sábado, 19 de outubro de 2024

Pântanos, bancarrotas e empobrecimentos

 

Luís Montenegro, líder reeleito do Partido Social Democrata (PSD), terminou a primeira intervenção no 42.º Congresso, com implícita referência aos últimos três primeiros-ministros do Partido Socialista (PS), proclamando que “não somos descendentes nem de pântanos, nem de bancarrotas, nem de empobrecimentos”. A isso contrapôs o “sentido de Estado de Francisco Pinto Balsemão, o transformismo de Aníbal Cavaco Silva, o patriotismo de Durão Barroso e de Pedro Santana Lopes, a coragem de Pedro Passos Coelho e os valores sociais-democratas de Francisco Sá Carneiro”. Não milito no PS, nem combato o PSD. Se fosse militante do PS, destruiria – ou, ao menos, minimizaria – a narrativa da exclusividade do pântano, da bancarrota e do empobrecimento atribuídos, em exclusivo, ao PS.

Sobre Francisco Sá Carneiro, penso que não sabemos aferir da sua capacidade de estadista, pois o seu governo durou pouco mais de um ano. Quanto a valores professados, entroncam na doutrina social da Igreja (DSI), com forte componente personalista e humanista. Porém, albergou alguns contravalores, por exemplo, excessivo dirigismo e alguma desvalorização dos líderes interinos do seu partido, como recusou apresentar a demissão com a mudança de legislatura, em 1980.

Porém, recordo que o Presidente da República, Ramalho Eanes, no discurso de posse do primeiro Executivo da Aliança Democrática (AD) referiu que o governo dispunha de todas as condições políticas e económicas para governar. Tinham os dois governos presididos por Mário Soares (o segundo com a participação do CDS – Centro Democrático Social) suscitado a intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI), para equilibrar as contas e dar ânimo economia, ambas esfaceladas pela dinâmica revolucionária e pelos custos da transferência e da integração de cerca de meio milhão de cidadãos que viviam nas antigas colónias, no que sobressaiu o apoio de instâncias internacionais, nomeadamente o Programa Mundial Alimentar da Organização das Nações Unidas (ONU). Os governos provisórios, com exceção do 4.º, tiveram a participação também de elementos do PSD.

Do “sentido de Estado de Francisco Pinto Balsemão”, devo referir que sucedeu, no governo (1981-1982), a Sá Carneiro, por trágica morte deste, e que a sua governação caiu por interno desentendimento na AD. Seguiram-se três governos de iniciativa presidencial. Contas e economia tiveram de ser refeitas pelo FMI, a pedido de um governo liderado por Mário Soares, em que participou o PSD (bloco central). Portanto, as duas primeiras intervenções do FMI não foram causadas, em exclusivo, pelo PS. O patriota Durão Barroso, depois de ver armas de destruição massiva no Iraque, deixou o governo de Portugal e foi presidir à Comissão Europeia, ficando o Presidente da República, Jorge Sampaio, com a cabeça em água e país no pântano santanista (sobretudo por culpa dos barões do PSD, que Santana Lopes não soube tornear).

A intervenção da troika (formada pelo FMI, pela Comissão Europeia e pelo Banco Central Europeu), em 2011, resultou, obviamente, da governação de maioria absoluta do então líder do PS, enaltecida pelo seu partido, mas também por quase toda a direita portuguesa. O próprio Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, mais tarde, confessou nunca ter encontrado nada de ilegal na ação governativa de José Sócrates. Não obstante, é de situar a governação socialista de então no quadro da crise financeira com origem norte-americana, que foi alastrando para o resto do Mundo, mormente para a Europa, afetando as economias dos países do Sul, que, além de verem os seus cidadãos acusados de viverem acima das suas possibilidades, foram explorados até ao tutano, para a banca dos países do Norte e do Centro da Europa não entrar em colapso.

Entretanto, a princípio, as instruções da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu (BCE) eram no sentido do incentivo ao investimento público e privado, a que o governo não soube opor-se; depois, veio a ordem de restrições. E a intervenção da troika impôs um ajustamento económico e financeiro, acordado e subscrito, por elementos do governo (já minoritário) e da oposição. Nesse contexto, Passos Coelho prometeu governar além da troika e só não foi mais longe, porque foi travado pelo Tribunal Constitucional (TC).

Assim, mesmo a gravosa intervenção da troika não foi da exclusiva responsabilidade do PS.

Quanto aos governos de que é herdeiro Luís Montenegro, ressalta, no negativo, um conjunto de “benefícios” (?) para a população, como: a extinção de boa parte da ferrovia; um grande painel de privatizações, alegadamente, porque o setor privado gere melhor do que o Estado (banca, seguros, meios de comunicação social, transportadoras, etc.); empobrecimento da marinha mercante e da marinha de pesca; agonia da agricultura; minimização das forças armadas; neutralização, na prática, da regionalização; desvalorização dos estatutos dos servidores do Estado, sobretudo com Passos Coelho (na sequência de medidas de Durão Barroso e de Sócrates); e privatização de setores estratégicos (Cimpor, EDP, REN, ANA, CTT, TAP, etc.).

