A mensagem do Papa Francisco para
a juventude vem datada de 31 de janeiro passado, dia da celebração da Memória
Litúrgica de São João Bosco, educador da juventude pelas vias da orientação, liberdade,
reforço das boas atitudes e pela presença e proximidade.
A novidade emblemática da
mensagem é a assunção de São João Paulo II como padroeiro das jornadas mundiais
da juventude (JMJ),
que as instituiu há 30 anos, na sequência da proclamação do ano de 1985 como
ano mundial da juventude por parte da ONU. Por outro lado, a jornada mundial da
juventude deste ano conduz à última etapa do itinerário preparativo do próximo
grande encontro mundial dos jovens, em 2016, na cidade de Cracóvia, de cuja
arquidiocese João Paulo II fora arcebispo antes de ascender ao sumo
pontificado.
O
Papa escolheu, desde o ano passado, como guia da caminhada juvenil, as
bem-aventuranças, constantes do sermão da montanha do Evangelho (cf Mt cap 5-7). E, nesse ano, propôs a
reflexão em jeito sinodal (reflexão conjunta e caminhada conjunta à descoberta) sobre a pobreza em
espírito (cf
Mt 5,3) como
o primeiro passo – programático corajoso e aventureiro – para a busca da
felicidade ou bem-aventurança. Trata-se de uma postura revolucionária porque
totalmente em contradição com os critérios do mundo – o ter, o poder, o
aparecer…
A
inserção da palavra “felizes” ou “bem-aventurados” nove vezes neste
primeiro sermão de Jesus serve de tema ou refrão que evoca a chamada do Mestre
a percorrer em conjunto a genuína estrada da felicidade, contra todos os
obstáculos e respondendo a todos os desafios.
Para
este ano de 2015, o Pontífice aponta a 6.ª bem-aventurança, Felizes os puros de coração, porque verão a
Deus (Mt
5,8). Puros
de coração são aqueles que olham o mundo com a inocência, a simplicidade e a
sinceridade de criança. É um sentido mais amplo (embora o postule) que a castidade ou a
perfeição moral.
Segue-se
uma breve síntese e comentário do excelente documento.
***
O
Papa desenvolve a sua proposta em torno de três eixos: o desejo de felicidade; a pureza
de coração; e a visão de Deus. E termina com uma palavra paranética sobre a ida
a Cracóvia.
A busca da felicidade é comum a todas as pessoas de todos os tempos, lugares e idades,
porque resulta do irreprimível desejo de felicidade inscrito por Deus no
coração de cada ser humano.
Segundo
os primeiros capítulos do livro do Génesis, a felicidade a que somos chamados
consiste na “perfeita comunhão com Deus, com todos os irmãos, com a natureza e
connosco próprios” – sem máscaras ou subterfúgios, mas com a pureza e
transparência com que a luz divina, incidindo sobre o caminho do homem, o
levava a aceder livremente a Deus, à sua intimidade e visão e permeava as
relações humanas.
Com
a cedência do homem à tentação, quebra-se a relação de comunhão, o pecado entra
na história humana, perde-se a bússola da referência da felicidade e a luz
sofre a ofuscação das trevas. Homem e mulher deram-se conta da sua nudez, sentiram
a necessidade de a cobrir e de esconder-se de Deus, começando a esconder-se uns
dos outros e a enganar-se mutuamente.
Sobretudo
nos salmos, encontra-se o clamor profundo da humanidade a pedir luz e a
perguntar quem dará a felicidade (cf Sl 4,7). E Deus, na sua infinita bondade, após o envio dos
patriarcas e profetas, enviou o seu filho Jesus, através de quem assume um
rosto humano. E “com a sua encarnação, vida, morte e ressurreição, resgata-nos
do pecado e abre-nos horizontes novos”, bem como a satisfação das nossas
“expectativas tantas vezes desiludidas por falsas promessas humanas”. E Francisco
cita palavras de João Paulo II, em 19 de agosto de 2000:
Ele é a beleza que tanto
vos atrai; é ele quem vos provoca com aquela sede de radicalidade que não vos
deixa ceder a compromissos; é Ele quem vos impele a depor as máscaras que tornam
falsa a vida; é Ele quem vos lê no coração as decisões mais verdadeiras que
outros quereriam sufocar. É Jesus que, suscita em vós o desejo de fazer da
vossa vida algo grande (da Vigília de
Oração em Tor Vergata).
A pureza de
coração é a condição e via da felicidade. Para o homem bíblico, coração é “o centro dos sentimentos,
pensamentos e intenções da pessoa humana” – recorda o Papa. E, “se a Bíblia
ensina que Deus olha ao coração e não às aparências” (cf 1Sam 16,7), podemos concluir que é
pelo coração que podemos ver a Deus. Além na noção bíblica de coração, o Papa
apresenta igualmente o sentido da palavra “puro”. O vocábulo grego usado por
Mateus é kátaros, a significar limpo,
claro, livre de substâncias conspurcantes e epidémicas. Porém, Jesus quer desligar
a pureza que preconiza da pureza meramente ritual e exterior, que proibia o
contacto com as coisas e as pessoas consideradas impuras (incluindo os leprosos,
mulheres e estrangeiros) e impunha a lavagem das mãos e dos copos. Assim, Ele afirma
categoricamente:
Nada há fora do homem que,
entrando nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem é que o faz
impuro. (…) Porque é do interior do seu coração que saem os maus pensamentos,
as prostituições, os roubos, os assassínios, os adultérios, as ambições, a perversidade,
a má fé, a devassidão, a inveja, a maledicência, o orgulho, os desvarios (Mc
7,15.21-22).
Nestes
termos, a questão da pureza de coração tem a ver sobretudo “com o campo das
nossas relações”, devendo cada um “aprender a discernir aquilo que pode contaminar o seu coração, formando em si
mesmo a consciência reta e sensível, capaz de discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que Lhe é agradável, o que é
perfeito” (Rm 12,2). Impõe-se-nos – diz o
Pontífice – uma salutar atenção para com a salvaguarda da criação, a pureza do
ar, da água e dos alimentos, mas sobretudo é preciso “salvaguardar a pureza do
que temos de mais precioso: os
nossos corações e as nossas relações – uma ecologia humana que nos ajudará “a
respirar o ar puro que provém das coisas belas, do amor verdadeiro, da
santidade”.
Francisco
constata que “ o período da juventude é aquele em que desabrocha a grande
riqueza afetiva contida nos corações, o desejo profundo dum amor verdadeiro,
belo e grande”. Por isso, pede que não permitam os jovens que “este valor
precioso seja falsificado, destruído ou deturpado”, sobretudo com “a
manipulação do próximo para objetivos egoístas, por vezes como mero objeto de
prazer”, que acaba por ferir e entristecer o coração. Por outro lado, é preciso
não ter medo do amor verdadeiro, como ensina o apóstolo Paulo. E o Papa
Francisco apresenta aos jovens a mesma cartilha que apresentou aos novéis
cardeais – o hino a caridade:
O amor é paciente e
prestável; não é invejoso, arrogante ou orgulhoso; nada faz de inconveniente;
não procura o próprio interesse; não se irrita nem guarda ressentimento. Não se
alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta. O amor jamais passará. (1Cor 13,4-8).
E,
paralelamente, convida-os a tomar posição contra a tendência generalizada da
banalização do amor, redutível ao aspeto sexual, desnudando-o das
caraterísticas essenciais da beleza e comunhão, fidelidade e responsabilidade,
mercê da cultura do provisório e do medo instalado de fazer escolhas
definitivas. Em suma, protestando a sua confiança nos jovens, pede-lhes que vão
“contra a corrente e tenham a coragem de ser felizes”. E afiança que, se se
lançarem à descoberta do rico ensinamento da Igreja, perceberão que o
cristianismo não é um complexo de proibições asfixiantes dos desejos de
felicidade, mas “um projeto de vida que pode fascinar os nossos corações”.
A visão de
Deus é
um imperativo do apelo divino inscrito no coração humano de procura do rosto de
Deus (cf Sl
27/26,8). Mas,
a cada momento, nos confrontamos com a condição de pecadores. Ora, para subir à
montanha de Deus e penetrar no santuário, é preciso ter mãos limpas e coração
puro (cf Sl
24/23,3-4). Não
obstante, não há motivo para medo, pois Deus é quem dá o primeiro passo e nos purifica.
Quando Isaías, chamado a falar em nome de Deus, se queixa da impureza de seus
lábios, o Senhor o purifica por meio do anjo (cf Is 6,5.7). Pedro, vendo o milagre da pesca no lago
de Genesaré, sentiu-se indigno, mas o Mestre o afoitou prometendo-lhe ser
pescador de homens” (cf Lc 5,8.10). E hoje a visão de Deus opera-se em Cristo, pois, quando o
discípulo Lhe pede a visão do Pai, Ele responde: “Quem Me vê, vê o Pai” (cf Jo 14,8.9).
