Os magistrados judiciais e o magistrados do Ministério
Público (MP) gozam de um estatuto totalmente à parte dos demais, no atinente à
pensão de reforma / aposentação, sobretudo na modalidade de jubilação.
O tema está na ordem do dia, porque a
ex-procuradora-geral da República, que só deixou o cargo a 12 de outubro, viu a
pensão de jubilação (de montante superior a sete mi euros) publicada no Diário da República (DR) a 7 de outubro, para lhe ser
atribuída já a partir de 1 de novembro. Ora, nos termos do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público (EMP), “até à liquidação definitiva, os
magistrados jubilados têm direito ao abono de pensão provisória, calculada e
abonada nos termos legais pela repartição processadora”. Ou seja, até à
publicação no DR, são abonados pela
repartição processadora. Terão os magistrados um regime de exceção.
Segundo o Estatuto
(EMP) e segundo o Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), há duas opções de fim de carreira para os magistrados: a reforma / aposentação em moldes
semelhantes (que não iguais) à dos funcionários públicos e a jubilação.
Na primeira, o processo é semelhante a qualquer outro
trabalhador português. Diz o “Polígrafo” (3 de julho de 2019) que quando um
magistrado atinge a idade legal da reforma – que atualmente se situa nos 66
anos e cinco meses – o valor da pensão resulta da multiplicação da remuneração de referência pela taxa global
de formação, que corresponde ao número de anos civis com registos de
remunerações, e pelo fator de sustentabilidade. Ora, o fator de
sustentabilidade apenas se aplica às pensões de reforma / aposentação
estabelecidas por antecipação em relação à idade legal ou à idade pessoal de
reforma / aposentação.
O EMP (aprovado
pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 2/2020, de
31 de março)
estabelece, no artigo 189.º, as condições da aposentação / reforma:
“1 - A
pensão de aposentação ou reforma dos magistrados aposentados ou reformados é
calculada com base na seguinte fórmula: R x T1/C, em que R é a remuneração
mensal relevante nos termos do Estatuto da Aposentação, deduzida da percentagem
da quota para aposentação e pensão de sobrevivência no âmbito do regime da
Caixa Geral de Aposentações; T1 é a expressão em anos do número de meses de
serviço, com o limite máximo de C; C é o número constante do anexo iv do presente Estatuto [quem se
aposenta a partir de 2020, tem de ter 40 anos de serviço), do qual faz parte
integrante.
“2 - Integra
a remuneração mensal relevante o subsídio previsto nos n.os 2 e 3 do
artigo 130.º [“subsídio compensação”, por motivo de residência], pelo número de
meses correspondente à quotização realizada para a Caixa Geral de Aposentações
ou para a segurança social.”
Os demais funcionários do Estado ou das autarquias não
veem incluído, na pensão, um “subsídio de compensação”, por motivo de
residência. Porém, os funcionários cujo estatuto prevê a sua participação nas
receitas do serviço respetivo veem parte da pensão composta por essa
participação, tal como a remuneração mensal enquanto estiveram no ativo. Ou
seja, não há só discrepância entre magistrados e os outros funcionários
públicos. Também no universo destes há diferenças.
Na jubilação – a pensão do magistrado é calculada em
função de todas as remunerações sobre as quais incidiu o desconto respetivo, não podendo a pensão líquida do magistrado jubilado
ser superior nem inferior à remuneração do magistrado no ativo de categoria
idêntica. Efetivamente, o artigo 190.º do EMP estabelece, no âmbito da jubilação:
“1 - Consideram-se jubilados os magistrados do Ministério Público que se
aposentem ou reformem, por motivos não disciplinares, com a idade e o tempo de
serviço previstos no anexo v do presente Estatuto e desde que contem, pelo
menos, 25 anos de serviço na magistratura, dos quais os últimos cinco tenham
sido prestados ininterruptamente no período que antecedeu a jubilação, exceto
se o período de interrupção for motivado por razões de saúde ou se decorrer do
exercício de funções públicas emergentes de comissão de serviço.
“2 - Os
magistrados jubilados continuam vinculados aos deveres estatutários e ligados
ao tribunal ou serviço de que faziam parte, gozam dos títulos, honras, direitos
e imunidades correspondentes à sua categoria e podem assistir de trajo profissional
às cerimónias solenes que se realizem no referido tribunal ou serviço, tomando
lugar à direita dos magistrados em serviço ativo.
“3 - Aos
magistrados jubilados é aplicável o disposto nas alíneas a), d), g), h) e i) do
n.º 1 e no n.º 2 do artigo 111.º [direito ao gratuito uso, porte e manifesto de
arma; ao uso gratuito de transportes públicos; ao acesso gratuito, nos termos
legais, a bibliotecas e bases de dados documentais públicas; à vigilância
especial da sua pessoa, família e bens; à isenção de custas em qualquer ação em
que sejam parte principal ou acessória por causa do exercício das suas funções], no n.º 5 do artigo 129.º [remuneração base e
subsídios de féria e de Natal] e nos n.os 2 e 3 do artigo 130.º [“subsídio de
compensação”, por motivo de residência].
