domingo, 6 de outubro de 2024

Jesus reafirma o projeto ideal de Deus para o casal humano

 

A liturgia do 27.º domingo do Tempo Comum no Ano B revela o plano de Deus para o matrimónio do homem com a mulher. Criados para se amarem, Deus chamou-os a caminharem de mãos dadas, a construírem um projeto comum, assente na entrega total e na plena comunhão de vida.

primeira leitura (Gn 2,18-24), em imagens de cor e de poesia, assegura que foi Deus que inventou o amor. Criou o homem e a mulher e pô-los um ao lado do outro, para se amarem, para partilharem a vida, para serem auxílio mútuo, para se ajudarem e completarem. É nesse amor que encontrarão a sua vocação e a sua plena realização.

O trecho de Gn 2,4b-3,24 – o relato javista da criação – é do século X a.C. e deve ter aparecido em Judá, no tempo do rei Salomão. Será obra de um catequista popular, que ensina com recurso a imagens sugestivas, coloridas e fortes. A sua finalidade não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que ensinar como o Mundo e o homem apareceram, ensina que, na origem do Mundo, da vida e do homem está Javé.

Para apresentar tal catequese, os teólogos javistas utilizaram elementos simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas, como a formação do homem do pó da terra. Porém, transformaram e adaptaram esses símbolos, dando-lhes novo enquadramento e interpretação e pondo-os ao serviço da fé de Israel. Ou seja, a linguagem e a apresentação das narrações bíblicas da criação têm paralelos significativos com os mitos originários dos povos da zona do Crescente Fértil, mas as conclusões, sobretudo, o ensinamento sobre Deus e sobre o lugar do homem no desígnio de Deus, são diferentes: mais maduras, ponderadas, profundas e consistentes.

O trecho em apreço situa-nos no jardim do Éden, espaço ideal onde, segundo o hagiógrafo, Deus colocou o homem que tinha criado. Segundo o relato, o Éden é lugar de água abundante e com muitas árvores (para quem sentia a ameaça do deserto, a felicidade seria lugar com muita água, clima de frescura, ambiente de árvores e de verdura abundante). Todavia, na ótica do catequista javista, o homem não estava realizado, porque lhe faltava alguém com quem compartilhar a vida e a felicidade. O homem não fora criado para viver a sós, mas em relação.

Criado o homem e colocado no jardim da felicidade, Deus divisou-lhe a solidão (“não é bom que o homem esteja só”) e quis dar-lhe solução.

Primeiro, fez desfilar diante do homem “todos os animais do campo e todas as aves do céu”, para que ele os chamasse “pelos seus nomes”. Pelas ideias do Médio Oriente antigo, “dar um nome” era ato de domínio e de posse. Por outro lado, o facto de Deus ter trazido os animais para que o homem lhes desse o nome era, na ótica do catequista, o reconhecimento, por parte de Deus, da autonomia do homem e a associação do homem à obra criadora e ordenadora de Deus. Porém, o homem não encontrou, no mundo animal que Deus lhe confiou, “uma auxiliar semelhante a ele”. Por muito entusiasmante que fosse esse mundo, não dava ao homem a ajuda e o complemento que esperava. Para que o homem se realize completamente, Deus intervém de novo.

A nova ação de Deus começa com o “sono profundo” do homem. Agindo como hábil cirurgião, tirou parte do corpo do homem e, com ela, fez a mulher. O texto fala de “zela”, traduzível por “costela”, mas que pode significar “lado” ou “costado”. O sono profundo justifica-se pelo facto de, na conceção do autor javista, criar ser segredo de Deus e o homem não poder testemunhar tal ato misterioso, restando-lhe admirar a criação de Deus e adorá-Lo pelas suas obras admiráveis.

É de notar que ser a mulher tirada do lado do homem impõe igualdade de natureza, portanto, igual dignidade, igualdade de deveres e de direitos, capacidade e necessidade de compartilhar vida.

Se a mulher houvesse sido retirada da cabeça do homem, seria superior. Numa ideia destas assenta o matriarcado absoluto. E, se tivesse sido retirada do calcanhar, seria inferior e até desprezível. Nisto assenta o patriarcado absoluto, o tratamento da mulher como objeto, como propriedade do homem (do pai ou do marido).     

Depois de ter feito a mulher, Javé acompanha-a à presença do homem. A mulher é apresentada como a noiva conduzida à presença do noivo e Deus como o padrinho desse noivado. O homem, desperto do sono profundo, acolhe a mulher com um grito de alegria e reconhece-a como a companhia que faltava, o seu complemento, o seu outro eu: “Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne”. O homem (em Hebraico, ish: adão, feito do barro) dá à companheira o nome de “mulher” (em Hebraico, ishah: adã, feita do barro, como o homem), pois foi tirada do homem. A proximidade das duas palavras sugere proximidade entre o homem e a mulher, igualdade fundamental em dignidade, complementaridade, parentesco.

O trecho bíblico termina com um comentário que não é de Deus, nem do homem, nem da mulher, mas do catequista: “Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne”. O comentário pretende responder à questão: De onde vem essa força poderosa que é o amor, mais forte do que o primeiro vínculo de todos, o que nos liga aos pais? Para o catequista javista, o amor vem de Deus, que fez o homem e a mulher de uma só carne; por isso, homem e mulher buscam a unidade e estão destinados a viver em comunhão um com o outro. Não se justifica, de modo algum, a violência doméstica (entre homem e mulher), como não se justifica a discriminação política e social em razão do sexo e, muito menos, a coisificação da mulher.

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No Evangelho (Mc 10,2-16), Jesus, confrontado com a Lei judaica do divórcio, reafirma o desígnio de Deus para o homem e para a mulher, que exclui tudo o que é negação do amor: o egocentrismo, o domínio de um sobre o outro, as atitudes e gestos que ferem a dignidade do outro, o uso egoísta do outro. Na visão de Deus, o amor não tem prazo; tem a marca da eternidade.

Despedindo-se da Galileia, Jesus caminha para Jerusalém, ao encontro do seu destino final. Não seguiu pelo caminho da montanha, que passava pelo centro do país e atravessava a Samaria, mas pelo que desce ao longo do Jordão e que era o caminho habitual dos peregrinos que iam da Galileia para Jerusalém. O episódio em causa é colocado por Marcos “na região da Judeia, para além do Jordão” – isto é, no território transjordânico da Pereia, governado por Herodes Antipas, tetrarca da Galileia e da Pereia, que tinha, pouco antes, mandado executar João Batista, por este o ter criticado por se ter divorciado da esposa legítima para viver maritalmente com Herodíade, sua cunhada. No caminho para Jerusalém, Jesus volta a encontrar as multidões e a ensiná-las. Os discípulos caminham atrás de Jesus. Também aqui, reaparecem os fariseus para confrontarem Jesus. Desta vez, trazem-Lhe uma questão relativa ao divórcio: “Pode um homem repudiar a sua mulher?”. A razão da pergunta é pôr Jesus à prova.

A Lei de Israel permitia que o homem tomasse a iniciativa de despedir a sua mulher, pondo fim à relação (“quando um homem tomar uma mulher e a desposar, se depois ela deixar de lhe agradar, por ter descoberto algo de inconveniente, escrever-lhe-á um documento de divórcio, entregar-lho-á em mão e despedi-la-á de sua casa” – Dt 24,1). O que se discutia eram as razões que poderiam fundamentar a rejeição da mulher por parte do marido. A escola de Shammai, mais rigorista, defendia que só razão muito grave (adultério ou má conduta da mulher) dava ao marido o direito de repudiar a esposa, mas a escola de Hillel, dominante na época de Jesus, ensinava que qualquer motivo (a esposa cozinhava mal ou, por qualquer razão, tinha deixado de agradar ao marido), servia para o homem despedir a mulher. Já a mulher dificilmente obteria o divórcio em tribunal (só no caso de o marido estar afetado pela lepra ou de exercer ofício repugnante).

Assim, a lei judaica do divórcio era altamente discriminatória. O homem podia facilmente obter o divórcio e casar com outra mulher; mas a mulher, praticamente, não podia tomar a iniciativa de se divorciar do marido. E a mulher divorciada ficava em situação social intolerável: sem meios de subsistência, sem ninguém que a defendesse; e, se não fosse acolhida na casa do pai ou de um irmão, ficava condenada a pedir esmola ou a prostituir-se.

À pergunta dos fariseus (“Pode um homem repudiar a sua mulher?”), Jesus responde com outra: “Que vos ordenou Moisés?”). De facto, a lei do divórcio tal como aparece formulada em Dt 24,1-4, é atribuída a Moisés. No entanto, é provável que Jesus esteja a sugerir que a lei do divórcio não vem de Deus e não estava inscrita no projeto inicial de Deus para os seres humanos.

Porém, Moisés permitiu ao homem entregar à mulher um certificado de divórcio, que determinava o fim da relação. De acordo com Jesus, foi para resolver o problema criado pela “dureza do coração” dos homens. De facto, quando o homem decidia abandonar a esposa (era frequente), colocava-a em situação perigosa. Se não tivesse documento comprovativo da sua situação, continuava juridicamente ligada àquele homem; e, no caso de se envolver noutra relação, era considerada adúltera. Corria o risco da lapidação, o castigo reservado às adúlteras. Necessitava, portanto, de documento comprovativo de que era livre. Ao admitir que o homem entregasse à mulher o “certificado de divórcio”, Moisés não estava a banalizar o divórcio ou a dizer que o divórcio era coisa boa; estava só a fazer com que a mulher não ficasse num beco sem saída.

Contudo, depois de explicar a razão da disposição dada por Moisés, Jesus lembra o projeto primordial de Deus para o homem e para a mulher. Citando livremente Gn 1,27 e Gn 2,24, declara que, no projeto original de Deus, o homem e a mulher foram criados um para o outro, para se completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, homem e mulher destinam-se a ser “uma só carne”. Ser “uma só carne” implica viverem em comunhão total, dando-se um ao outro, partilhando a vida, unidos por um amor, que é mais forte do que qualquer outro vínculo. A separação é o fracasso do amor. Deus não considera um amor que não seja total e duradouro. Só o amor eterno, expresso no compromisso indissolúvel, respeita o projeto de Deus, que não previa a discriminação da mulher, a colocação da mulher num plano subalterno, o tratamento da mulher como mero objeto que o marido pode facilmente alienar.

Para Jesus, que vê a vida pelo prisma luminoso do Reino de Deus, qualquer visão rasteira e egoísta da existência não faz sentido. E isso aplica-se ao projeto de amor que une homem e mulher. Para os que integram a comunidade do Reino. a proposta é que entendam o amor na linha do projeto inicial de Deus.

Para os discípulos (que, em diversas situações, tiveram dificuldade em passar da lógica do Mundo para a lógica de Deus), o discurso de Jesus é difícil de entender. Por isso, quando chegam a casa, pedem a Jesus explicações. Jesus reitera que a relação entre homem e mulher se deve enquadrar no projeto inicial de Deus. Marido e esposa, em igualdade de circunstâncias, são responsáveis pela edificação da comunidade familiar e por evitar o fracasso do amor.