Nesse quadro, em 20 anos, Cavaco Silva foi primeiro-ministro e Presidente da Republica!

Sob o patrocínio de personalidades do PSD, criaram-se bancos cujo desfecho foi dramático.     

Tem razão Luís Montenegro, ao afirmar que “as pessoas estão fartas de intrigas, de truques e de malabarismos”, urgindo uma política que envolve “ouvir, refletir, pensar, e, depois, decidir, com responsabilidade, coragem e sentido de justiça”, reconhecendo que “não acertamos sempre, mas também não andamos aos ziguezagues”. Porém, aí, o primeiro-ministro e o seu governo não serão exemplo a seguir. Basta recordar o que prometeu sobre o aumento das pensões mais baixas, para vir esclarecer que se referia ao complemento solidário para idosos (CSI), ou o que propalou o ministro da Presidência, ao garantir que não é necessário o mestrado em Direito para candidatura a juiz e, depois, vir a saber-se que é necessária a licenciatura de cinco anos (pré-Bolonha) e a parte curricular do mestrado.

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Entretanto, sabe-se que o governo vai pedir à Assembleia da República (AR) autorização de nova despesa de cerca 200 milhões de euros com bancos privados falidos (o setor privado, afinal, não gere melhor do que o setor público), nomeadamente, o Banco Português de Negócios (BPN) e o Banco Internacional do Funchal (Banif). É mais do que custará a recuperação integral do tempo de serviço dos professores no próximo ano (177 milhões de euros), segundo a proposta de Orçamento do Estado para 2025 (OE 2025).

Todos os anos, desde a crise financeira de 2008, os sucessivos governos têm inscrito previsão de despesa muito avultada nos OE para salvar ou para apoiar bancos. A conta já ultrapassa, largamente, 20 mil milhões de euros. O OE2025 não é exceção: de acordo com um levantamento feito pelo DN/Dinheiro Vivo aos mapas da proposta orçamental, o governo pedirá autorização à AR para fazer nova despesa com restos de bancos privados, que faliram, no valor de 199,3 milhões de euros, uma verba para continuar a apoiar cinco veículos financeiros que carregam os destroços de dois bancos que faliram há muitos anos: BPN, falido e nacionalizado, em 2008; e o Banif, falido e resolvido, em 2015.

É do universo BPN, grande devedor da Caixa Geral de Depósitos (CGD), que continuam a vir os maiores prejuízos e pressões para o erário público. No OE 2025, o governo inscreveu a despesa de 101,5 milhões de euros para a Parvalorem, veículo financeiro que ficou com vários ativos problemáticos do banco de José Oliveira Costa, designadamente, uma carteira de imóveis, muitos de difícil recuperação e sem grande valor. Além disso, os restos do BPN foram depositados em mais duas sociedades, a Parparticipadas e a Parups, que não constam dos mapas deste OE, já que a Parparticipadas foi “incorporada na Parvalorem”. Para o Banif, fundado por Horácio Roque, o OE prevê a despesa de 61,8 milhões de euros com a Oitante, veículo financeiro que carrega os ativos menos bons e tóxicos que o Santander Totta não quis comprar, aquando da resolução. Em todo o caso, esta sociedade tem conseguido entregar lucros ao Fundo de Resolução (FdR), mas precisa de fundos públicos para se manter à tona, como provam os sucessivos orçamentos.

O OE 2025 prevê, ainda, gastar 32,9 milhões de euros com a Banif Imobiliária e mais um milhão de euros com a firma Banif, SA. Tudo considerado dá os referidos 199,3 milhões de euros.

Pedir dinheiro à AR para segurar restos de bancos não existentes não é originalidade do governo da AD. Por exemplo, o governo PS inscreveu no OE 2024 (hoje em vigor) 294,4 milhões de euros por conta dos dois universos em questão, BPN e Banif. O OE2023 previa gastar 476,9 milhões de euros com os mesmos veículos financeiros. E, em 2023, houve uma péssima notícia para os contribuintes, conhecida no final de março de 2024, quando o Instituto Nacional de Estatística (INE) divulgou a primeira notificação do Procedimento dos Défices Excessivos, revelando que os contribuintes perderam 915,9 milhões de euros de uma assentada por conta do BPN, além das perdas estimadas inicialmente para a carteira do BPN.

