domingo, 13 de outubro de 2024

Privilégio das pensões dos magistrados do Ministério Público jubilados

 

Os magistrados judiciais e o magistrados do Ministério Público (MP) gozam de um estatuto totalmente à parte dos demais, no atinente à pensão de reforma / aposentação, sobretudo na modalidade de jubilação.

O tema está na ordem do dia, porque a ex-procuradora-geral da República, que só deixou o cargo a 12 de outubro, viu a pensão de jubilação (de montante superior a sete mi euros) publicada no Diário da República (DR) a 7 de outubro, para lhe ser atribuída já a partir de 1 de novembro. Ora, nos termos do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público (EMP), “até à liquidação definitiva, os magistrados jubilados têm direito ao abono de pensão provisória, calculada e abonada nos termos legais pela repartição processadora”. Ou seja, até à publicação no DR, são abonados pela repartição processadora. Terão os magistrados um regime de exceção.

Segundo o Estatuto (EMP) e segundo o Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), há duas opções de fim de carreira para os magistrados: a reforma / aposentação em moldes semelhantes (que não iguais) à dos funcionários públicos e a jubilação. 

Na primeira, o processo é semelhante a qualquer outro trabalhador português. Diz o “Polígrafo” (3 de julho de 2019) que quando um magistrado atinge a idade legal da reforma – que atualmente se situa nos 66 anos e cinco meses – o valor da pensão resulta da multiplicação da remuneração de referência pela taxa global de formação, que corresponde ao número de anos civis com registos de remunerações, e pelo fator de sustentabilidade. Ora, o fator de sustentabilidade apenas se aplica às pensões de reforma / aposentação estabelecidas por antecipação em relação à idade legal ou à idade pessoal de reforma / aposentação.

O EMP (aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março) estabelece, no artigo 189.º, as condições da aposentação / reforma:

“1 - A pensão de aposentação ou reforma dos magistrados aposentados ou reformados é calculada com base na seguinte fórmula: R x T1/C, em que R é a remuneração mensal relevante nos termos do Estatuto da Aposentação, deduzida da percentagem da quota para aposentação e pensão de sobrevivência no âmbito do regime da Caixa Geral de Aposentações; T1 é a expressão em anos do número de meses de serviço, com o limite máximo de C; C é o número constante do anexo iv do presente Estatuto [quem se aposenta a partir de 2020, tem de ter 40 anos de serviço), do qual faz parte integrante.

“2 - Integra a remuneração mensal relevante o subsídio previsto nos n.os 2 e 3 do artigo 130.º [“subsídio compensação”, por motivo de residência], pelo número de meses correspondente à quotização realizada para a Caixa Geral de Aposentações ou para a segurança social.”

Os demais funcionários do Estado ou das autarquias não veem incluído, na pensão, um “subsídio de compensação”, por motivo de residência. Porém, os funcionários cujo estatuto prevê a sua participação nas receitas do serviço respetivo veem parte da pensão composta por essa participação, tal como a remuneração mensal enquanto estiveram no ativo. Ou seja, não há só discrepância entre magistrados e os outros funcionários públicos. Também no universo destes há diferenças.  

Na jubilação – a pensão do magistrado é calculada em função de todas as remunerações sobre as quais incidiu o desconto respetivo, não podendo a pensão líquida do magistrado jubilado ser superior nem inferior à remuneração do magistrado no ativo de categoria idêntica. Efetivamente, o artigo 190.º do EMP estabelece, no âmbito da jubilação:

“1 - Consideram-se jubilados os magistrados do Ministério Público que se aposentem ou reformem, por motivos não disciplinares, com a idade e o tempo de serviço previstos no anexo v do presente Estatuto e desde que contem, pelo menos, 25 anos de serviço na magistratura, dos quais os últimos cinco tenham sido prestados ininterruptamente no período que antecedeu a jubilação, exceto se o período de interrupção for motivado por razões de saúde ou se decorrer do exercício de funções públicas emergentes de comissão de serviço.

“2 - Os magistrados jubilados continuam vinculados aos deveres estatutários e ligados ao tribunal ou serviço de que faziam parte, gozam dos títulos, honras, direitos e imunidades correspondentes à sua categoria e podem assistir de trajo profissional às cerimónias solenes que se realizem no referido tribunal ou serviço, tomando lugar à direita dos magistrados em serviço ativo.