No final, o Evangelho ainda nos apresenta um outro quadro: trouxeram a Jesus “umas crianças” para que as abençoasse. Porém, os discípulos não aceitaram a iniciativa e repreenderam as pessoas que trouxeram. Dando, uma vez mais, mostras de arrogância e de sobranceria, pensavam que as crianças não deviam estar onde gente importante discutia coisas importantes. O Reino de Deus era, na perspetiva deles, projeto para adultos, para gente com créditos provados, para gente bem consciente das coisas e capaz de tomar decisões relevantes.

Todavia, Jesus desautoriza os discípulos: “Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis”. Ele acha que o Reino de Deus não é para gente “importante”, para gente que tem tiques de arrogância e de soberba. Os soberbos, os autossuficientes, os que se consideram superiores aos outros, que que se apresentam convencidos da sua importância e dos seus méritos, não têm espaço para acolher a salvação que Deus oferece gratuitamente, nem estão disponíveis para amar e servir os irmãos com humildade e simplicidade. Quem não for como as crianças, quem não tiver a humildade e a simplicidade das crianças não está apto para integrar a comunidade do Reino.

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segunda leitura (Heb 2,9-11) lembra-nos a qualidade e grandeza do amor de Deus pelos homens. Deus amou-os de tal forma que enviou ao Mundo o seu Filho único “em proveito de todos”. Jesus, o Filho, solidarizou-Se com os homens, partilhou a debilidade dos homens e, cumprindo o projeto do Pai, aceitou morrer na cruz, para dizer aos homens que a Vida está no amor que se dá até às últimas consequências. O amor de Deus é o modelo dos amores humanos.

O autor do Salmo 8, refletindo sobre o lugar central que o homem ocupa na criação, dirige-se ao Deus criador, admirando-se: “Que é o homem para Te lembrares dele, o filho do homem para com Ele te preocupares? Quase fizeste dele um ser divino (na versão grega: “fizeste-o pouco inferior aos anjos”), de honra e glória o coroaste. Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos, tudo submeteste a seus pés”. Ora, a Carta aos Hebreus propõe-se anunciar que Cristo cumpre plenamente o que o salmo 8 diz sobre o homem.

Deus criou o homem e concedeu-lhe um lugar de honra no seu projeto; e o homem – o velho Adão – rebelou-se contra Deus e buscou honra e glória à margem de Deus. Contudo, Deus não desistiu do seu desígnio. Para ajudar o homem a chegar à meta, deu-lhe um guia: Jesus Cristo. No momento previsto por Deus, Cristo incarnou na História dos homens e tornou-se um ser humano, identificado com os irmãos humanos. Ao tornar-se homem, Cristo foi, por um momento, “inferior aos anjos”, mas, pelo dom da sua vida, pela entrega na cruz em favor de todos, foi exaltado e foi “coroado de glória e de honra”.

Cristo, desde o primeiro instante da incarnação, procurou cumprir plenamente o plano do Pai; e, nesse cumprimento, fez da sua vida um dom total de amor aos homens. Viveu, a cada passo, amando e servindo. A cruz foi o momento supremo da vida de amor até ao extremo, de entrega total a Deus e aos irmãos. Convinha ao plano de Deus que Jesus, na cruz, mostrasse aos homens, como se vive e ama; e Cristo fê-lo. Tornou-se, com a forma como viveu e morreu, o protótipo do homem perfeito que constava do plano do Deus criador. Cristo, o novo Adão, o homem que viveu e morreu amando, tornou-se o modelo do homem novo. E corresponde, plenamente, ao homem que o Deus criador tinha planeado coroar de glória e de honra.

Deus, o criador, é o Pai de todos: daquele que santifica (Cristo, que, na entrega e no testemunho de amor até ao extremo reaproximou os homens de Deus), e dos que são santificados (os que foram transformados por Cristo e que têm Cristo como modelo de vida). Por isso, Cristo não se envergonha de chamar irmãos a todos os outros homens e mulheres. Ele próprio lhes mostra o caminho para que possam integrar, de forma plena, a família de Deus.

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Por tudo, Deo gratias!

2024.10.06 – Louro de Carvalho

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