A liturgia do 27.º domingo do Tempo
Comum no Ano B revela o plano de Deus para o matrimónio do homem com a mulher. Criados
para se amarem, Deus chamou-os a caminharem de mãos dadas, a construírem um projeto
comum, assente na entrega total e na plena comunhão de vida.
A primeira leitura (Gn 2,18-24), em imagens de cor e de poesia, assegura que foi Deus que
inventou o amor. Criou o homem e a mulher e pô-los um ao lado do outro, para se
amarem, para partilharem a vida, para serem auxílio mútuo, para se ajudarem e
completarem. É nesse amor que encontrarão a sua vocação e a sua plena
realização.
O trecho de Gn 2,4b-3,24 – o relato javista da criação – é do século X a.C. e
deve ter aparecido em Judá, no tempo do rei Salomão. Será obra de um catequista
popular, que ensina com recurso a imagens sugestivas, coloridas e fortes. A sua
finalidade não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que ensinar
como o Mundo e o homem apareceram, ensina que, na origem do Mundo, da vida e do
homem está Javé.
Para apresentar tal catequese, os
teólogos javistas utilizaram elementos simbólicos e literários das cosmogonias
mesopotâmicas, como a formação do homem do pó da terra. Porém, transformaram e
adaptaram esses símbolos, dando-lhes novo enquadramento e interpretação e
pondo-os ao serviço da fé de Israel. Ou seja, a linguagem e a apresentação das
narrações bíblicas da criação têm paralelos significativos com os mitos originários
dos povos da zona do Crescente Fértil, mas as conclusões, sobretudo, o
ensinamento sobre Deus e sobre o lugar do homem no desígnio de Deus, são
diferentes: mais maduras, ponderadas, profundas e consistentes.
O trecho em apreço situa-nos no jardim
do Éden, espaço ideal onde, segundo o hagiógrafo, Deus colocou o homem que
tinha criado. Segundo o relato, o Éden é lugar de água abundante e com muitas
árvores (para quem sentia a ameaça do deserto, a felicidade seria lugar com
muita água, clima de frescura, ambiente de árvores e de verdura abundante).
Todavia, na ótica do catequista javista, o homem não estava realizado, porque
lhe faltava alguém com quem compartilhar a vida e a felicidade. O homem não
fora criado para viver a sós, mas em relação.
Criado o homem e colocado no jardim
da felicidade, Deus divisou-lhe a solidão (“não é bom que o homem esteja só”) e
quis dar-lhe solução.
Primeiro, fez desfilar diante do
homem “todos os animais do campo e todas as aves do céu”, para que ele os
chamasse “pelos seus nomes”. Pelas ideias do Médio Oriente antigo, “dar um
nome” era ato de domínio e de posse. Por outro lado, o facto de Deus ter
trazido os animais para que o homem lhes desse o nome era, na ótica do
catequista, o reconhecimento, por parte de Deus, da autonomia do homem e a
associação do homem à obra criadora e ordenadora de Deus. Porém, o homem não
encontrou, no mundo animal que Deus lhe confiou, “uma auxiliar semelhante a
ele”. Por muito entusiasmante que fosse esse mundo, não dava ao homem a ajuda e
o complemento que esperava. Para que o homem se realize completamente, Deus
intervém de novo.
A nova ação de Deus começa com o “sono
profundo” do homem. Agindo como hábil cirurgião, tirou parte do corpo do homem e,
com ela, fez a mulher. O texto fala de “zela”, traduzível por “costela”, mas
que pode significar “lado” ou “costado”. O sono profundo justifica-se pelo
facto de, na conceção do autor javista, criar ser segredo de Deus e o homem não
poder testemunhar tal ato misterioso, restando-lhe admirar a criação de Deus e
adorá-Lo pelas suas obras admiráveis.
É de notar que ser a mulher tirada
do lado do homem impõe igualdade de natureza, portanto, igual dignidade, igualdade
de deveres e de direitos, capacidade e necessidade de compartilhar vida.