Porém,
há que pensar que o convite do Senhor se dirige a cada um e não apenas a alguns,
bastando, apesar de todos sermos pecadores e precisarmos de purificação, “tomar
a decisão de se deixar encontrar por Ele” e de O procurar incessantemente, sobretudo
“no sacramento da Reconciliação, momento privilegiado de encontro com a misericórdia”,
que purifica e recria.
E
Francisco indica aos jovens a exemplaridade de Teresa de Ávila e do camponês de
quem o cura d’Ars se abeirou. Teresa, nascida em Espanha há quinhentos anos,
dizia já em criança que queria ver Deus, tendo depois descoberto o caminho da
oração como relação íntima e amiga com Aquele que nos ama e nos faz sentir
amados. Por sua vez, o referido camponês respondia: “quando estou em oração
diante do sacrário, eu olho para Ele e
Ele olha para mim”.
O
encontro com Cristo realiza-se também através da leitura frequente da Sagrada Escritura,
onde se descobre que se pode ver Deus também “no rosto dos irmãos,
especialmente dos mais esquecidos – os pobres, os famintos, os sedentos, os
forasteiros, os doentes, os presos” (cf Mt 25,31-46). E o Papa ensina que, “para ingressar na lógica
do Reino de Deus é preciso reconhecer-se pobre com os pobres”, com um coração
puro, que “é necessariamente também um coração despojado, que sabe abaixar-se e
partilhar a sua vida com os mais necessitados”. Por outro lado, o encontro com
Deus pela oração, pela leitura da Bíblia e pela vida fraterna facilita o melhor
conhecimento de Deus e de nós mesmos, como aconteceu com os discípulos de Emaús,
que se sentiram, inflamados pela voz de Jesus, que lhes abriu os corações para
reconhecerem a sua presença e o seu projeto de amor (cf Lc 24,13-35).
Depois,
o Papa contesta que a vocação ao matrimónio para constituir família esteja “fora
de moda”, tanto assim que a “comunidade eclesial inteira” vive hoje um período
especial de reflexão sobre “a vocação e a missão da família na Igreja e no
mundo de hoje”. Ao mesmo tempo, apela a que os jovens tomem em consideração o
chamamento à vida consagrada e ao sacerdócio (dar-se plenamente a Cristo e ao serviço da
Igreja). Ou seja,
cada um deve interrogar-se sobre a vontade de Deus a seu respeito e dizer-Lhe “sim”,
na certeza de “a vontade de Deus é a nossa felicidade”.
Finalmente,
em
caminho para Cracóvia, há que refletir
“quantas descobertas importantes – sobretudo as de Cristo como Caminho, Verdade
e Vida (cf Jo 14,6) e a da Igreja com grande e acolhedora família” e quantas mudanças
de vida e decisões vocacionais brotaram das jornadas mundiais.
***
Francisco,
tal como julga “cardinal” o papel dos recentes purpurados, também assume a “cardinalidade”
existencial dos jovens, a quem propõe o mesmo hino à caridade que propôs aos cardeais
parafraseando Paulo no capítulo 13 da 1.ª carta aos Coríntios. Para tanto, importa
que eles assumam esta cardinalidade na vida da família da sociedade e da Igreja.
E o Papa não deixa de escalpelizar a tentação sexista, hedonista e manipuladora
do próximo em que os jovens caem, por sua culpa ou por culpa do “sistema” por
trás do qual se escondem as pessoas, sobretudo as adultas, por via do negócio
lucrativo.
E
Francisco contrapõe a via do amor como o Novo Testamento o apresenta e desafia todos
e cada um à procura do encontro com Deus que ama e que purifica – na oração, na
leitura assídua da Bíblia, na vida e partilha fraternas, no conhecimento de si,
na visão do rosto de Deus em Cristo e na do rosto de Cristo nos irmãos (mormente os mais
marginalizados),
na procura da vontade de Deus, na resposta à vocação (matrimonial, consagrada
ou sacerdotal)
e na celebração da misericórdia através do sacramento da Reconciliação.
É
que a felicidade é uma aventura acessível a todos e da qual ninguém pode ter medo.
Basta procurá-la por caminhos adequados, embora nem sempre fáceis – e que
sobressai a pureza de coração, que nos faz ver a Deus. E exemplos não faltam: Teresa
de Ávila, Cura d’Ars e o dito camponês, João Bosco e João Paulo II… Espero que
surjam também Paulo VI e Bento XVI.
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