O inefável Miguel Angel Belloso,
a quem se reconhece o direito de ser liberal, antissocialista ou tudo aquilo
que Sua liberalíssima Majestade entender, aproveitou a sua coluna semanal de 20
de fevereiro do Diário de Notícias para
eleger Fernando Pessoa como padrinho das suas teses ao cronicar o seu texto e o
encimar com a epígrafe “Reencontrando Pessoa”.
Comecei a ler com ingénua
curiosidade, mas confesso que me senti sacrilegamente desiludido do ponto de
vista literário e político com a prosa do cidadão espanhol a quem parece sinal
de pouca educação opinar sobre as escolhas de outro país. Mas opina e toma
partido. Segundo ele, António Costa deverá ganhar as próximas eleições, mas o
país regressará ao tempo dos excessos, perigando o equilíbrio das contas
públicas e voltando o Estado ao despesismo crónico. Por outro lado, reconhece
em Passos Coelho o político académico (Quem dera!), incapaz da pedagogia de levar
o povo à manutenção das reformas empreendidas, que geraram o equilíbrio
orçamental, a redução das despesas públicas e o alívio da dívida – que
disparate! Reconhece-lhe similar falta de simpatia e poder de sedução que vê em
Rajoy, mas também os vê no rumo certo. Vá lá que não teremos de importar de
Espanha José Maria Aznar para dirigir a lusa Pátria.
O famoso colunista evoca
presunçosamente pretenso enunciado atribuído a Camões como pretexto de vinda a
Portugal a rever-se nos amigos. Não deixa de nos informar orgulhosamente que,
em nome da “Recolectos”, que adquirira o Diário
Económico, tentara converter “um jornal financeiro de esquerda” num meio de
comunicação de senso comum (só à direita é isso possível, pelos
vistos). Suspeita,
no entanto, que a sua marca “tenha sido efémera”, já que Portugal e Espanha,
com seus jornais, são de esquerda. E acusa os socialistas de, com a sua
governança, fazerem com que os pobres sofram e o nível de vida retroceda –
alijando a culpa dos fracassos para as “circunstâncias difíceis de controlar”.
Mas Belloso não se coíbe de
exalçar os amigos que fez no jornalismo e ainda mais na restauração. Num dos
restaurantes alfacinhas tem exposto um antigo texto seu “que fala da
impossibilidade de se ser liberal e socialista ao mesmo tempo”. Sendo assim,
parece melhor optar por ser liberal e conservador (que
isto é possível),
para, nos tempos livres, que para liberal são muitos e bons, poder regalar-se
num qualquer restaurante “Farta-brutos”, enquanto os pobres andam à côdea e
água. Entretanto, o liberal-conservador, nas solenes conferências, seguindo Arthur
Brooks, presidente do American Enterprise Institute, preconiza os quatro
valores para uma vida ordenada, próspera e feliz: fé, família, comunidade e
trabalho.
Agora, porém, lamenta-se pelo
facto de no seu país “estes valores” estarem em queda e escassearem “ali onde
são necessários com urgência, que é nas zonas mais pobres, onde as instituições
sociais são quase inexistentes e o socialismo e a demagogia encontram uma boa
presa em que fincar o dente”. Confessa não ser para si surpreendente encontrar
os amigos lisboetas um pouco abatidos e exaustos. Atribui o fenómeno à melancolia
reinante, que o português sabe converter em arte, e a outros motivos
conjunturais. Aponta o claro empobrecimento resultante das dolorosas medidas de
ajustamento.
Ora, como os socialistas, também o
liberal colunista, à moda destes governos neoliberais, atira a culpa para
circunstâncias incontroláveis: “o governo, que encontrou um país colapsado, sem
acesso aos mercados e que teve de recorrer à ajuda internacional”. Agora,
deu-se a volta de 360º: todas as decisões adotadas começam a dar os seus frutos
e o país pode registar este ano um crescimento notável. O governo foi capaz de
pôr as contas públicas em ordem, de reduzir a despesa e de “racionalizar” (gosto deste verbo) o subsídio de desemprego, o que
promoveu um vigor incipiente, um certo músculo e mais higiene. Não é que, além
de andarmos a viver acima das nossas possibilidades, também éramos fracos e não
nos lavávamos?
Assim, António Costa que se cuide: “seria
uma pena que tanto esforço fosse atirado borda fora”. Belloso avisa: “as
sondagens sugerem que o socialista António Costa tem muitas possibilidades de
ganhar as próximas eleições e de formar governo”. Critica-o pela sua afirmação
em Badajoz: “É possível outro modelo de crescimento económico”. A este jargão,
o diretor da revista Actualidad Economica
refila: “Não é verdade”. E argumenta com a possibilidade de o aumento do
salário mínimo dificultar o acesso dos trabalhadores com menos formação (não seria de pensar na valia de mais
formação?) e menos
produtivos ao mercado de trabalho e com a globalização que retira para destinos
menos hostis os capitais que se virem agravados de impostos. Mais afirma que,
se for estimulada a procura sem a liberalização da economia, crescerá o défice
externo. E sentencia, citando, não, como explicita, Smith, Hayek ou Friedman,
mas Fernando Pessoa: “É evidente que quanto mais o Estado intervém na vida da
sociedade, maior risco corre de a prejudicar. A violação das leis naturais tem
sanções automáticas às quais ninguém pode subtrair-se. Os riscos e prejuízos da
administração pelo Estado estão em relação direta com a extensão com que intervém
na vida social espontânea”.
