domingo, 13 de outubro de 2024

Procurador-geral revela intenções e traça linhas vermelhas

 

Amadeu Guerra tomou posse como procurador-geral da República (PGR), a 12 de outubro, no Palácio de Belém, perante o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República (PAR) o primeiro-ministro (PM).    

Do seu discurso, destaca-se a referência à antecessora, que cessou funções nesse momento: “Não teve a sorte do seu lado, no decurso do seu mandato, em que ocorreu uma pandemia que – durante cerca de dois anos – alterou os hábitos e a motivação dos Portugueses.” Depois, sustentou que ela exercera o cargo, como sempre, “com honestidade intelectual e de forma dedicada”.

É ironia mal aplicada, pois a pandemia condicionou toda a atividade humana no Mundo, pelo que é descabida como desculpa para alguma falha no setor, e as críticas não eram de ordem moral.  

O PGR frisou que o Ministério Público (MP) não tem competências e funções só na direção da investigação e no exercício da ação penal, mas tem competências alargadas e muito diversificadas. Por exemplo, representa o Estado na jurisdição administrativa e cível; garante o exercício das responsabilidades parentais; assegura a defesa e a promoção dos direitos e interesses das crianças, jovens, idosos, adultos com capacidade diminuída e de outras pessoas especialmente vulneráveis; tem papel crucial atribuído pela legislação junto do “maior acompanhado”; e, no contencioso administrativo, “propõe ações e intervém em processos destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos: a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida e o património cultural”.

Destacou “a representação dos trabalhadores e [das] suas famílias nos Tribunais do Trabalho, a fiscalização da constitucionalidade [podendo requerê-la ao Tribunal Constitucional, no caso da fiscalização sucessiva geral, ou sendo obrigado a isso, em determinados casos de fiscalização em concreto] e o relevante papel na prevenção criminal e na prevenção do branqueamento”.

Considera, pois, enganador comparar “a ratio de magistrados por número de habitantes”, sem ter em conta as competências do MP no país. Neste sentido, seleciona como falta de meios humanos o reduzido número de oficiais de justiça, pelo que apelou ao governo que “dê prioridade à revisão do Estatuto dos Funcionários de Justiça”, criando mecanismos que tornem “a carreira mais aliciante”. Apontando a morosidade nos tribunais administrativos e fiscais, apelou ao governo para a tomada de medidas que assegurem a resolução do problema das pendências. E pediu novo impulso na transição digital na Justiça, pois a falta de investimento “em meios tecnológicos avançados, em aplicações informáticas de gestão processual ou sistemas de gestão e [de tratamento da prova recolhida limita, em muito, a eficiência do sistema de Justiça”.

Aludiu ao reforço do quadro de magistrados do MP, entre 2017 e 2023, que pensa insuficiente para suprir as necessidades. Porém, sustenta que, “enquanto os recursos são escassos, temos de dar o nosso melhor, com os recursos disponíveis”. E, julgando inútil lamentar a falta de meios, vincou a necessidade de mobilização, de motivação, de trabalho em equipa, de pragmatismo e de diminuição da morosidade. Assegurou que todos os magistrados podem contar o empenho, a determinação e a vontade do PGR de colocar a imagem do MP “no patamar que merece”. E, vincando que o prestígio do MP não se concretiza com meros “processos de intenções” ou com “discursos de autoelogio”, considerou que se consegue, quando a comunidade “sentir que há resultados efetivos, que ocorreu uma mudança de mentalidades e que foi desencadeada uma mobilização, para fazer cada vez melhor”. E, porque isso está ao alcance do MP, diz contar com a disponibilidade dos seus magistrados com os oficiais de justiça, com os órgãos de polícia criminal e com todos os que coadjuvam esta magistratura.

Referiu que a Lei de Política Criminal enunciou as prioridades para o biénio 2023-2025, que têm de ser cumpridas, efetivamente. Porém, há crimes que merecem a especial preocupação do PGR: o crime de homicídio, em contexto de violência doméstica, e o crime de violência doméstica “são alarmantes, devido ao número de ocorrências”. Por isso, julga necessária “uma reflexão com o objetivo de encontrar mecanismos específicos”, para “evitar que ocorra o crime de homicídio, através de uma análise de risco atempada e tecnicamente oportuna”; e “uma análise dos casos concretos” das “situações que culminaram com o crime de homicídio, tendo em vista verificar se há razões para alterar os procedimentos”. E considera que devem ser enumeradas as razões pelas quais, em grande parte dos casos, são as vítimas (incluindo os filhos menores) que têm de abandonar a casa de família e procurar proteção em casas de acolhimento.

