Dom Manuel José Macário do
Nascimento Clemente, patriarca de Lisboa, ficou alçado, a partir do passado dia
14 de fevereiro, à dignidade de cardeal-presbítero, com o título de Santo
António dos Portugueses in Campo Marzio.
Com esta dignidade cardinalícia (não honorífica), o novo purpurado tem direito
ao tratamento de “Eminência” e à precedência nas receções eclesiásticas em
relação aos arcebispos, bispos, outros clérigos e demais fiéis.
Porém, esta dignidade não
configura “um prémio, o ápice de uma carreira, uma dignidade de poder ou de
distinção superior”, de acordo com a carta enviada por Francisco a cada um dos
novos cardeais, mas “um serviço de ajuda, apoio e proximidade especial à pessoa
do Papa e para o bem da Igreja”. Espera-se de Dom Manuel José (no
patriarcado de Lisboa, Dom Manuel III)
o seu “compromisso diário para manter longe aquelas considerações de poder e de
distinção superior (em que, por vezes, se insinua “o
espírito de mundanidade que embriaga mais do que o álcool em jejum, desorienta
e separa da cruz de Cristo”)
e, sobretudo, “para recordar que ser cardeal significa incardinar-se na diocese
de Roma para dar testemunho da Ressurreição do Senhor e dá-lo totalmente, até
ao sangue, se for necessário”. Esta doutrina vem compendiada na fórmula de
juramento proferida por cada um dos novos cardeais, configurando o compromisso
que assumiu e para o que impetrou a ajuda de Deus:
(…)
Juro doravante e enquanto viver, ser constantemente fiel a Cristo e ao seu
Evangelho, obediente à santa Igreja apostólica romana e ao bem-aventurado
apóstolo Pedro na pessoa do Sumo Pontífice Francisco e seus sucessores
canonicamente eleitos; conservar sempre, por palavras e pelo modo de proceder,
a comunhão com a Igreja Católica; nunca divulgar notícias e aspetos secretos
que me tenham sido confiados e cuja divulgação redunde em prejuízo ou
inonorabilidade da Igreja; e cumprir com grande diligência e fidelidade as
missões a que for chamado no meu serviço à Igreja, segundo o direito”.
***
Por sua vez, o Papa na homilia da Celebração
da Palavra que teve lugar no Consistório Ordinário Público para a criação de
novos Cardeais e para algumas Causas de Canonização, apresentou o enfoque da
espiritualidade e ação pastoral do cardinalato. O próprio nome “cardeal” –
diz – evoca a “charneira”, a junção cardinal, principal. Não é algo de acessório,
decorativo que faça pensar numa honorificência, mas num eixo (gonzo, dizia eu há dias) ou ponto de apoio de
movimento essencial para a vida da comunidade. “Vós sois junções cardinais e estais incardinados na Igreja de Roma, que preside à
universal assembleia da caridade – afirma o Bispo de Roma, citando a Lumen Gentium
(13) e o prólogo da carta de
Inácio de Antioquia aos Romanos. Se na Igreja toda a presidência deriva da
caridade, também nela tem de ser exercida e deve-a ter como fim. Ora, tal como
a Igreja de Roma preside na caridade, assim cada Igreja particular é chamada a
presidir à caridade e na caridade.
Nestes
termos, o Pontífice oferece como palavra orientadora daquela celebração e do
ministério cardinalício o hino à caridade
da 1.ª Carta de Paulo aos Coríntios (cap. 13). Depois, invoca a ajuda da Virgem Maria, nossa
Mãe, que deu ao mundo Aquele que é o “caminho que ultrapassa todos os outros” (cf 1 Co 12,31): Jesus, Caridade encarnada. E,
parafraseando Paulo, sublinha as caraterísticas da caridade, a começar pela magnanimidade
e benevolência, para vincar que, ao ampliar-se mais a responsabilidade
no serviço à Igreja, mais se deve ampliar o coração, à medida do coração de
Cristo. E associa a magnanimidade à catolicidade, enquanto amor a todos, sem
limites (amar
o que é grande sem negligenciar o que é pequeno; amar as coisas pequenas no
horizonte das grandes – ter a dimensão holística para agir localmente), mas simultaneamente na
fidelidade “às situações particulares e com gestos concretos”. Por si, benevolência é a intenção firme e constante de
querer sempre o bem e para todos, incluindo aqueles que não nos amam.