Se a mulher houvesse sido retirada
da cabeça do homem, seria superior. Numa ideia destas assenta o matriarcado
absoluto. E, se tivesse sido retirada do calcanhar, seria inferior e até
desprezível. Nisto assenta o patriarcado absoluto, o tratamento da mulher como objeto,
como propriedade do homem (do pai ou do marido).
Depois de ter feito a mulher, Javé
acompanha-a à presença do homem. A mulher é apresentada como a noiva conduzida
à presença do noivo e Deus como o padrinho desse noivado. O homem, desperto do
sono profundo, acolhe a mulher com um grito de alegria e reconhece-a como a
companhia que faltava, o seu complemento, o seu outro eu: “Esta é, realmente,
osso dos meus ossos e carne da minha carne”. O homem (em Hebraico, ish: adão, feito do barro) dá à companheira
o nome de “mulher” (em Hebraico, ishah:
adã, feita do barro, como o homem), pois foi tirada do homem. A proximidade das
duas palavras sugere proximidade entre o homem e a mulher, igualdade
fundamental em dignidade, complementaridade, parentesco.
O trecho bíblico termina com um
comentário que não é de Deus, nem do homem, nem da mulher, mas do catequista:
“Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão
uma só carne”. O comentário pretende responder à questão: De onde vem essa
força poderosa que é o amor, mais forte do que o primeiro vínculo de todos, o
que nos liga aos pais? Para o catequista javista, o amor vem de Deus, que fez o
homem e a mulher de uma só carne; por isso, homem e mulher buscam a unidade e
estão destinados a viver em comunhão um com o outro. Não se justifica, de modo
algum, a violência doméstica (entre homem e mulher), como não se justifica a discriminação
política e social em razão do sexo e, muito menos, a coisificação da mulher.
***
No Evangelho (Mc 10,2-16), Jesus,
confrontado com a Lei judaica do divórcio, reafirma o desígnio de Deus para o
homem e para a mulher, que exclui tudo o que é negação do amor: o egocentrismo,
o domínio de um sobre o outro, as atitudes e gestos que ferem a dignidade do
outro, o uso egoísta do outro. Na visão de Deus, o amor não tem prazo; tem a
marca da eternidade.
Despedindo-se da Galileia, Jesus caminha
para Jerusalém, ao encontro do seu destino final. Não seguiu pelo caminho da
montanha, que passava pelo centro do país e atravessava a Samaria, mas pelo que
desce ao longo do Jordão e que era o caminho habitual dos peregrinos que iam da
Galileia para Jerusalém. O episódio em causa é colocado por Marcos “na região
da Judeia, para além do Jordão” – isto é, no território transjordânico da
Pereia, governado por Herodes Antipas, tetrarca da Galileia e da Pereia, que tinha,
pouco antes, mandado executar João Batista, por este o ter criticado por se ter
divorciado da esposa legítima para viver maritalmente com Herodíade, sua
cunhada. No caminho para Jerusalém, Jesus volta a encontrar as multidões e a ensiná-las.
Os discípulos caminham atrás de Jesus. Também aqui, reaparecem os fariseus para
confrontarem Jesus. Desta vez, trazem-Lhe uma questão relativa ao divórcio: “Pode
um homem repudiar a sua mulher?”. A razão da pergunta é pôr Jesus à prova.
A Lei de Israel permitia que o homem
tomasse a iniciativa de despedir a sua mulher, pondo fim à relação (“quando um
homem tomar uma mulher e a desposar, se depois ela deixar de lhe agradar, por
ter descoberto algo de inconveniente, escrever-lhe-á um documento de divórcio,
entregar-lho-á em mão e despedi-la-á de sua casa” – Dt 24,1). O que se discutia eram as razões que poderiam fundamentar
a rejeição da mulher por parte do marido. A escola de Shammai, mais rigorista,
defendia que só razão muito grave (adultério ou má conduta da mulher) dava ao
marido o direito de repudiar a esposa, mas a escola de Hillel, dominante na
época de Jesus, ensinava que qualquer motivo (a esposa cozinhava mal ou, por
qualquer razão, tinha deixado de agradar ao marido), servia para o homem
despedir a mulher. Já a mulher dificilmente obteria o divórcio em tribunal (só
no caso de o marido estar afetado pela lepra ou de exercer ofício repugnante).