***
Ora, é aqui que bate o ponto. Um
cidadão, português ou estrangeiro, tem o direito, e provavelmente o dever, de
ser liberal ou socialista, conservador ou progressista. Porém, não é legítimo escudar-se,
para isso, no discurso pessoano, por mais encomiásticas que sejam as
referências que se lhe fazem.
O poeta universal, de cujo
falecimento ocorre este ano o octogésimo aniversário, tem um percurso
literário, maxime poético, invejável;
uma profissão digna que lhe permitiu sobreviver; e um discurso social e
político interessante, mas nem sempre consequente, provavelmente um pouco
errático. Poeticamente, Pessoa utiliza o fingimento como forma de expressão e
como refinada técnica de produção poética. Pessoalmente, Fernando é um homem
poliédrico e literariamente um variegado polígrafo. Sempre ele e sempre
diferente. Muito se fala da unidade e diversidade, bem como da pluralidade e
diversidade, em Fernando Pessoa. E com razão. No entanto, ele não deixa de ser
o poeta da fragmentação do “eu”, da nostalgia da infância, do apego à tradição
e da rutura com o passado na ânsia da modernidade e do futuro, do cantor do
quotidiano e do salmista dos momentos e entes heroicos. É o poeta tranquilo do
guardador de rebanhos e cúmplice da natureza; o epicurista e estoico do
classicismo; o exaltador da modernidade das máquinas e do progresso, bem como
dos vícios e comportamentos desviantes da sociedade, que simultaneamente o
fascina e entedia; e o prosador do desassossego.
Como ensaísta, tornam-se célebres e
úteis os seus comentários, sobretudo os que à língua e à literatura dizem
respeito.
Porém, olhar para Fernando António
como um modelo de vida a seguir ou com um pensamento político coeso não é de
todo uma via a seguir. O modo como critica os últimos anos da monarquia e a
maneira como a elogia, quando vê a República, o encómio ao Presidente-rei, a
legitimação que faz da ditadura e o cansaço que dela sente, por ela se prolongar
enervantemente no tempo e não resolver os problemas como se propunha –
constituem, a meu ver, marcas de um percurso dialético em permanente rutura e
alternância e de procura de si e do outro.
Chamá-lo à esquerda por ter criticado
Salazar é pouco; mas não o será, se o surpreendermos transmutado em pastor ou
atravessado pela suavidade do canto da ceifeira e pela dureza do seu trabalho
ou cantor crítico de um império pelas malhas que tece contra a liberdade, a
pessoa e a família. Mas não segue um ideário socialista.
Católico não é, mas possui uma
inegável mística de espiritualidade teísta e patriótica vertida em Mensagem, para fazer retornar o país ao
seu desígnio de missionário espiritual e universal em que o mar já não separe,
mas una. Não me parece que abençoasse a manutenção, pelas armas, de um império
colonial a todo o custo, com o sacrifício inglório de vidas humanas.
Dizem que é conservador e liberal
dentro do conservantismo, mas não seguramente no sentido, que Belloso pretende,
do lassez faire, laissez passer, ou
seja, da concorrência desenfreada geradora de um capitalismo caprichoso e
demolidor, espezinhante dos mais fracos e pobres. É “conservador do estilo
inglês” e “absolutamente antirreacionário”, como se autodefine numa súmula
autobiográfica de 1935.
É óbvio que o controlo do Estado
comporta um perigo e pode configurar um prejuízo, mas a concorrência
desenfreada movida em absoluto pela sede do lucro não será menos perigosa e
lesiva da sociedade. Não será, Miguel Belloso? Tanto assim é que Pessoa, homem tão
livre como quase anárquico, elogiou o ditador Salazar a quem considerou um
salvador da nação porque pôs ordem no país, nas contas, na sociedade, na
política. E chega a elogiar-lhe a clareza de expressão e a firmeza de vontade,
qualidades raras em Portugal. Mas daí a julgá-lo fascista ou adepto de um
regime ditatorial vai um longo salto, que Pessoa não dá. Pelo contrário,
criticou acerbamente, nos últimos dos anos de vida, o perfil de Oliveira
Salazar, a quem chamou de “contabilista”, profissão necessária e digna, mas que
não tem “implícitas diretivas”. Reconhecendo que “um país tem que governar-se
com contabilidade, mas não pode governar-se por contabilidade” (Que Belloso medite nisto, bem como
Passos e Rajoy!).
Aludindo à prestação do professor como Ministro das Finanças, infere que
“assistimos à cesarização de um contabilista”. E, três anos depois de ele ter
assumido a chefia do governo, escreveu que Salazar era “um materialista
católico, um ateu nato que respeita a Virgem”.
Desligá-lo do regime, que hostilizou
nos dois últimos anos de vida, é tão abusivo como colá-lo ao fascismo, só
porque se desencantou da República e da sua democracia e teve alguns furores
críticos. Reparam em que não aceitou a reforma ortográfica de 1911. Pergunto-me
se assumiria a de 1945 ou a de 1990.
Entretanto, aguardemos pela leitura
do livro sobre o fascismo, a ditadura
nacional e Salazar, de Fernando Pessoa, edição de 2015, por José Barreto,
da “Tinta da China”.
***
Pessoa vale como poeta plúrimo e polimorfo.
Não é preciso encurralá-lo num qualquer sistema político ou quadrante ideológico.
Ele, sem deixar de ser homem comum, paira acima de tudo.
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