar o mundo, porque amamos este Planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a humanidade que o habita. Fazemos da terra a casa comum, e todos somos irmãos.
Assim, os cristãos, incluindo os Pastores, são chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor (cf EG 183-184). Cada um dos cristãos e as comunidades são chamados a ser instrumentos de Deus, no serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se em pleno na sociedade (cf EG 187). A opção preferencial pelos pobres, que deve traduzir-se sobretudo na solicitude religiosa privilegiada e prioritária, não exonera ninguém da preocupação pelos pobres e pela justiça social. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, pela renúncia à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo. A desigualdade é a raiz dos males sociais. (cf EG 200-202). A dignidade de cada pessoa e o bem comum devem ser questões estruturantes de toda a política económica (cf EG 203). Mas o crescimento equitativo exige mais que o mero crescimento económico; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para a melhor distribuição das entradas, criação de oportunidades de trabalho, promoção integral dos pobres que supere o assistencialismo (cf EG 204). Tem de crescer o número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo que vise sanar as raízes profundas dos males do mundo.
Sendo a política uma sublime vocação, uma das formas da caridade, porque busca o bem comum, urge que surjam políticos que tomem a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável que governantes e poder financeiro alarguem as suas perspetivas, promovendo trabalho digno, instrução e cuidados sanitários para todos os cidadãos. A partir duma abertura à transcendência, forma-se uma nova mentalidade política e económica que ajudará a superar a dicotomia entre economia e bem comum (cf EG 205). Jesus, o evangelizador por excelência e o Evangelho em pessoa, identificou-Se sobretudo com os mais pequeninos (cf Mt 25,40) – o que recorda que somos chamados a cuidar dos mais frágeis: os sem-abrigo, os toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os idosos cada vez mais sós e abandonados, (…) os migrantes (cf EG 209-210). Não podemos fazer de distraídos. Há muitas cumplicidades (cf EG 211).
Duplamente pobres são as mulheres que padecem exclusão, maus-tratos e violência, porque têm menos possibilidades de defender os seus direitos. Porém, entre elas, encontram-se admiráveis gestos de heroísmo quotidiano (cf EG 212). E há outros seres frágeis e indefesos, que ficam à mercê dos interesses económicos ou dum uso indiscriminado. Ora, nós, os seres humanos, não somos s beneficiários, mas também guardiões das outras criaturas (cf EG 215). São quatro os princípios que orientam o desenvolvimento da convivência social e a construção de um povo. ´
1 – O tempo é superior ao espaço. Devem privilegiar-se ações que gerem novos dinamismos na sociedade e comprometam outras pessoas e grupos a desenvolvê-los até frutificarem em factos importantes, sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes (EG 222-223).
2 – A unidade prevalece sobre o conflito. Este não pode ser ignorado ou dissimulado. Se ficamos encurralados nele, perdemos a perspetiva e a realidade fica fragmentada. O modo mais adequado de o enfrentar é aceitá-lo, suportá-lo, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação a novo processo. Assim, é possível desenvolver a comunhão na diferença (EG 226-228).
3 – A realidade é mais importante que a ideia. Há uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade é; a ideia elabora-se. Entre elas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia se separe da realidade (cf EG 231).
4O todo é superior à parte. Há também tensão entre a globalização e a localização. É preciso alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos. Mas há que o fazer sem se evadir nem se desenraizar (cf EG 234-235).
A evangelização implica, pois, um caminho de diálogo: diálogo com os Estados, com a sociedade – que inclui o diálogo com as culturas e as ciências – e com os outros crentes que não fazem parte da Igreja Católica. Em todos os casos, a Igreja fala a partir da luz que a fé lhe dá, oferece a sua experiência bimilenária e conserva sempre na memória as vidas e sofrimentos dos seres humanos. A Igreja proclama o “evangelho da paz” (Ef 6,15).
Após esta revisitação ao cap. IV da EG, evidencia-se-nos um desafio: começar o que ainda não se começou e continuar o que se iniciou na viagem audaz pelo mundo, manejando, ao mesmo tempo, dois remos: o da evangelização e o da ação pastoral da caridade social.
O Evangelho resume-se no amor
O amor fraterno tem a origem em Deus, que é amor e que nos amou primeiro. Ele difunde o seu amor em nós através do Espírito para em cada um o amor crescer, amadurecer e se parecer com o autêntico amor, aquele com que Cristo nos amou. Se amamos é porque Deus nos comunica o amor. Se amamos, é por causa da morte de Cristo, por amor, e da ressurreição, que tornaram possível o amor. O amor de Jesus é a medida do amor. Por isso, o crescimento do amor não tem limites na vida. Aprender a amar é a grande tarefa da espiritualidade cristã, sempre inacabada. A bem-aventurança da misericórdia ensina que esta consiste simultaneamente na solidariedade e compromisso de amor eficaz com o irmão necessitado que está na miséria, no perdão das ofensas e na reconciliação. A misericórdia é a prática do amor e indica-nos os caminhos concretos da encarnação do amor: a reconciliação, a libertação das misérias. Os ensinamentos de Jesus revelam que a misericórdia é a única via universal que gera fraternidade (faz-nos irmãos e irmãs uns dos outros). Esta é a mensagem da parábola do bom samaritano, a parábola da verdadeira prática da misericórdia e do amor fraterno (Lc 10,25-37). S. Paulo recorda-nos que de nada serve entregarmo-nos aos pobres, ao martírio, se nos faltar o amor (1Co 13,1ss). Ante o mandamento de crescer no amor devemos aceitar que não sabemos amar. O nosso amor é, por vezes, uma caricatura (Rm 12,9). Consome-nos o egoísmo, as preocupações e a sensibilidade. Sabemos que a caridade fraterna é a realização cristã e humana mais difícil: amar como Cristo ama. Sabemos que na terra não alcançaremos essa perfeição do amor, que fracassamos a cada passo, que não superamos divisões e rancores, que somos, em cada dia, cobardes no serviço, no acolhimento, no perdão e na dádiva da vida pelos outros. Isto não significa que não queremos amar ou que de facto não amemos. Os amores, os caminhos do amor – amar é querer amar. O que Deus nos pede não é o sucesso da caridade, mas o esforço permanente por crescer no amor e na luta de aprender a amar, que começa todos os dias. Nesta luta, a dimensão “humana” e “evangélica” do amor caminham lado a lado, sem ruturas ou contradições. Não há separação entre o amor humano e a caridade cristã. Nem deve haver uma disjunção entre evangelização e ação social nascida na caridade. O Espírito de Deus revela-se nos valores da entrega, do serviço, nas aspirações da justiça e da solidariedade, em cada conversão, nos pequenos, nos que sofrem, nos indigentes. A realidade humana, as culturas, estão cheias da presença do Espírito e da ação de Deus que constrói o Reino, levando-nos a experimentar o próprio Deus.
O Evangelho tem a força originária de fazer propostas. Cabe-nos apresentá-lo na sua amplitude, sem lhe ofuscar a beleza nem enfraquecer a atração para que ele esteja junto dos homens e mulheres que lutam contra as dificuldades da vida quotidiana, pela busca de sentido para a vida, ou que estão longe da Igreja. Dececionadas ou isoladas, estas pessoas são seduzidas por discursos que negam a dimensão transcendente da pessoa, da vida e das relações humanas, em especial em situações de sofrimento e de morte. O testemunho dos cristãos e da comunidade ilumina o caminho e sustenta as suas aspirações de procura da felicidade. Mas a dimensão social da missão supõe fazermo-nos contemplativos na ação. Ambas as dimensões da espiritualidade do evangelizador são inseparáveis: O Deus experimentado e amado em si mesmo e por si mesmo; e o Deus experimentado e amado pelos irmãos. A primeira dimensão salienta que o cristianismo é transcendente a qualquer realidade temporal; a segunda, que é encarnado e inseparável do irmão. A caridade social não é apenas descobrir a presença de Jesus nos irmãos (“a mim o fazes”), mas também o apelo à ação em seu favor, ao compromisso. Por isso, se evangelizamos com Cristo no coração, fazemos as obras que Ele fez. Jesus alargou os horizontes e as exigências do amor e deu-lhe uma razão nova e um sentido novo. Mas as suas exigências de caridade evangélica realizam-se e desenvolvem-se no interior do amor humano, na afetividade e no coração, ainda que superados pela fé e pela ação do Espírito. Aprendemos a amar seguindo Jesus por amor. Ele mostra-nos a verdadeira prática do amor e comunica-nos a luz da vida para poder amar como Ele nos amou e poder evangelizar como Ele evangelizou.
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Eis uma pequena súmula da conferência do Presidente da Caritas Internationalis, um recado aos portugueses, que é de ter em boa conta em ordem a uma prática mais lúcida empenhada.

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