Este resto de BPN é, no atinente aos apoios do setor financeiro, o segundo elemento mais ruinoso para as contas, a seguir à dupla BES/Novo Banco. Compreende-se a razão: o Banco Espírito Santo (BES) era um dos maiores bancos privados e tinha grande escala internacional. Segundo o Tribunal de Contas (TdC), que faz o apuramento (banco a banco) do custo efetivo imputado aos contribuintes no âmbito do parecer à Conta Geral do Estado, coloca o custo com o BPN, banco de pequena-média dimensão, nuns astronómicos seis mil milhões de euros. Porém, a liderar, continua o BES, que faliu com estrondo, em 2014, tendo sorvido já 8,3 mil milhões de euros ao erário público. O Banif, outro banco que era de média dimensão, custou, até agora, 2,9 mil milhões de euros ao Estado desde que foi “resolvido”.

Além do gasto associado ao BPN, o INE revelou que, em 2023, ocorreu mais uma ajuda prevista ao Novo Banco (NB), a marca herdeira do antigo BES, no valor de “117 milhões de euros associados à conversão de ativos por impostos diferidos (DTA) do NB em crédito tributário reembolsável”. muitos políticos – do PS, do PSD e do CDS – tinham ótima relação com o BES.  

Em 2023, o agravamento no custo com apoios ao setor financeiro passou quase despercebido, já que ficou diluído num ano de excedente orçamental recorde, que chegou a 3247 milhões de euros, o equivalente a 1,2% do produto interno bruto (PIB). Sobre a situação deste ano, a execução das despesas previstas no OE 2024 e eventuais surpresas como novas “perdas adicionais de créditos não passíveis de recuperação” decorrente da operação Parvalorem, nada se sabe. Devemos esperar até final de março de 2025. De 2010 a 2023, despesa pública com o setor financeiro ascende a 24,6 mil milhões de euros, mais de 9% do PIB (em 2023).

O BPN já custou aos contribuintes mais de 6 mil milhões de euros, apesar de, na altura do colapso por gestão ruinosa ser considerado banco de pequena-média dimensão. Estava ligado a personalidades de alto perfil da área do PSD (José Oliveira Costa, antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e Manuel Dias Loureiro, antigo ministro das Administração Interna). Foi nacionalizado, em 2008, pelo então governo do PS, de José Sócrates. Na altura, o ministro das Finanças, Fernando Teixeira dos Santos, alegou que havia “risco sistémico”, para o setor bancário como um todo, se se deixasse cair o BPN. Como, então, não havia mais ferramentas para amparar bancos, nacionalizou-se.

Em 2014, cairia com estrondo um dos maiores bancos privados de Portugal, o BES, que foi separado em dois bancos. Um mau, outro menos mau, o NB. Nesse ano, procedeu-se à inclusão de 4,9 mil milhões de euros relativos à capitalização do NB, como transferência de capital. Foi o primeiro grande apoio dos contribuintes ao resto do império de Ricardo Salgado, com 5,1 mil milhões de euros em prejuízos para o OE. Em 2015, foi-se outro banco de pequena-média dimensão e ficaram os contribuintes a pagar o resultado da destruição. De facto, em dezembro de 2015, no contexto da resolução do Banif, houve um apoio público, na forma de injeção de capital, de 2255 milhões de euros, dos quais 489 milhões de euros pelo FdR, entidade incluída no setor institucional das administrações Públicas (AP), e 1766 milhões de euros diretamente pelo Estado.

No final de 2015, o défice gerado pela banca ascendeu a 2,8 mil milhões de euros, o terceiro maior de sempre. Anos mais tarde, haveria a recapitalização da CGD, que incorporou pesadas perdas por causa do BPN, no início. Porém, ao invés dos outros, que são privados, os contribuintes foram chamados a apoiar o seu banco, o banco público. O impacto da operação de recapitalização da CGD ascendeu a 3944 milhões de euros, o que deu no agravamento da necessidade de financiamento das AP, em 2% do PIB, segundo o INE. Não fora isso e Portugal teria, nesse ano, um dos défices mais baixos de sempre, cerca de 1%, com os cidadãos premidos pela troika.

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No âmbito do processo de julgamento do caso BES, José Maria Ricciardi, ex-presidente do Banco Espírito Santo Investimento (BESI), disse que o BES era sólido e, pondo as culpas no Banco de Portugal (BdP) sustentou que, “se não se tivesse feito a resolução e se tivesse emprestado quatro ou cinco mil milhões, o BES tinha sobrevivido e hoje era um banco ótimo”.

Segundo dados do INE, a despesa pública líquida no apoio ao setor financeiro, ou seja, o gasto total, descontando o pouco que o Estado ganhou em juros, comissões e dividendos, chegava para financiar o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), avaliado em 22,2 mil milhões de euros.

Enfim, os governantes não podem assobiar para o lado como, alegadamente, fez o BdP; e todos somos lesados do BPN, do Banif, do BES e da CGD. O dinheiro público investido na banca é dos contribuintes, das mesas dos cidadãos, algumas delas bem magras!

2024.10.19 – Louro de Carvalho

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