Nos crimes de corrupção e nos crimes conexos, bem como na criminalidade económico-financeira, é intenção do PGR acompanhar de perto, através dos diretores dos Departamentos de Investigação e Ação Penal (DIAP) Regionais e do Departamento de Investigação e Ação Penal DCIAP, as razões dos atrasos. E deve ser envolvida a Polícia Judiciária (PJ), de forma efetiva, face ao aumento recente dos seus meios humanos: inspetores, peritos e meios tecnológicos.  

Segundo a edição de 2023 do Índice de Perceção da Corrupção (IPC), “o combate à corrupção, em Portugal, continua a não avançar e tem falhas ao nível da integridade na política”. Segundo o IPC, Portugal “obteve 61 pontos, fixando-se na 34.ª posição em 180 países”. Ou seja, os cidadãos julgam ineficazes as políticas anticorrupção e as medidas da luta contra a corrupção. Aqui, o PGR sustenta que, “neste tipo de criminalidade, é tão ou mais eficaz assegurar a perda de bens do que uma condenação em prisão”. Assim, prioriza a dinamização e a concretização da recuperação de ativos, para o que será criada uma estrutura ágil, com formação necessária, a fim de realizar ou de apoiar o titular do inquérito na inventariação dos ativos e na apresentação dos requerimentos necessários à decisão de arresto preventivo.

Os crimes praticados contra vítimas vulneráveis, em particular os idosos, são a preocupação de todos. Por isso, “estas investigações devem ser céleres, com emissão de despacho final em prazo muito curto”, pois a celeridade do processo é fator relevante de prevenção. E, no domínio da cibercriminalidade, o número, a sofisticação e o impacto dos incidentes aumentam as ameaças dos sistemas de informação, com prejuízos económicos avultados nos setores das infraestruturas críticas ou com perdas menos relevantes, mas que “afetam muitos cidadãos”.

Diz Amadeu Guerra que o MP quer desenvolver o seu trabalho, de forma empenhada e ao serviço da comunidade, mas sem o alarde mediático e discussão pública da sua atividade em processos concretos. “Ouve sempre as críticas justas e fundamentadas, aceitando-as quando contribuam para melhorar o seu desempenho, para alterar procedimentos e torná-los mais adequados para assegurar a celeridade e a eficiência, ou quando contribuam para facilitar o cumprimento mais efetivo do serviço público que lhe incumbe prosseguir”, explanou.

O PGR declarou-se sempre disponível para prestar contas no Parlamento, após um período inicial de contacto com a realidade nos tribunais. Prometeu revisitar as questões do segredo de justiça, pela análise das medidas estabelecidas no Relatório elaborado em 2014, no estudo do regime de segredo de justiça em alguns países e nas boas práticas seguidas por alguns magistrados. As soluções têm de passar pela abordagem das questões criminais, dos direitos, liberdades e garantias e pelo equilíbrio entre estes aspetos e o direito à informação.

Quanto à detenção de arguidos e à apresentação ao Juiz de Instrução (JIC), há regras e prazos fixados na lei. O MP cumpre-os e não se vislumbram as razões das críticas que, às vezes, lhe são feitas. Porém, na ótica do PGR, “a ideia de fixação perentória de um prazo desproporcionado compromete o esclarecimento e a recolha de informação necessária à decisão judicial, com risco de violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade”.

Amadeu Guerra declarou-se desfavorável “a alterações legislativas levadas a cabo na decorrência de processos concretos, de forma precipitada, por vezes, sem justificação e sem ponderação”. E há “linhas vermelhas” que não aceita, nomeadamente, a alteração do Estatuto do Ministério Público. em violação da Constituição e da sua autonomia e independência.

Por fim, garantiu que o MP quer dar o seu contributo para prestar um melhor serviço aos cidadãos.

***

Alguns observadores veem, com alguma razão, no discurso de Amadeu Guerra, entrelinhas de crítica a um MP desacreditado.

Com efeito, ao querer o MP de volta ao “patamar que merece”, assumiu que a instituição com quase dois mil profissionais enfrenta uma crise reputacional. E, criticando, veladamente, Lucília Gago, sustentou que o prestígio do MP não se concretiza com meros “processos de intenções” ou com “discursos de autoelogio”, mas com a perceção da comunidade de que há resultados efetivos, por via da mudança de mentalidades e da mobilização para fazer cada vez melhor.