Também
o Apóstolo diz que a caridade não é invejosa nem arrogante nem orgulhosa.
Porém, os seres humanos (todos, e em todas as idades da vida) sentem-se inclinados à inveja e ao
orgulho por via da nossa natureza ferida pelo pecado. “E as próprias dignidades
eclesiásticas não estão imunes desta tentação” (confessa). Mas pode sobressair ainda mais em nós a
força da caridade, que transforma o coração de tal modo que “já não és tu que
vives, mas Cristo que vive em ti”.
Ademais,
a caridade não falta ao respeito, não procura o seu próprio interesse.
Ou seja, quem vive na caridade descentralizou-se de si mesmo, enquanto quem
vive autocentralizado falta ao respeito, mesmo que não se dê conta disso,
porque o respeito “é a capacidade de ter em conta o outro, a sua dignidade, a
sua condição, as suas necessidades”. O autocentralizado procura o seu próprio
interesse, parecendo-lhe isso normal e quase um dever.
A
caridade, segundo Paulo, não se irrita, não leva em conta o mal recebido.
E o Papa comenta:
Ao pastor que vive com as
pessoas, não faltam ocasiões para se irritar. E o risco de se irritar é ainda
maior nas relações entre nós, irmãos, embora tenhamos efetivamente menos
desculpa. Também disto é a caridade, e só a caridade é que nos liberta.
Liberta-nos do perigo de reagir impulsivamente, dizer e fazer coisas erradas; e
sobretudo liberta-nos do risco mortal da ira retida, aninhada no interior, que leva a ter em conta os malefícios
recebidos. Isto não é aceitável no homem de Igreja.
Também,
na ótica do Apóstolo, a caridade não se alegra com a injustiça; rejubila com
a verdade. “Quem é chamado na Igreja ao serviço da governação deve ter
sentido tão forte da justiça que veja toda e qualquer injustiça como
inaceitável, mesmo a que pareça vantajosa para si ou para a Igreja”. E rejubila com a verdade: bela expressão –
considera Francisco, que ensina:
O homem de Deus é alguém
que vive fascinado pela verdade e que a encontra plenamente na Palavra e na
Carne de Jesus Cristo. Ele é a fonte inesgotável da nossa alegria. Possa o povo
de Deus encontrar sempre em nós a denúncia firme da injustiça e o serviço
jubiloso da verdade.
Por
fim, a caridade tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Eis,
em quatro palavras, um programa de vida espiritual e pastoral:
O amor de Cristo,
derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, permite-nos viver e ser
assim: pessoas capazes de perdoar sempre; de dar sempre confiança, porque
cheias de fé em Deus; capazes de infundir sempre esperança, porque cheias de
esperança em Deus; que sabem suportar com paciência todas as situações e cada
irmão e irmã em união com Jesus, que suportou com amor o peso dos nossos
pecados.
Como
nada disto provém de nós, mas de Deus, que é amor e realiza tudo isto, se formos dóceis
à ação do Santo Espírito, então os cardeais devem ser incardinados e dóceis. Quanto
mais incardinados estiverem na Igreja de Roma, tanto mais dóceis ao Espírito se
devem tornar, para que a caridade dê forma e sentido a tudo o que são e fazem.
Incardinados na Igreja que preside na caridade, dóceis ao Espírito, que derrama
nos nossos corações o amor de Deus (cf Rm 5,5).