“3 - Aos magistrados jubilados é aplicável o disposto nas alíneas a), d), g), h) e i) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 111.º [direito ao gratuito uso, porte e manifesto de arma; ao uso gratuito de transportes públicos; ao acesso gratuito, nos termos legais, a bibliotecas e bases de dados documentais públicas; à vigilância especial da sua pessoa, família e bens; à isenção de custas em qualquer ação em que sejam parte principal ou acessória por causa do exercício das suas funções], no n.º 5 do artigo 129.º [remuneração base e subsídios de féria e de Natal] e nos n.os 2 e 3 do artigo 130.º [“subsídio de compensação”, por motivo de residência].

“4 - A pensão é calculada em função de todas as remunerações sobre as quais incidiu o desconto respetivo, não podendo a pensão do magistrado jubilado ser superior nem inferior à remuneração do magistrado do Ministério Público no ativo de categoria e índice remuneratório idênticos, deduzida da quota para a Caixa Geral de Aposentações ou da quotização para a segurança social.
“5 - As pensões dos magistrados jubilados são automaticamente atualizadas e na mesma proporção em função das remunerações dos magistrados de categoria e escalão correspondentes àqueles em que se verifica a jubilação.

“6 - A pensão calculada nos termos do n.º 4 inclui o valor correspondente ao subsídio previsto no artigo 130.º [“subsídio de compensação”, por motivo de residência], independentemente do número de anos da quotização prevista no n.º 3 do mesmo preceito.

“7 - Até à liquidação definitiva, os magistrados jubilados têm direito ao abono de pensão provisória, calculada e abonada nos termos legais pela repartição processadora.

“8 - Os magistrados jubilados encontram-se obrigados à reserva exigida pela sua condição.

“9 - O estatuto de jubilado pode ser retirado por via de procedimento disciplinar.

“10 - Os magistrados podem renunciar à condição de jubilado, ficando sujeitos ao regime geral da aposentação ou reforma, não podendo readquirir aquela condição.

“11 - Aos magistrados com mais de 40 anos de idade na data de admissão no Centro de Estudos Judiciários (CEJ) não é aplicável o requisito de 25 anos de tempo de serviço na magistratura previsto no n.º 1.”

Assim, na jubilação, o magistrado continua a receber o valor bruto correspondente à categoria e escalão a que pertence, mas é obrigado a manter as restrições e deveres aplicados à profissão – não podendo desempenhar outra função pública ou privada de natureza profissional, salvo as funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica, não remuneradas, e funções diretivas em organizações sindicais da magistratura judicial. “Nós podemos reformar-nos como qualquer cidadão português, mas, se pedirmos o estatuto da jubilação, temos de manter os mesmos direitos e deveres como quando estávamos a trabalhar, ou seja não podemos fazer mais nada”, explicava ao “Polígrafo” António Ventinhas, ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP).

Assim o magistrado aposentado pode exercer advocacia ou política, bem como ingressar na carreira de docente, recebendo as respetivas remunerações; já o magistrado jubilado não pode receber qualquer remuneração e terá de manter as restrições, deveres e direitos do Estatuto.

“Por essa razão é que o nível de remuneração é diferente: para evitar que, por exemplo, os magistrados vão para escritórios de advocacia, comecem a emitir pareceres ou algo do género. No fundo, também privados de rendimentos”, acrescentava o ex-presidente do SMMP.

Também neste aspeto, há discrepâncias. Em princípio, o funcionário público aposentado não pode prestar serviço para entidades públicas, a não ser em raros casos previstos na lei. E é de questionar com é que um cidadão, com 66 anos e cinco meses de idade, pode ingressar na carreira docente.

Além disso, o acesso a este estatuto é também diferente da reforma ou aposentação. Enquanto a reforma segue a lei geral, a jubilação só podia ser aplicado, em 2019, a magistrados que tivessem, cumulativamente, mais de “64 anos e 6 meses de idade e 40 anos de serviço”, segundo o Anexo II do EMP. Este valor foi aumentado no ano de 2020 para “65 anos de idade e 40 anos de serviço”. Mais uma exceção ao regime dos restantes funcionários do Estado.

Apesar das restrições, a jubilação é o fim de carreira mais requisitado pelos magistrados. No entanto, António Ventinhas acreditava que a situação tendia a inverter-se: “Agora, como estão a entrar pessoas mais velhas para a magistratura, no futuro deixarão de conseguir reunir os dois requisitos”, ou seja os 65 anos de idade e os 40 anos de serviço. “Basicamente, o estatuto da jubilação só se aplica a quem saiu da universidade e entrou, logo, para a magistratura, fazendo toda a vida na magistratura”, rematava António Ventinhas.

Parecida com esta situação, ressalta a de professores universitários, mas só se se mantiverem no ativo atá aos 70 anos de idade.

Também aqui há diferenças: para os funcionários públicos o regime de transição (aumento da idade legal para a aposentação, desconto de 0,5% na pensão por aposentação antecipada e fator de sustentabilidade), vigorou de 2006 a 2013; para os magistrados, de 2011 a 2020.  

Por seu turno, o EMJ (aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de julho e cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º 2/2020, de 31/03) trata da jubilação nos artigos artigo 64.º e 64.º-A; e da aposentação / reforma, no artigo 68.º. Não os transcrevo, por as condições serem idênticas às do EMP, embora com remissões diferentes, pela diferente especificação de categorias e de serviços.  

***

A este respeito, o constitucionalista Vital Moreira, a 12 de outubro, no blogue “Causa nossa”, sustenta que o problema da pensão dos magistrados do MP, quando jubilados não é só o “elevado montante” – no caso, o maior do setor público institucional” –, mas o facto de a pensão equivaler “ao último vencimento bruto no ativo” (sem desconto para a segurança social).

Assim, “é maior a pensão de aposentado do que a remuneração líquida no ativo”. É um “regime altamente vantajoso”, face ao “aplicável aos demais servidores do Estado”, cujas pensões “(i) dependem da carreira contributiva, (ii) equivalem a uma percentagem da última remuneração (deduzida da contribuição para a segurança social), inferior a 90% [Já não é assim: o P2, em vigor desde 2005, desfere um golpe maior] e (iii) têm regras próprias de atualização, sem indexação à atualização das remunerações no ativo”. 

Ainda que tal se justificasse para os juízes (dificilmente justificável), “por serem titulares de órgãos de soberania (os tribunais), com especiais responsabilidades e incompatibilidades”, não há razão para a equiparação dos magistrados do MP, que não são titulares de órgãos de soberania, tendo “relação de emprego público com o Estado”, sem “responsabilidades e incompatibilidades comparáveis com as dos juízes” (desde logo, quanto à liberdade sindical e ao direito à greve). 

Aqui, faço reparo que os juízes têm sindicato (são funcionários e titulares de órgão de soberania, o que é contraditório) e, no limite, podem fazer greve (é controverso).

Um dos efeitos colaterais desde regime é a tendência para a aposentação e para o abandono de funções, atingida a idade necessária (65 anos de idade e 40 de serviço), até porque os candidatos à vaga pressionam, ao invés do que sucede noutras atividades públicas, em que muitos preferem adiar a aposentação até ao limite legal (70 anos) – a menos que possam continuar a atividade no setor privado –, por a aposentação implicar significativa redução de rendimento. 

Um modo de atenuar este indevido privilégio seria permitir a dita jubilação só na idade da aposentação obrigatória (70 anos), como sucede com os professores universitários, aliás sem vantagem nas pensões. O mínimo exigível para obter tal privilégio deveria ser algum tempo de serviço extra e de contribuição adicional, para moderar o peso dessas pensões nos contribuintes. Porém, é impensável esperar que partidos políticos, governos e parlamento tenham a coragem para tanto. Os privilégios corporativos tornam-se “direitos coletivos irrevogáveis”.

Citando um leitor, Vital Moreira aponta a manutenção pelos pensionistas do subsídio de compensação, relativamente ao qual, “através de decisões judiciais, em benefício próprio, decidiram que não era tributado em sede de IRS”. Inicialmente atribuído aos magistrados deslocados como compensação no caso de falta de “casa de função”, foi estendido a todos, “em compensação da exclusividade das funções (como se esta não fosse tida em conta no montante da remuneração). E diz o constitucionalista: “Perante um poder político frágil e/ou pusilânime, não há limite para a imaginação na captura de benefícios pelas corporações profissionais poderosas.”

***

Todos somos iguais perante a lei, mas a lei estabelece situações de privilégio. E há casos em que se interpreta a lei, a gosto da exceção. Tal é o caso do novo procurador-geral da República, empossado à beira dos 70 anos de idade, tempo em que a lei manda cessar funções! 

2024.10.12 – Louro de Carvalho

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