quinta-feira, 24 de outubro de 2024

“Um exemplo concreto não consigo dar”

 

 

Na sequência do 42.º Congresso do Partido Social Democrata (PSD), ocorrido no penúltimo fim de semana de outubro, em Braga, onde foi conclamada a necessidade de retirar a carga ideológica da disciplina de Cidadania (sic), o Ministro da Educação, Ciência e Inovação (MECI), Fernando Alexandre, propôs-se, a 21 de outubro (o dia seguinte ao do discurso emblemático do primeiro-ministro e presidente do PSD), resolver o mal-estar que a disciplina “causa em algumas famílias”. 

Falando sobre o tema, pela primeira vez, o governante precisou estar em curso uma avaliação externa à disciplina, que será concluída “em abril / maio”. Com efeito, segundo o Executivo da Aliança Democrática (AD), o currículo de Cidadania inclui “questões que não têm sido consensuais”, sobretudo ao nível da educação sexual. “Quando temos as famílias preocupadas, obviamente devemos estar atentos”, garantiu.

É curioso saber-se que o MECI não dispõe de uma rede válida (professores, inspetores, autarcas, associações de pais, Conselho de Escolas, Conselho Nacional de Educação, etc.) para avaliar uma peça do currículo escolar e, alegadamente, se veja na necessidade de recorrer a uma avaliação externa. Já vi isso no tempo de Nuno Crato, que entregou a elaboração das provas finais de cada um dos ciclos do Ensino Básico e as provas de exame do Ensino Secundário a uma entidade independente, que foi o Instituto de Avaliação Educacional, Instituto Público (IAVE, PT), afinal um organismo do então Ministério da Educação e Ciência (MEC), atualmente MECI.  

Porém, a prestação de Fernando Alexandre, nesta matéria, foi politicamente anedótica, porquanto, ao ser questionado sobre casos concretos, honestamente, mostrou um sorriso amarelo e declarou: “Um exemplo concreto não consigo dar.”

É caso para concluir que o ministro está a gozar com as escolas, com os professores e com os alunos, ou está a obedecer, cegamente, às diretrizes do primeiro-ministro (PM), que proclamou ser necessário libertar a disciplina em causa das atuais “amarras ideológicas”, quando não está a seguir a linha ideológica do líder do Chega, que acusou de hipocrisia o PM. Todavia, Luís Montenegro, no dia 21, questionado sobre se está a capturar as bandeiras do partido de André Ventura, retorquiu, dizendo, com a suavidade e com a “humildade” que lhe são peculiares, que pretende “defender as bandeiras que interessam à população”.

No entanto, segundo o ministro da tutela as alterações não serão “muito significativas” e não é certo que entrem em vigor já no próximo ano letivo. Afinal, a tutela, feita apóstola do bem, vai deixar que as escolas continuem a “corromper” crianças, adolescentes e jovens!   

Sobre o alegado mal-estar da população, só é conhecido o caso de dois irmãos que foram impedidos pelos pais da frequência das atividades específicas da Estratégia para a Cidadania, nomeadamente, a frequência das aulas a ela atinentes. E, nem sequer, aceitaram a elaboração e a apresentação de um trabalho alternativo sugerido pelo Sistema Educativo para efeitos de transição de ano. Assim, a uma suposta ideologia, o encarregado de educação respondeu com outra ideologia. Enfim, no campo, “Estavam frente a frente os dous contendores…”.  É caso para questionar como pode uma célula minúscula da sociedade sobrepor-se ao sentir da esmagadora maioria da população cliente da escola e interessada na ação educativa. Ou estará a organizar-se por aí uma especial maioria silenciosa?

Entretanto, diretores escolares e representantes de pais dizem que é raro haver queixas.

Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), afirmou que o problema é dos políticos e que a escola tem problemas mais prementes “à espera de resolução”, como a falta de professores e de funcionários. Sobre a matéria em causa, declarou não haver grandes queixas, até porque o programa se desenvolve em torno de 18 temas, todos “muito ligados” à Constituição e quase todos “consensualizados” no país, sendo a possível exceção a educação sexual. Assim, entende que será vantajoso um debate público sobre se a matéria deve ser lecionada. Porém, explicitou que é comum as escolas convidarem pessoal da área da Saúde para irem às escolas falar do tema.