Deixou recados aos políticos eleitos e à antecessora, ao declarar-se disponível para “prestar contas no Parlamento”: enquanto os eleitos exigiam a prestação de contas, Lucília Gago fazia-se cara.  

No atinente à questão sensível pela qual o MP tem sido alvo de críticas, avisou que, “nos crimes de corrupção e crimes conexos, bem como na criminalidade económico financeira, é sua intenção acompanhar, através dos diretores dos DIAP Regionais e do DCIAP, as razões dos atrasos”. É de lembrar que, por exemplo, António Mexia é arguido, há 12 anos, sem acusação, depois de dezenas de adiamentos.

No quadro da autonomia do MP, Amadeu Guerra lembrou que a subordinação dos magistrados é “linha vermelha” que não atravessam nem aceita. Enquanto os magistrados judiciais têm total independência, os do MP apenas gozam de autonomia, estando submetidos ao poder hierárquico. Esta foi alusão implícita aos manifestos dos 50, que se tornaram mais de 100, aos comentários políticos – incluindo os do PR e os do PR – e aos inúmeros comentários da sociedade civil, nos últimos meses, à falta de comunicação e de prestação de contas de Lucília Gago. Porém, na prestação de contas, a crítica não vai só para a antecessora. O PGR, prometendo que estará sempre disponível para ir ao Parlamento, sublinha que o MP precisa de e quer desenvolver o seu trabalho sem o alarde mediático e sem a discussão pública da sua atividade em processos concretos.

Lembrou a PJ, numa altura em que o mandato do atual diretor chegou ao fim, em junho, e que a ministra da Justiça já fez saber que a decisão de o renovar, ou não, será a próxima que tomará. E, ao frisar que se deve envolver a PJ, face ao aumento recente dos seus meios humanos e tecnológicos, critica o facto de, na fase inicial da investigação da Operação Influencer, não se ter querido contar com o apoio desta polícia, o que gerou um mau estar entre a PJ e o MP.

O líder do MP prometeu revisitar as questões relativas ao segredo de justiça e avisou que as soluções têm de passar pela abordagem das questões criminais, dos direitos, liberdades e garantias e pelo equilíbrio entre estes aspetos e o direito à informação. É um problema de décadas.

Os direitos, liberdades e garantias e o equilíbrio entre estes aspetos e o direito à informação não foram esquecidos. O PGR avisou que, em relação à detenção de arguidos e à apresentação ao JIC, há regras e prazos fixados na lei. O MP cumpre-os, pelo que não há razões para algumas críticas. Está a passar a responsabilidade para o JIC.

Ao entender que “a ideia de fixação perentória de um prazo desproporcionado compromete o esclarecimento e [a] recolha de informação necessária à decisão judicial, com risco de violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade”, alude à detenção de várias semanas dos arguidos no processo de alegada corrupção na Madeira, que veio, mais tarde, a ser assumido por Lucília Gago como “o normal tempo de uma investigação”.

O PGR falou da falta de meios humanos no MP, mas não a assumiu como sendo a principal causa da situação atual da Justiça, antes acentuou a motivação, a mobilização e o pragmatismo. Porém, referiu a “falta de investimento dos sucessivos governos em meios tecnológicos avançados, em aplicações informáticas de gestão processual ou sistemas de gestão e tratamento da prova recolhida limita, em muito, a eficiência do sistema de Justiça”.

No quadro da corrupção, o magistrado relembrou que os cidadãos consideram que ineficazes “as políticas anticorrupção e as medidas tomadas na luta contra a corrupção”, que é uma prioridade dinamizar e concretizar a recuperação de ativos e que será criada uma estrutura ágil, para “realizar ou [para] apoiar o titular do inquérito na inventariação dos ativos e na apresentação dos requerimentos necessários à decisão de arresto preventivo”.

***

Nas entrelinhas, o PGR disparou contra alguns setores da opinião pública, contra o próprio MP, nomeadamente, contra a antecessora, contra os deputados, contra os sucessivos governos, contra os JIC. Formulou uma extensa carta de intenções, para cuja concretização precisa da cooperação dos seus magistrados e de outras entidades. Colocou-se no epicentro do cenário. Como líder, deveria esperar e ajustar o plano com os cooperantes, tecendo, agora, considerações de fundo.  

2024.10.13 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário