sexta-feira, 25 de outubro de 2024

O zelo pela ordem deve ter regras, pois até a guerra as tinha

 

Lamentavelmente, um agente da Polícia de Segurança Pública (PSP) baleou, mortalmente, na madrugada do dia 21, no bairro da Cova da Moura, em circunstâncias que estão ainda por apurar, o cidadão Odair Moniz, de 43 anos e morador no Bairro do Zambujal, na Amadora.

De acordo com a PSP, o homem pôs-se “em fuga” de carro, depois de ver uma viatura policial e “entrou em despiste” na Cova da Moura, onde, ao ser abordado pelos agentes, “terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca”.

Como é óbvio, a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) e a PSP abriram inquéritos e o agente que baleou o homem foi constituído arguido. Desde então, têm-se registado desacatos no Zambujal e noutros bairros da Área Metropolitana de Lisboa (AML), que a polícia monitoriza e em que intervém segundo as normas em vigor, e foram marcadas manifestações para o fim de semana seguinte (dia 26), por parte do Vida Justa (em protesto) e do partido Chega (em defesa da polícia).

A PSP referiu, no dia 25, que o Vida Justa alterou o percurso da manifestação “sem esperar pelo parecer” da polícia, mas considera que “estão reunidas as condições de segurança”, embora haja “algum risco”, por coincidir com a contramanifestação do Chega. “Atendendo às características físicas e sociais dos espaços comunicados para as concentrações e respetivos desfiles, a PSP entende que embora exista algum risco para a ordem e segurança públicas relativamente ao horário das iniciativas ser coincidente, estão reunidas as condições de segurança necessárias para a realização dos eventos”, refere a PSP, em comunicado.

No dia 24, poucas horas após o anúncio da iniciativa do Vida Justa, o presidente do Chega, André Ventura, disse que o partido tinha convocado, também para o dia 26, uma manifestação “em defesa da polícia”. Ambas as manifestações previam terminar na Assembleia da Republica (AR), mas, no dia 25, o Vida Justa alterou o local de destino da manifestação para a Praça dos Restauradores, lamentando que as autoridades tivessem autorizado o Chega a terminar a sua contramanifestação no local previsto para o protesto do movimento.

Todavia, a PSP alega que recebeu a comunicação das manifestações através da Câmara Municipal de Lisboa, tendo começado, “de imediato, a elaborar a habitual análise de risco para a ordem e segurança públicas”, visto que as iniciativas têm posicionamentos ideológicos antagónicos.

A PSP garantiu empenhar-se em conciliar as duas manifestações, “harmonizando as intenções e desígnios de ambos os promotores, adaptando o seu dispositivo para dar resposta positiva ao exercício do direito de manifestação por parte dos cidadãos que queiram integrar as ações de manifestação”, assim como asseguraria que “quem comunicou primeiro exerce, se não houver constrangimentos de maior, a primazia da escolha do local e itinerário, reservando as maiores condicionantes para o segundo comunicante, pelos motivos óbvios, se forem oponentes nas intenções”. Por outro lado, a PSP revelou que teve conhecimento, pela comunicação social, de que o Vida Justa teria alterado o percurso do desfile “por sua livre iniciativa e sem esperar pelo parecer” da polícia.

Em todo o caso, esta força de segurança propôs-se continuar “a recolher informação e a acompanhar os desenvolvimentos” atinentes às manifestações, nomeadamente, através de fontes abertas. Com efeito, a “monitorização e recolha contínuas de informação permitem avaliar os potenciais riscos associados às iniciativas e planear a operação policial mais adequada e ajustada às necessidades de segurança de todos os intervenientes e de terceiros”, segundo a polícia, que garantiu que o policiamento das duas manifestações iria ser feito pelas diferentes valências do Comando Metropolitano de Lisboa, com “o apoio permanente” de meios da Unidade Especial de Polícia da PSP.

A PSP propôs-se, determinantemente, promover constante visibilidade e mobilidade dos meios policiais destacados para esta operação de segurança, de forma a prevenir e a evitar a existência de situações de alteração da ordem pública; e relembrou que não toleraria “atos de desordem e de destruição praticados por grupos criminosos”, que “integram uma minoria e não representam a restante população”.

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Entretanto,  durante um debate com o líder parlamentar do BE, Fabian Figueiredo, o líder parlamentar do Chega, Pedro Pinto, na noite do dia 23, na RTP3, a propósito da morte de Odair Moniz, do facto de ter sido baleado mortalmente por um agente da PSP e dos comentários que o presidente do seu partido fizera sobre o caso – nomeadamente, propondo, logo no dia 22, “uma condecoração” para o polícia – afirmou: “Se calhar, se [os polícias] disparassem mais a matar, o país estava mais na ordem.” Ora, a violência gera mais violência; e Pedro Pinto sabe-o!

Efetivamente, o presidente do Chega, André Ventura, no dia 22, afirmara, ante câmaras de TV, sobre o agente que baleou Odair Moniz: “Nós não devíamos constituir este homem arguido; nós devíamos agradecer a este polícia o trabalho que fez. Nós devíamos condecorá-lo e não constituí-lo arguido, ameaçá-lo com processos ou ameaçar prendê-lo.”

No mesmo dia, às 18h50,  na sua conta do X, o presidente do Chega reiterou a mesma afirmação, comentando um título do Expresso que a reproduzia: “Num país normal todos pensariam o mesmo, mas parece que se protegem mais os criminosos do que os polícias.” Ainda nesse dia e igualmente no X, André Ventura partilhou, às 22h33, um vídeo no qual, com um volume na mão intitulado “Estudos sobre a Constituição” nas mãos, afirmava: “Obrigado, obrigado. Era esta a palavra que devíamos a dar ao polícia que disparou sobre mais este bandido na Cova da Moura [...]. Tentou esfaquear polícias, estava a fugir deles, e estava a cometer crimes com toda a probabilidade. [...] Sim, o polícia esteve bem.”

Sem haver uma versão fixada dos acontecimentos que levaram à morte de Odair Moniz e estando a decorrer a investigação da Polícia Judiciária (PJ), afirmar categoricamente, como fez o líder do Chega (com base, em parte, no comunicado inicial da PSP), que Odair Moniz “tentou esfaquear polícias” e que “estava a cometer crimes com toda a probabilidade” e apelidá-lo de “bandido”, constitui, no mínimo, acusação temerária, para não dizer acusação falsa e inventada, visando “incendiar os ânimos sociais, provocando tumultos sociais, raiva, ressentimento e violência”. 

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Face a tais declarações das duas gradas figuras do Chega, um grupo de cidadãos elaborou um projeto de queixa-crime contra André Ventura e contra Pedro Pinto, pelas respetivas declarações a propósito da morte de Odair Moniz. Os principais ilícitos penais são: “instigação à prática de crime”; “apologia da prática de crime”; e “incitamento à desobediência coletiva”. 

Entre os subscritores, conta-se Francisca Van Dunem, ex-ministra da Justiça e da Administração Interna e ex-procuradora-geral distrital de Lisboa, que disse ao Diário de Notícias (DN): “Atingiu-se um limite. Nenhum democrata pode deixar de se indignar com estas declarações. A minha consciência obriga-me a tomar uma atitude, em relação a quem se aproveita deste clima para fazer apelos ao ódio e a mais violência. Vou subscrever a queixa, que espero que seja subscrita pelo maior número possível de pessoas.”

Os subscritores do texto consideram a asserção de Pedro Pinto como consubstanciando a apologia de um crime, o que é “previsto e punido pelo artigo 298.º do Código Penal”, enquadrando-se ainda “no crime de incitamento à prática de um crime, previsto e punido pelo artigo 297.º” do Código Penal (CP) – “Instigação pública a um crime”. Este tipo de crime é cometido por “quem, em reunião pública, através de meio de comunicação social, por divulgação de escrito ou outro meio de reprodução técnica, provocar ou incitar à prática de um crime determinado”, sendo punido “com pena de prisão até três anos”.

Com efeito, nos termos do texto, “Pedro Pinto incentivou – e sabe que o fez –  que agentes das forças de segurança usassem, indevidamente, as armas que lhes são entregues pela República Portuguesa, em nome de todos os cidadãos, para matar outros concidadãos na via pública, através de execuções sumárias, que são proibidas pela Constituição e por todos os textos internacionais de defesa dos direitos humanos.”

Aventa-se também que Pedro Pinto será suspeito do cometimento do crime de “incitamento à desobediência coletiva”, previsto no artigo 330.º do CP, pois sabe que, ao arrogar-se de defensor dos agentes das forças de segurança – invertendo a disciplina e o dever de obediência hierárquica que cabe ao governo e, em especial, à ministra da Administração Interna –, não pode incentivar esses mesmos agentes a disparar a matar ou a incumprir a Constituição e a Lei, através do uso excessivo da força e, em especial, de armas de fogo. 

É-lhe imputado também o crime de “associação criminosa”,  previsto no artigo 299.º do CP, e que se aplica a quem “promover ou fundar grupo, organização ou associação cuja finalidade ou atividade seja dirigida à prática de um ou mais crimes”, tendo pena de prisão de um a cinco anos.

Quanto a André Ventura, é acusado de ter cometido os mesmos crimes que Pedro Pinto, já que elogiou “a ação policial que implicou a perda de uma vida humana”, o que é considerado sendo “apologia de um crime” – independentemente “da possibilidade de esse crime poder vir a ser justificado ou de ter a sua ilicitude excluída se, após a devida investigação criminal, se concluir ter havido legítima defesa ou outra causa de exclusão da ilicitude”.

Na verdade, André Ventura conhece o regime jurídico do porte e uso de armas de fogo pelas forças de segurança, porque é doutorado em Direito e porque é deputado, participando na tomada de decisão legislativa, pelo que não desconhece que o uso excessivo e desproporcionado de arma de fogo, por agente das forças de segurança, constitui crime”, e sabe que “ao elogiar publicamente um ato policial que conduziu à morte de um cidadão […] cria nas pessoas que não dispõem de conhecimentos jurídicos especializados a convicção de que as forças de segurança podem usar armas de fogo sempre que um cidadão não desrespeite uma ordem delas emanada, incluindo de detenção.”

Considera-se que Ventura quis “incentivar a desordem e a desobediência dos agentes das forças de segurança, face aos seus superiores hierárquicos”, cometendo o crime de “incitamento à desobediência coletiva” e “divulgando notícias falsas ou tendenciosas suscetíveis de provocar alarme ou inquietação na população”, que faz parte deste tipo criminal. Assim, pretendeu apenas acicatar os ânimos dentro das forças de segurança e estimular eventuais reações de revolta e de uso excessivo da força e de arma de fogo, o que coloca em causa o Estado de Direito democrático e potencia uma alteração autoritária do regime político que é defendido pela Constituição da República Portuguesa.”

Também declarações de Ricardo Reis, assessor parlamentar do partido, no X, no dia 23, são reputadas de “apologia pública de um crime”, ao escrever: “A única palavra é esta: obrigado ao agente que deixou as ruas mais seguras!” e “menos um criminoso… menos um eleitor do Bloco.”

Por se tratar de ação “em conluio” entre vários elementos da mesma associação partidária, estará, igualmente, em causa o crime de “associação criminosa”, no caso de Ricardo Reis.

A queixa já ultrapassou, largamente, a dezena de milhares de subscritores.

Não obstante, alguns comentadores (incluindo dirigentes partidários), abstendo-se de apreciar tais declarações no quadro criminal e penal, condenam-nas, claramente, do ponto de vista cívico.

André Ventura já veio lamentar que as questões políticas vão parar aos tribunais. Esquece o líder partidário que a discussão não está no âmbito do direito à opinião, mas no discurso do ódio e na subversão da ordem. Este discurso é execrável e não era necessário. O zelo pela ordem pública e pela segurança das pessoas e do património tem regras, que incluem o uso proporcionado de meios, de modo que nunca se tome o ferimento ou a morte de alguém como objetivo.

A guerra que é execrável também tinha as suas regras, que os beligerantes deviam observar. E, ainda atualmente, se lamentam e condenam aspetos da guerra, como a morte de civis, o uso de crianças como escudo humano, as dificuldades criadas à ajuda humanitária, a morte de reféns.

Quão melhor é a paz, a liberdade, a fraternidade e a igualdade!

2024.10.25 – Louro de Carvalho

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