Que o tema deve ser debatido e aprofundado é perfeitamente aplausível, mas, senhor presidente da ANDAEP, retirar a educação sexual da alçada da escola é temerário no momento atual, quando muitos progenitores – dada a absorção pelo trabalho pelo trabalho, que lhes captura o tempo e as energias, e dada a invasão da vida dos adolescentes pelas redes sociais e por alguns órgãos de comunicação social, não têm capacidade – nem tempo têm para fazerem esse tipo de educação.

A líder da Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP), Mariana Carvalho, também referiu “não ser muito frequente” haver queixas sobre o tema, embora haja pais que não querem que os filhos frequentem essas aulas. Não sabemos se tem casos concretos a apontar ou se navega como o ministro da tutela. Porém, uma coisa é certa: admitindo que se podem “clarificar conceitos”, pediu para se “desmistificar” a ideia de que a igualdade de género é “uma questão ideológica”.

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À “Área-Escola”, introduzida pela Reforma Educativa de Roberto Carneiro, em que também se abordavam temas de cidadania e de formação cívica, sucederam as áreas curriculares não disciplinares no Ensino Básico (ACND) – Área de Projeto, Estudo Acompanhado e Formação Cívica – sendo a cidadania uma área transversal a todo o currículo. O 10.º ano rodava também a Cidadania ocupando algum momento letivo do horário semanal e o 12.º entregava-se à Área de Projeto em dois tempos letivos do horário semanal, com temas conexos com a Cidadania.

Ainda em tempo da pré-troika, as ACND foram suprimidas pelo Ministério das Finanças, com exceção do 1.º Ciclo, pois, aí eram as autarquias e as associações locais que arcavam com as despesas. E Área de Projeto do 12.º ano desapareceu do mapa curricular.

Entretanto, João Costa, que participou nos governos de António Costa, no setor da Educação (nos dois primeiros, como secretário de Estado e, no último, como ministro), conseguiu fazer aprovar e implementar a Estratégia de Educação para a Cidadania, considerando os temas a ela respeitantes como transversais a todas as áreas curriculares, mas criando uma disciplina específica obrigatória para o 2.º Ciclo e para o 3.º Ciclo.

O plano estrutura-se, basicamente, em três grupos. O primeiro, obrigatório, abrange seis temas: direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento sustentável, ambiente e saúde. O segundo grupo desenvolve-se em, pelo menos, dois ciclos do Ensino Básico: sexualidade, media, participação democrática, literacia financeira, segurança rodoviária e risco. E o terceiro abrange temas, como: bem-estar animal, empreendedorismo, trabalho, segurança, defesa e voluntariado.

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É natural que a área da Cidadania exiba temas discutíveis, aliás como outras peças curriculares. Porém, a discordância não nos deve impedir a aprendizagem e o debate. Obviamente, não concordo, por exemplo, com a pena de morte, com a prisão perpétua, com o ateísmo, etc. Porém, nunca me furtei ao debate sobre qualquer uma das matérias que estejam em cima da mesa e seja com quem for.

Perfilho a igualdade de género, na dimensão de que todos os seres humanos têm os mesmos direitos e deveres, igual acesso às profissões, ao emprego, à habitação, à saúde, à educação, à cultura, à política, à segurança. Todavia, partilho também as diferenças e recuso a identidade de género, como se não fosse a Natureza a estabelecer a diferença, mas a sociedade. É óbvio que a intervenção da ciência no apoio à vida e, em especial, ao ser humano, oferece aos seres humanos uma inegável mais-valia. E fica assente, em meu entender, que, primeiro, cada um/a é ser humano o “Homo, hominis” latino ou o “ánthropos, anthrópou” grego, e só a partir daí se formam o varão (“vir, viri” latino ou “aner, andrós” grego) e a mulher (“mulier, mulieris” latino ou “gyné, gynaikós” grego). Talvez por isso me repugne a linguagem dita neutra, sobretudo se forçada, mas perfilho a linguagem que inclusiva dos dois géneros (por exemplo, amigos e amigas, deputadas e deputados…).   