Assim, a lei judaica do divórcio era
altamente discriminatória. O homem podia facilmente obter o divórcio e casar
com outra mulher; mas a mulher, praticamente, não podia tomar a iniciativa de
se divorciar do marido. E a mulher divorciada ficava em situação social
intolerável: sem meios de subsistência, sem ninguém que a defendesse; e, se não
fosse acolhida na casa do pai ou de um irmão, ficava condenada a pedir esmola
ou a prostituir-se.
À pergunta dos fariseus (“Pode um
homem repudiar a sua mulher?”), Jesus responde com outra: “Que vos ordenou
Moisés?”). De facto, a lei do divórcio tal como aparece formulada em Dt 24,1-4, é atribuída a Moisés. No
entanto, é provável que Jesus esteja a sugerir que a lei do divórcio não vem de
Deus e não estava inscrita no projeto inicial de Deus para os seres humanos.
Porém, Moisés permitiu ao homem
entregar à mulher um certificado de divórcio, que determinava o fim da relação.
De acordo com Jesus, foi para resolver o problema criado pela “dureza do
coração” dos homens. De facto, quando o homem decidia abandonar a esposa (era frequente),
colocava-a em situação perigosa. Se não tivesse documento comprovativo da sua
situação, continuava juridicamente ligada àquele homem; e, no caso de se
envolver noutra relação, era considerada adúltera. Corria o risco da lapidação,
o castigo reservado às adúlteras. Necessitava, portanto, de documento
comprovativo de que era livre. Ao admitir que o homem entregasse à mulher o
“certificado de divórcio”, Moisés não estava a banalizar o divórcio ou a dizer
que o divórcio era coisa boa; estava só a fazer com que a mulher não ficasse
num beco sem saída.
Contudo, depois de explicar a razão
da disposição dada por Moisés, Jesus lembra o projeto primordial de Deus para o
homem e para a mulher. Citando livremente Gn
1,27 e Gn 2,24, declara que, no
projeto original de Deus, o homem e a mulher foram criados um para o outro,
para se completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, homem
e mulher destinam-se a ser “uma só carne”. Ser “uma só carne” implica viverem
em comunhão total, dando-se um ao outro, partilhando a vida, unidos por um amor,
que é mais forte do que qualquer outro vínculo. A separação é o fracasso do
amor. Deus não considera um amor que não seja total e duradouro. Só o amor
eterno, expresso no compromisso indissolúvel, respeita o projeto de Deus, que não
previa a discriminação da mulher, a colocação da mulher num plano subalterno, o
tratamento da mulher como mero objeto que o marido pode facilmente alienar.
Para Jesus, que vê a vida pelo
prisma luminoso do Reino de Deus, qualquer visão rasteira e egoísta da
existência não faz sentido. E isso aplica-se ao projeto de amor que une homem e
mulher. Para os que integram a comunidade do Reino. a proposta é que entendam o
amor na linha do projeto inicial de Deus.
Para os discípulos (que, em diversas
situações, tiveram dificuldade em passar da lógica do Mundo para a lógica de
Deus), o discurso de Jesus é difícil de entender. Por isso, quando chegam a
casa, pedem a Jesus explicações. Jesus reitera que a relação entre homem e
mulher se deve enquadrar no projeto inicial de Deus. Marido e esposa, em
igualdade de circunstâncias, são responsáveis pela edificação da comunidade
familiar e por evitar o fracasso do amor.
No final, o Evangelho ainda nos
apresenta um outro quadro: trouxeram a Jesus “umas crianças” para que as
abençoasse. Porém, os discípulos não aceitaram a iniciativa e repreenderam as
pessoas que trouxeram. Dando, uma vez mais, mostras de arrogância e de
sobranceria, pensavam que as crianças não deviam estar onde gente importante
discutia coisas importantes. O Reino de Deus era, na perspetiva deles, projeto
para adultos, para gente com créditos provados, para gente bem consciente das
coisas e capaz de tomar decisões relevantes.
Todavia, Jesus desautoriza os
discípulos: “Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis”. Ele acha que o
Reino de Deus não é para gente “importante”, para gente que tem tiques de
arrogância e de soberba. Os soberbos, os autossuficientes, os que se consideram
superiores aos outros, que que se apresentam convencidos da sua importância e
dos seus méritos, não têm espaço para acolher a salvação que Deus oferece
gratuitamente, nem estão disponíveis para amar e servir os irmãos com humildade
e simplicidade. Quem não for como as crianças, quem não tiver a humildade e a
simplicidade das crianças não está apto para integrar a comunidade do Reino.
***
A segunda leitura (Heb 2,9-11) lembra-nos a qualidade e grandeza do amor de Deus pelos
homens. Deus amou-os de tal forma que enviou ao Mundo o seu Filho único “em
proveito de todos”. Jesus, o Filho, solidarizou-Se com os homens, partilhou a
debilidade dos homens e, cumprindo o projeto do Pai, aceitou morrer na cruz, para
dizer aos homens que a Vida está no amor que se dá até às últimas consequências.
O amor de Deus é o modelo dos amores humanos.
O autor do Salmo 8, refletindo sobre
o lugar central que o homem ocupa na criação, dirige-se ao Deus criador,
admirando-se: “Que é o homem para Te lembrares dele, o filho do homem para com
Ele te preocupares? Quase fizeste dele um ser divino (na versão grega: “fizeste-o
pouco inferior aos anjos”), de honra e glória o coroaste. Deste-lhe domínio
sobre as obras das tuas mãos, tudo submeteste a seus pés”. Ora, a Carta aos
Hebreus propõe-se anunciar que Cristo cumpre plenamente o que o salmo 8 diz
sobre o homem.
Deus criou o homem e concedeu-lhe um
lugar de honra no seu projeto; e o homem – o velho Adão – rebelou-se contra
Deus e buscou honra e glória à margem de Deus. Contudo, Deus não desistiu do
seu desígnio. Para ajudar o homem a chegar à meta, deu-lhe um guia: Jesus
Cristo. No momento previsto por Deus, Cristo incarnou na História dos homens e
tornou-se um ser humano, identificado com os irmãos humanos. Ao tornar-se
homem, Cristo foi, por um momento, “inferior aos anjos”, mas, pelo dom da sua
vida, pela entrega na cruz em favor de todos, foi exaltado e foi “coroado de
glória e de honra”.
Cristo, desde o primeiro instante da
incarnação, procurou cumprir plenamente o plano do Pai; e, nesse cumprimento,
fez da sua vida um dom total de amor aos homens. Viveu, a cada passo, amando e
servindo. A cruz foi o momento supremo da vida de amor até ao extremo, de
entrega total a Deus e aos irmãos. Convinha ao plano de Deus que Jesus, na
cruz, mostrasse aos homens, como se vive e ama; e Cristo fê-lo. Tornou-se, com
a forma como viveu e morreu, o protótipo do homem perfeito que constava do plano
do Deus criador. Cristo, o novo Adão, o homem que viveu e morreu amando,
tornou-se o modelo do homem novo. E corresponde, plenamente, ao homem que o
Deus criador tinha planeado coroar de glória e de honra.
Deus, o criador, é o Pai de todos:
daquele que santifica (Cristo, que, na entrega e no testemunho de amor até ao
extremo reaproximou os homens de Deus), e dos que são santificados (os que
foram transformados por Cristo e que têm Cristo como modelo de vida). Por isso,
Cristo não se envergonha de chamar irmãos a todos os outros homens e mulheres. Ele
próprio lhes mostra o caminho para que possam integrar, de forma plena, a
família de Deus.
***
Por tudo, Deo gratias!
2024.10.06 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário