terça-feira, 29 de outubro de 2024

Israel hostiliza a ONU a nível bélico e a nível legislativo

 

No fim de semana de 26-27 de outubro, a Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL, na sigla inglesa, para United Nations Interim Force in Lebanon) acusou as Forças de Defesa de Israel (FDI) por terem forçado a entrada numa das posições da missão, destruindo o portão principal e causando ferimentos ligeiros a, pelo menos, 15 soldados.

O incidente ocorreu após o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, ter acusado esta missão de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Líbano de “fornecer escudos humanos aos terroristas do Hezbollah” e ter exigido a sua retirada do Sul do Líbano, onde o exército israelita está a levar a cabo uma invasão terrestre contra a milícia apoiada pelo Irão.

Numa mensagem de vídeo, Netanyahu apelou ao secretário-geral da ONU, António Guterres, para “retirar as forças da UNIFIL do caminho do perigo”, o que “deve ser feito agora mesmo, imediatamente”.

No dia 27, à noite, Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia (UE) repreendeu duramente Netanyahu, vincando que a UNIFIL está sob o comando direto do Conselho de Segurança (CS) e não do secretário-geral. “Quero lembrar a todos que não é o secretário-geral das Nações Unidas que decide sobre a permanência ou não desta missão. É o Conselho de Segurança que tem de tomar este tipo de decisões”, disse Borrell aos jornalistas, acrescentando: “Por isso, parem de culpar o secretário-geral, Guterres, porque é o Conselho de Segurança que toma este tipo de decisões, não é ele pessoalmente.”

A ira de Borrell foi replicada pelos ministros dos Negócios Estrangeiros, à chegada ao Luxemburgo, que utilizaram a palavra “inaceitável” para expressar o seu descontentamento.

“Isto é inaceitável e deve parar e deve ser investigado o mais rapidamente possível”, declarou Caspar Veldkamp, dos Países Baixos, revelando que tinha telefonado ao homólogo israelita, Israel Katz, para expressar o seu descontentamento. “Isto tem de acabar”, frisou.

José Manuel Albares, de Espanha, afirmou que o trabalho da UNIFIL é “válido e necessário em tempo de guerra” e que qualquer violência dirigida contra a missão é “contrária ao direito internacional” e não deve repetir-se. Além disso, “o Líbano é um Estado soberano”, sublinhou.

Os ministros da Letónia, da Suécia e do Luxemburgo juntaram as suas vozes à condenação europeia, em consonância com a declaração publicada por Borrell, que Micheál Martin, da Irlanda, disse que poderia ter sido “muito mais forte”.

“Acreditamos, hoje, que a segurança de Israel não pode ser garantida apenas pelo uso da força”, disse o francês Jean-Noël Barrot aos jornalistas, esclarecendo: “O uso da força deve dar lugar ao uso do diálogo e da negociação, e é por isso que, tal como a maioria dos países do Mundo, estamos hoje a apelar a um cessar-fogo em Gaza, tal como no Líbano.”

O austríaco Alexander Schallenberg, cujo país é um dos mais fortes apoiantes de Israel no bloco, classificou os ataques contra a UNIFIL como “simplesmente inaceitáveis”. “Não, eles não se vão retirar. Sim, vão continuar a cumprir o mandato”, disse Schallenberg à chegada, garantindo: “E sim, exigimos a todas as partes que respeitem este mandato e respeitem a segurança e a proteção dos nossos capacetes azuis.”

A UNIFIL é uma missão internacional criada pelo CS da ONU, em 1978, para restaurar a paz e a segurança no Sul do Líbano, perto da fronteira israelita. É composta por 10 mil soldados da paz de 50 nacionalidades, incluindo 16 países da UE. “O seu trabalho é muito importante. É completamente inaceitável atacar as tropas das Nações Unidas”, afirmou Borrell, no dia 28, de manhã, antes da reunião de ministros dos Negócios Estrangeiros no Luxemburgo.

***

UNIFIL foi criada pela ONU pela resolução 425 do CS, adotada em 19 de março de 1978, dias após a invasão israelita no sul do Líbano. No mesmo dia, o CS adotava uma segunda resolução, a 426, que fixava em seis meses o período inicial da missão.

Israel alegava que procurava proteger o Norte do seu território dos combatentes da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Porém, o objetivo da UNIFIL era ajudar o exército libanês a mobilizar-se ao longo da fronteira com Israel e velar pela instauração da segurança e a paz na região. Ao ser criada, contava com seis mil soldados, que chegaram a sete mil, em 1982.

Três meses após a retirada israelense do Sul do Líbano, em maio de 2000, a UNIFIL ocupou a fronteira, assumindo a missão que recebera da ONU, há 22 anos. Em 31 de janeiro de 2006, o CS da ONU prorrogou por mais seis meses o mandato da UNIFIL.

Os capacetes azuis da UNIFIL atuam, de forma frequente, como desativadores de minas terrestres, como socorristas ou como “trabalhadores humanitários” de ajuda à população local. Desde a sua criação, a UNIFIL já perdeu mais de 250 soldados, 80 dos quais em ataques.

Após a Guerra do Líbano, de 2006, a Força Tarefa Marítima da UNIFIL (em Inglês: Maritime Task Force, ou MTF) foi criada para auxiliar a Marinha do Líbano na prevenção do contrabando de transferências ilegais, em geral, e de embarques de armamento, em particular. Com a sua criação, em outubro de 2006, a força era liderada pela Marinha Alemã, que foi a principal contribuinte para a força. Os alemães lideraram a MTF até 29 de fevereiro de 2008, quando passaram a controlar a EUROMARFOR – força composta por navios de Portugal, da Espanha, da Itália e da França (dos quais os três últimos países enviaram navios para a força no Líbano). Desde maio de 2008, a Marinha Alemã ainda continua a ser a maior contribuinte para a MTF da UNIFIL, com quatro navios. Estes navios são complementados por dois italianos, dois gregos, um francês, um espanhol, um búlgaro, um navio turco e um brasileiro, o Fragata Liberal, que compõem as 13 embarcações da MTF da UNIFIL.

***

Os ministros dos Negócios Estrangeiros de 43 Estados da União para o Mediterrâneo (UPM) reuniram-se, em Barcelona, para abordar os desafios regionais. E Josep Borrell, chefe da diplomacia da UE, condenou o exército israelita pelo ataque à UNIFIL no Líbano, neste fórum.Dizer que há ataques contra a UNIFIL sem dizer quem os está a fazer é esconder parte da verdade, e quem os está a fazer é o exército israelita e, portanto, o exército israelita deve ser condenado”, sublinhou.

Israel defendeu a sua presença militar no sul do Líbano e os ataques às posições do Hezbollah no país vizinho como necessários, para se defender da ameaça dos militantes apoiados pelo Irão. Há muito que Israel acusa a UNRWA em Gaza de ter militantes do Hamas infiltrados. Porém, Borrell reiterou que irá pedir à UE que estabeleça sanções contra os responsáveis pelos colonos israelitas na Cisjordânia, bem como contra dois membros do governo israelita, o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, e o ministro da Defesa Itamar, Ben-Gvir.

O ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha afirmou que o seu país renovou o compromisso com a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) que é indispensável para milhões de refugiados palestinianos na região.

“O direito internacional humanitário nasceu do sofrimento da Europa. Por isso, é imperativo que a Europa se coloque ao lado do direito internacional e impeça as suas violações”, acrescentou Ayman Safadi, ministro dos Negócios Estrangeiros da Jordânia.

Por último, Nasser Kamel, secretário-geral da UPM, falou da solução de dois Estados no Médio Oriente. “Todos sabemos que os parâmetros do remédio se baseiam numa solução de dois Estados e no direito do povo palestiniano a exercer a autodeterminação”, vincou.

O primeiro-ministro israelita participou no dia 28, numa cerimónia fúnebre em Jerusalém, em memória dos soldados e civis mortos a 7 de outubro e durante as ofensivas em Gaza. “Não vamos desistir da missão de vitória e uma componente central da missão de vitória é o regresso de todos os nossos reféns, tanto os vivos como os mortos, a Israel”, disse Netanyahu.

***

No dia 18 de outubro, um porta-voz das forças de manutenção da paz da ONU disse que estavam a manter as suas posições no sul do Líbano, apesar dos avisos dos Israelitas para se afastarem. E os ministros da Defesa do G7 manifestaram preocupação com a segurança das forças de manutenção da paz da ONU no Líbano, na sequência de uma série de ataques das FDI.

Em declaração conjunta emitida após a sua primeira reunião na cidade italiana de Nápoles, vincaram que “a proteção das forças de manutenção da paz compete a todas as partes em conflito”.

“Estamos preocupados com os últimos acontecimentos no Líbano e com o risco de uma nova escalada. Reiteramos o nosso apelo a uma cessação total das hostilidades, em conformidade com a aplicação integral da Resolução 1701 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, e a uma solução diplomática para os combates, reconhecendo o papel estabilizador fundamental das Forças Armadas libanesas e reafirmando o papel essencial da UNIFIL”, afirma a declaração.

O chefe da política externa da UE, Josep Borrell, sugeriu que a UNIFIL poderia ser mais eficaz, mas afirmou que cabe ao CS da ONU tomar decisões sobre o seu futuro.

O porta-voz da FINUL, Andrea Tenenti, afirmou que os 50 países que contribuem com tropas e o Conselho de Segurança tomaram uma decisão “unânime”, no sentido de manter as suas posições, como parte do seu objetivo de monitorizar o conflito e trabalhar para garantir que a ajuda humanitária chega aos civis necessitados. Porém, Israel acusou a UNIFIL de ser ineficaz em travar as atividades do Hezbollah e alegou que o grupo possui infraestruturas militares muito próximas das bases das forças de manutenção da paz.

***

Não é só pelos ataques à UNIFIL que Israel é objeto de críticas. A 28 de outubro, o parlamento israelita aprovou legislação que pode ameaçar o trabalho da principal agência da ONU que presta ajuda à população de Gaza, impedindo-a de operar em solo israelita. O projeto de lei proíbe a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) de realizar “qualquer atividade” ou prestar qualquer serviço dentro de Israel.

A legislação, que não entrará em vigor imediatamente, pode comprometer o frágil processo de distribuição de ajuda, numa altura em que a crise humanitária em Gaza está a agravar-se e Israel se encontra sob crescente pressão dos Estados Unidos da América (EUA) para aumentar a ajuda. Por isso, a ONU já criticou duramente a decisão de Israel.

O projeto foi aprovado por 92 votos a favor e 10 contra, na sequência de aceso debate entre os apoiantes da lei e os opositores, que são, na maioria, membros de partidos parlamentares árabes.

Estava também a ser votado, no mesmo dia, um segundo projeto de lei que cortava os laços diplomáticos com a UNRWA. EM conjunto, estes projetos de lei representariam um novo ponto baixo nas relações entre o estado israelita e a UNRWA, que Israel acusa de manter laços estreitos com os militantes do Hamas. As alterações legislativas constituiriam também um rude golpe para a agência e para os Palestinianos de Gaza, que passaram a depender da sua ajuda ao longo de mais de um ano de guerra devastadora.

Mais de 1,9 milhões de Palestinianos estão deslocados das suas casas e Gaza enfrenta uma escassez generalizada de alimentos, água e medicamentos.

***

Enfim, nem os ataques à UNIFIL devem ser tolerados, nem os projetos de lei que dificultem a ação da UNRWA fazem sentido numa região onde as pessoas, deslocadas, feridas e doentes precisam de ajuda humanitária, cada vez mais necessária, mais escassa e mais dificultada. Por isso, a ONU, a UE, a UPM e os ministros da Defesa do G7 expressam a preocupação com todas as ameaças à segurança da UNIFIL (ainda tem ali um papel e uma missão a cumprir) e renovaram o apoio à missão “para garantir a estabilidade do Líbano”. Com efeito, uma eventual retirada dos capacetes azuis abrirá o caminho à reocupação do território Sul do Líbano sem a presença de terceiros elementos, como as forças da ONU, como afirmou à Euronews Enzo Moavero Milanesi, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros italiano e, atualmente, professor de Direito Comunitário na Universidade LUISS de Roma.

2024.10.28 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário