quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Países europeus transferem migrantes para fora da União Europeia

 

De acordo com a RFI, uma rádio francesa de notícias que transmite para o Mundo todo em francês e em outros 15 idiomas, a chefe do governo italiano, Giorgia Meloni, classificou, a 15 de outubro, de “corajoso” o controverso acordo com a Albânia para a transferência de migrantes para centros naquele país. Isto, após, na véspera, um primeiro grupo de 16 pessoas, originárias de Bangladesh e do Egito, ter deixado a ilha de Lampedusa em direção ao porto albanês de Shengjin.

“É um caminho novo, corajoso, inédito, mas que reflete, perfeitamente, o espírito europeu e está em conformidade, para ser implementado também por outros países fora da UE [União Europeia]”, declarou Meloni, diante de senadores italianos, mostrando-se “orgulhosa” por a Itália se ter tornado “um exemplo a ser seguido”.

Segundo a governante, sob a liderança da Itália, está agendada uma reunião informal com a participação de países interessados na questão imigratória, durante a cimeira da UE, em 17 e 18 de outubro, em Bruxelas. Entre os possíveis candidatos, Giorgia Meloni citou a França, a Alemanha, a Suécia, e ainda o Reino Unido, que não faz parte do bloco. Assim, prevê-se que um primeiro grupo de migrantes enviados de Lampedusa para a Albânia desembarque no dia16, em Shengjin. Os 16 homens – dez deles de Bangladesh e seis do Egito – foram resgatados pelas autoridades italianas, no dia 13, no mar Mediterrâneo.

A operação, sem precedentes, em que estão implicados 300 pessoas italianas (militares, médicos e juízes) pôde ocorrer após a assinatura de um compromisso, no final de 2023, entre Roma e Tirana, para a criação de dois centros em território albanês, fora da UE, onde os migrantes poderão fazer um pedido de asilo. O acordo, com a duração de cinco anos e com o custo de 160 milhões de euros, por ano, à Itália, só diz respeito a homens adultos resgatados pela Marinha ou pela guarda-costeira italiana em águas internacionais. 

Ao desembarcarem no porto de Shengjin, no Noroeste da Albânia, os migrantes serão identificados num primeiro centro de controlo, antes de serem enviados a um segundo, numa antiga base militar albanesa. Serão colocados em celas de 12m2, cercadas por um alto portão de ferro e vigiados por câmaras, segundo Laurent Rouy, correspondente da RFI nos Balcãs. Das 880 instalações previstas, 400 estão prontas. 

Os requerentes de asilo devem receber resposta num período de 28 dias. Se for positiva, serão encaminhados para centros na Itália; caso contrário, serão expulsos para os países de origem. 

É óbvio que a medida é objeto de contestação. O sindicato italiano da administração pública UILPA denuncia as condições de vida nos centros albaneses, alegando que haverá, ali, restrição de acesso à água, à energia elétrica e aos meios de comunicação. Segundo Elly Schlein, chefe do Partido Democrata, de centro-esquerda, o governo de Meloni “aumenta os impostos e desperdiça cerca de um bilião [de euros], […] em detrimento dos direitos fundamentais das pessoas”. E a oposição italiana espera que essa primeira operação seja marcada pelo fracasso do projeto, segundo Anne Le Nir, correspondente da RFI em Roma. Os partidos do centro-esquerda lembram que uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) questiona a lista de 22 países considerados seguros pelo governo da Itália, para a expulsão de migrantes. 

Segundo a organização não-governamental (ONG) International Rescue Committee, a chegada do primeiro grupo de migrantes à Albânia “é um dia obscuro para as políticas de asilo e imigração da União Europeia”. A “nossa preocupação é que essa seja apenas a primeira transferência deste tipo e que muitas pessoas sejam enviadas, em breve, para a Albânia”, indicou Flaminia Delle Cese, membro da ONG, para considerar: “Devemos, a partir de agora, monitorar a situação dessas pessoas e fazer tudo o que pudermos para garantir seus direitos.” 

A Itália não é caso isolado na matéria, nem este é o seu primeiro caso. O modelo pode replicado em outros países, entre eles a Alemanha. Além da Itália, a Hungria propõe que o programa seja estendido em escala europeia, com a criação de “centros de retorno”, para onde serão enviados migrantes, antes de serem expulsos. E Roma concluiu, recentemente, um acordo com a Tunísia, prevendo uma ajuda económica, em troca de esforços para impedir que cidadãos tunisianos deixem o país em direção da Itália, assim como renovou um acordo assinado em 2017 com Trípoli, para formação e para financiamento da guarda costeira líbia, com o objetivo de barrar a imigração ou devolver à Líbia cidadãos resgatados no mar.

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Também a 15 de outubro, Alessio Dell’Anna, em artigo na Euronews, apresenta dados recentes do Eurostat sobre a devolução de migrantes da parte de países da UE a países terceiros, destacando que “o número de migrantes intimados a abandonar a UE diminuiu”. É 10% inferior ao de 2023, mas continua a existir grande diferença entre os que recebem ordem de saída e os que acabam, por ser repatriados. E França foi o país que devolveu o maior número de pessoas – mais de três mil – dos mais de 25 mil migrantes deportados para fora da UE, no segundo trimestre de 2024. Porém, o número de pessoas que receberam ordem de partida é muito superior.

De acordo com os dados mais recentes do Eurostat, dos 96115 cidadãos extracomunitários que receberam uma ordem de saída da UE, entre maio e agosto de 2024, menos de um terço (25285) deixou, efetivamente, o bloco. Contudo, a diferença parece estar a diminuir, porque o número de pessoas que regressaram a países terceiros aumentou 21,3%, em comparação com o mesmo trimestre de 2023. No segundo trimestre de 2024, a França aplicou o maior número de deportações de migrantes na UE (3870), seguida da Alemanha (3710) e da Suécia (3185).

A França registou também o maior número de ordens de repatriamento emitidas (31195), seguida da Alemanha (12885) e da Grécia (6555). Os Argelinos e Marroquinos são os migrantes que mais receberam a ordem de saída do território da UE, no segundo trimestre de 2024, representando 7% do total, seguidos dos Turcos e dos Sírios (cada um com 6%). No entanto, em termos de pessoas que deixaram, efetivamente, a UE, estão os Georgianos (10%), seguidos dos Albaneses (8%) e dos Turcos (7%).

Esta enorme discrepância entre as ordens de repatriamento e os repatriamentos realizados não significa que dezenas de milhares de imigrantes estejam escondidos em solo europeu. As ordens de repatriamento podem ser suspensas em vários casos”, disse à Euronews Sergio Carrera, investigador principal do Centro de Estudos de Política Europeia, acrescentando: “Algumas pessoas não podem ser expulsas, devido a barreiras técnicas ou práticas, por exemplo, devido a problemas de saúde, ou se o país de origem não puder ser identificado, ou no caso de vítimas de tráfico de seres humanos, ou de menores não acompanhados.”

Com efeito, a diretiva da UE relativa ao repatriamento, na versão atual, não harmoniza estes procedimentos, pelo que “a forma como as autoridades lidam com estas questões é, por vezes, completamente diferente, não só de Estado para Estado, mas também de região para região”, considera Sergio Carrera, para quem a situação dificulta a repartição do fenómeno do repatriamento, em números mais específicos, e a garantia da legalidade dos procedimentos.

“Há uma enorme heterogeneidade e falta de transparência e de responsabilidade. As linhas que separam as obrigações das coisas que são facultativas são muito ténues”, refere o investigador.

Esta situação mantém, no dizer de Alessio Dell’Anna,milhares de imigrantes presos no limbo da burocracia”. Porém, a UE está a tentar colmatar esta lacuna através do financiamento do “More”, novo projeto que visa analisar criticamente as políticas de regresso e readmissão da UE e do Reino Unido. “Neste projeto, vamos questionar a noção de eficácia das políticas de regresso da UE, tal como são atualmente”, disse Carrera, “porque qualquer política de regresso deve respeitar os direitos fundamentais”.

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Esta situação vem sendo encarada, há bastante tempo. Basta reler o artigo de Jorge Liboreiro de 16 de maio na Euronews, à beira das eleições par o Parlamento Europeu (PE).

Um grupo de 15 estados-membros da UE, liderado pela Dinamarca, acabava de lançar, em carta de 15 de maio, o apelo conjunto para desenvolver a externalização da política de migração e asilo (PMA), aduzindo que o aumento “insustentável” das chegadas irregulares, registado nos últimos anos, justificava que se pensasse “fora da caixa”. “A UE e os seus estados-membros devem reforçar a sua contribuição para parcerias equitativas, construtivas e alargadas com países-chave, especialmente ao longo das rotas migratórias, mudando o nosso foco da gestão da migração irregular, na Europa, para o apoio aos refugiados e às comunidades de acolhimento nas regiões de origem”, escreveram, sustentando: “Se quisermos prosseguir os nossos esforços para quebrar as estruturas de incentivo que impulsionam os movimentos migratórios irregulares e as viagens perigosas para a Europa, são necessários esforços complementares.”

A carta, que surgiu poucos dias depois de o bloco ter concluído o Novo Pacto sobre Migração e Asilo (novo PMA), após quase quatro anos de negociações, foi dirigida aos altos funcionários da Comissão Europeia. Além da Dinamarca, era apoiada pela Bulgária, pela Chéquia, pela Estónia, pela Grécia, pela Itália, pelo Chipre, pela Letónia, pela Lituânia, por Malta, pelos Países Baixos, pela Áustria, pela Polónia, pela Roménia e pela Finlândia, refletindo um consenso interpartidário.

Em quatro páginas, os signatários apresentavam ideias e propostas para transferir, parcialmente, as tarefas das autoridades nacionais para os países vizinhos da UE e defendiam “parcerias abrangentes, mutuamente benéficas e duradouras” com as nações situadas ao longo das rotas migratórias, seguindo o exemplo dos acordos que a UE celebrou com a Turquia, com a Tunísia e com o Egito, que atribuem milhões de euros ou milhares de milhões de fundos comunitários, em troca de controlos fronteiriços mais rigorosos.

Esta estratégia, diziam, deve basear-se no protocolo assinado, em 2023, entre a Itália e a Albânia, ao abrigo do qual Roma planeia subcontratar o processamento de até 36 mil pedidos de asilo, por ano, àquele país dos Balcãs. O protocolo, feito sem a intervenção de Bruxelas, difere, dos acordos da UE com a Tunísia e com o Egipto, que não incluem disposições para transferir os requerentes de asilo de um local para outro, o que é controverso. Porém, os signatários acreditam que este é o caminho certo e apelam ao bloco para explorar soluções para “resgatar migrantes em alto mar e trazê-los para um local pré-determinado de segurança num país parceiro fora da UE”.

A carta parece ter sido deliberadamente programada para coincidir com a conclusão do novo PMA, que levará dois anos a tornar-se plenamente aplicável. A Dinamarca tem uma cláusula de autoexclusão de longa data do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça (ELSJ), pelo que não está vinculada ao Novo Pacto. A Comissão prometeu analisar a carta, que descreveu como “complexa” e “abrangente”, vincando que a tónica, nos próximos anos, seria colocada na implementação da reforma. Os signatários elogiam o Novo Pacto e afirmam que este proporciona um quadro jurídico sólido para combater a migração irregular. Todavia, frisam que “são necessários esforços complementares”.

A deslocalização deve aplicar-se à questão dos regressos, ponto nevrálgico da política de migração da UE. Há anos, os estados-membros esforçam-se por garantir que os requerentes a quem é recusada proteção internacional (por serem, por exemplo, migrantes económicos) sejam reenviados para os países de onde vieram. Apesar dos esforços de Bruxelas e das outras capitais, a taxa de regresso continua a ser baixa, oscilando entre 25% e 30%.

Os signatários dizem que a externalização pode ajudar, criando “mecanismos de retorno” fora do bloco, para onde os repatriados poderiam ser transferidos, enquanto aguardam a extradição final. Por outro lado, propõem-se enviar os requerentes de asilo para um país terceiro seguro alternativo e completar ali o processo, para aliviar a pressão sobre as autoridades nacionais. A Comissão quer rever no âmbito do novo PMA, o conceito de “país terceiro seguro”.

Entretanto, já o navio Libra navegava pelo mar Adriático com os primeiros 16 migrantes destinados aos centros de acolhimento na Albânia, quando foi tornada pública (em 15 de outubro), antes da reunião do Conselho Europeu, a carta (com dez pontos de ação) da presidente da Comissão Europeia destinada aos líderes dos 27 estados-membros, defendendo que a UE deveria considerar legislar sobre “centros de retorno” em países terceiros para acelerar as expulsões de imigrantes ilegais, já que a política de migração da UE só ser sustentável, se os que não têm o direito de permanecer na UE forem efetivamente repatriados. Porém, apenas cerca de 20% dos nacionais de países terceiros que receberam ordem de saída regressaram efetivamente. 

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Enfim, os 15 subscritores da carta de maio são a maioria dos 27 estados-membros da UE, o que significa que o novo PMA será executado de acordo com a sua interpretação e com a sua pressão, a que não é estranha a ascensão da extrema-direita na UE. E os migrantes sofrem.

2024.10.15 – Louro de Carvalho

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