Não obstante, estes assuntos devem ser abordados nas atividades da Estratégia para a Cidadania, sobretudo, em níveis de educação e ensino em que os/as alunos/as já tenham alguma autonomia de pensamento.

Ridícula foi, pois, do meu ponto de vista, a tirada de um socialdemocrata, que, ao regressar de Braga, do referido Congresso, diz ter jantado com familiares que têm filhos em idade escolar e, tendo-lhes perguntado o que aprenderam nas aulas de Cidadania, reponderam: “Nada!”

Acredito que não tenham aprendido nada nessas aulas, mas pergunto-me se aprenderam alguma coisa nas outras disciplinas. Tudo depende da motivação e da dinâmica da promoção das aprendizagens.

Nas diversas disciplinas e nas ACND, o professor deve promover um ensino mais problematizador do que bancário; e, sem deixar de prestar a informação necessária sobre os conteúdos, deve promover a cintilação na turma, fazendo render o trabalho de cada um/a e dos diversos grupos e fornecer sínteses complementares.

A Cidadania está ideologizada? É natural, como tudo. Se lhe retirarem esta ideologia, fornecem-lhe outra, quiçá de conservadorismo atávico.

Levantam-se vozes (poucas) em oposição à Cidadania. Porque não acusam os programas de Geografia, de História, de Filosofia, de Literatura, de Língua, de Biologia, de Antropologia, de Economia, de Direito, de Sociologia e por aí adiante? Hoje, por exemplo, uns ensinam o fixismo / criacionismo das espécies, ao passo que outros ensinam o seu transformismo / evolução; uns ensinam o neomalthusianismo, outros ensinam o contrário; uns são pela vacinação e lutam contra as alterações climáticas; outros são negacionistas.

Até em ciências ditas exatas, como a Matemática, vivemos bem com inexatidões e convenções. Por exemplo, a teoria dos conjuntos ditava conjuntos singulares (de um elemento) e conjuntos vazios (sem qualquer elemento), o que vem contradizer a noção de conjunto; convencionamos, na potenciação, que qualquer número elevado a zero (0) é igual a um; vivemos bem com a área e com o perímetro do círculo com base num fator inexato, já que o π (pi) é um número decimal com dízima infinita; e, em Geometria, apresenta-se o ângulo nulo (de zero graus), em contraponto ao ângulo giro (de volta inteira – 360 graus). Ora, se é nulo, não é ângulo. Até dizemos que demos uma volta de 180 graus, quando isso é só meia volta.

Uns ensinam que o zero é um número natural, outros dizem que não; uns consideram primo o número um, outros não o consideram. Falamos de números dígitos (0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9), mas não temos o dedo zero, temos 10 dedos e 10 não é número dígito. Porém, quando, por exemplo, um partido político obtém 11% dos votos, o seu escore já atingiu os dois dígitos.

Confiamos nas estatísticas, mas, se um indivíduo tem dois milhões de e outros tem 500 mil, as estatísticas mandam que tem, cada um, um milhão e 250 mil euros. Achei piada, quando li, em tempos que, em Portugal, cada mulher tinha 1,3 filhos.  

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Enfim, deixemos em paz a Cidadania e a escola. Promovamos, antes, uma sólida educação das crianças, dos adolescentes e dos jovens, levando-os a pensar, a discernir e a fazer opções, sempre num espírito de tolerância, de respeito e de cooperação solidária!

Dá para pensar: quem não tem jeito para fazer mais nada diverte-se a atacar aquelas e aqueles que tentam fazer o melhor que sabem e que lhes é possível. Não têm pejo de se considerarem donos absolutos da verdade. Porém, o interesse público está para lá dos programas de governo e das opções partidárias.

2024.10.24 – Louro de Carvalho

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