***
Na
concelebração Eucarística de hoje com os cardeais, a partir da cura do leproso
por Cristo, leu-lhes a cartilha da lógica de Jesus e do caminho da Igreja: não só acolher e integrar com coragem
evangélica os que batem à nossa porta, mas sair, ir à procura, sem preconceitos
nem medo, dos afastados revelando-lhes gratuitamente o que gratuitamente
recebemos. E referiu que o nosso único título de honra e sinal distintivo é
a disponibilidade total para servir os outros. E apontou como exemplo de
fidelidade e de intercessão Maria, Mãe da Igreja, que sofreu a marginalização
por via das calúnias (cf Jo 8,41) e do exílio (cf Mt 2,13-23). Que Ela nos ensine a não temer a
ternura e a compaixão; que nos revista de paciência acompanhando-nos no seu
caminho, sem buscar os triunfos dum sucesso mundano; e que nos mostre Jesus e
faça caminhar como Ele – suplica o Papa. É preciso, com os olhos fixos em Jesus
e em nossa Mãe, “servir a Igreja de modo que os cristãos – edificados pelo
nosso testemunho – não se sintam tentados a estar com Jesus, sem quererem estar
com os marginalizados”. E Francisco exorta a:
Servir Jesus crucificado
em toda a pessoa marginalizada, seja qual for o motivo; a ver o Senhor em cada
pessoa excluída que tem fome e sede, que não tem com que se cobrir; a ver o
Senhor presente também naqueles que perderam a fé, que se afastaram da prática
da sua fé ou que se declaram ateus; o Senhor, que está na cadeia, que está
doente, que não tem trabalho, que é perseguido; o Senhor que está no leproso,
no corpo ou na alma, que é discriminado. Não descobrimos o Senhor, se não
acolhemos de maneira autêntica o marginalizado. Recordemos sempre a imagem de
São Francisco, que não teve medo de abraçar o leproso e acolher aqueles que
sofrem qualquer género de marginalização. Verdadeiramente, amados irmãos, é no
evangelho dos marginalizados que se joga, descobre e revela a nossa
credibilidade!
***
Eis
o que se espera de Dom Manuel Clemente. Não que seja o chefe da Igreja Católica
em Portugal por ser patriarca ou agora também cardeal. Como patriarca de
Lisboa, tem as funções próprias do bispo na sua diocese e as obrigações com as
dioceses sufragâneas como qualquer arcebispo metropolita (Braga, Lisboa e Évora) – vigiar pela
observância da fé e disciplina eclesiástica; supletivamente, promover a visita
pastoral, no caso do bispo diocesano não cumprir de modo notório, mas mediante
autorização da Santa Sé, e promover a eleição do administrador diocesano sede vacante, se o colégio dos
consultores a não fizer ou a tiver feito sem a observância das normas; e ter
constituído o tribunal de apelo das dioceses sufragâneas. No caso de Lisboa, as
sufragâneas são: Angra do Heroísmo, Funchal, Guarda, Leiria, Portalegre-Castelo
Branco, Santarém e Setúbal.
O
patriarca é o presidente da Conferência Episcopal e, como tal detém (como já detinha) responsabilidades
especiais na Igreja Portuguesa (no sentido de presidir às sessões plenárias e ao
secretariado permanente, bem como no de ser o rosto da Igreja ante a opinião
pública). Mas
este cargo é de eleição que pode recair na personalidade doutro bispo, como tem
já acontecido.
Todavia, Sua Eminência
Reverendíssima reside na diocese principal do país, que não será um país
periférico no sentido que o Papa assume. Porém, é a Lisboa, junto do poder
central que chegam quase todas as informações sobre a situação real do país (fazendo
o poder tantas vezes orelhas moucas, mesmo quando abanadas pela Comunicação
Social). E esta tem
sido e é, sobretudo nos últimos tempos, bem confrangedora. Por cá passam muitas
das situações que o Romano Pontífice denuncia audazmente, nomeadamente a anemia
económica, o desemprego, os jovens- nem-nem, as ruturas, o empobrecimento, a
exploração, a política austeritária… – a tal ponto que os pobres não podem
esperar. Por isso, se espera que o novel cardeal também em Portugal lidere,
pela sua capacidade dinamizadora e lucidez prestigiada, todo a movimentação e
todas as ações que sejam necessárias para acompanhamento e solução das nossas
periferias, dos nossos mais desfavorecidos, dos nossos pobres (de
recursos e de orientação);
que lidere a voz profética que denuncie a injustiça, a desigualdade, a
exploração, o crime organizado e anuncie as razões da nossa esperança que a fé
incute nas pessoas e nas comunidades e que nos leve ao forte e constante
compromisso com o querer de Deus e as necessidades dos homens; e que o bulício
da cidade não cale a sua voz em tempo algum ou alguma vez a sedução da urbe ou
do poder ofusque a beleza da Igreja que se envolve com quem mais precisa, o
rosto do Cristo profeta, sacerdote e pastor.
E, em Roma, espera-se que, por
Cristo e pela Igreja, não esmoreça na solicitude por todas as Igrejas e não
desista de aconselhar o Papa em tudo o que a consciência de português teólogo, pastor
e homem das humanidades o determine, bem como desempenhe proficuamente todas as
missões de que for encarregado pela suprema autoridade da Igreja.
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