“4 - A
pensão é calculada em função de todas as remunerações sobre as quais incidiu o
desconto respetivo, não podendo a pensão do magistrado jubilado ser superior
nem inferior à remuneração do magistrado do Ministério Público no ativo de
categoria e índice remuneratório idênticos, deduzida da quota para a Caixa
Geral de Aposentações ou da quotização para a segurança social.
“5 - As pensões dos magistrados jubilados são automaticamente atualizadas e na
mesma proporção em função das remunerações dos magistrados de categoria e
escalão correspondentes àqueles em que se verifica a jubilação.
“6 - A
pensão calculada nos termos do n.º 4 inclui o valor correspondente ao subsídio
previsto no artigo 130.º [“subsídio de compensação”, por motivo de residência],
independentemente do número de anos da quotização prevista no n.º 3 do mesmo preceito.
“7 - Até à
liquidação definitiva, os magistrados jubilados têm direito ao abono de pensão
provisória, calculada e abonada nos termos legais pela repartição processadora.
“8 - Os
magistrados jubilados encontram-se obrigados à reserva exigida pela sua
condição.
“9 - O
estatuto de jubilado pode ser retirado por via de procedimento disciplinar.
“10 - Os
magistrados podem renunciar à condição de jubilado, ficando sujeitos ao regime
geral da aposentação ou reforma, não podendo readquirir aquela condição.
“11 - Aos
magistrados com mais de 40 anos de idade na data de admissão no Centro de
Estudos Judiciários (CEJ) não é aplicável o requisito de 25 anos de tempo de
serviço na magistratura previsto no n.º 1.”
Assim, na jubilação, o magistrado continua a receber o
valor bruto correspondente à categoria e escalão a que pertence, mas é obrigado
a manter as restrições e deveres aplicados à profissão – não podendo desempenhar
outra função pública ou privada de natureza profissional, salvo as funções
docentes ou de investigação científica
de natureza jurídica, não remuneradas, e funções diretivas em organizações
sindicais da magistratura judicial.
“Nós podemos reformar-nos como qualquer cidadão português, mas, se pedirmos o estatuto da jubilação, temos de manter os
mesmos direitos e deveres como quando estávamos a trabalhar, ou seja não
podemos fazer mais nada”, explicava ao “Polígrafo” António Ventinhas, ex-presidente
do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP).
Assim o magistrado aposentado pode exercer advocacia
ou política, bem como ingressar na carreira de docente, recebendo as
respetivas remunerações; já o
magistrado jubilado não pode receber qualquer remuneração e terá de manter
as restrições, deveres e
direitos do Estatuto.
“Por essa razão é que o nível de remuneração é diferente: para
evitar que, por exemplo, os magistrados vão para escritórios de advocacia,
comecem a emitir pareceres ou algo do género. No fundo, também privados
de rendimentos”, acrescentava
o ex-presidente do SMMP.
Também neste aspeto, há discrepâncias. Em princípio, o
funcionário público aposentado não pode prestar serviço para entidades
públicas, a não ser em raros casos previstos na lei. E é de questionar com é
que um cidadão, com 66 anos e cinco meses de idade, pode ingressar na carreira
docente.
Além disso, o acesso a este estatuto é também
diferente da reforma ou aposentação. Enquanto a reforma segue a lei geral, a
jubilação só podia ser aplicado, em 2019, a magistrados que tivessem, cumulativamente, mais de “64 anos e 6
meses de idade e 40 anos de serviço”, segundo o Anexo II do EMP. Este valor foi aumentado no ano de
2020 para “65 anos de idade e 40 anos de serviço”. Mais uma exceção ao regime
dos restantes funcionários do Estado.
Apesar das restrições, a jubilação é o fim de carreira
mais requisitado pelos magistrados.
No entanto, António Ventinhas acreditava que a situação tendia a inverter-se:
“Agora, como estão a entrar pessoas mais velhas para a magistratura, no futuro
deixarão de conseguir reunir os dois requisitos”, ou seja os 65 anos de idade e
os 40 anos de serviço. “Basicamente, o estatuto da jubilação só se aplica a quem
saiu da universidade e entrou, logo, para a magistratura, fazendo toda a vida
na magistratura”, rematava António Ventinhas.
Parecida com esta situação, ressalta a de professores
universitários, mas só se se mantiverem no ativo atá aos 70 anos de idade.
Também aqui há diferenças: para os funcionários
públicos o regime de transição (aumento da idade legal para a aposentação,
desconto de 0,5% na pensão por aposentação antecipada e fator de sustentabilidade),
vigorou de 2006 a 2013; para os magistrados, de 2011 a 2020.
Por seu
turno, o EMJ (aprovado pela Lei n.º 21/85,
de 30 de julho e cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º 2/2020, de
31/03) trata da jubilação nos artigos artigo
64.º e 64.º-A; e da aposentação / reforma, no artigo 68.º. Não os transcrevo,
por as condições serem idênticas às do EMP,
embora com remissões diferentes, pela diferente especificação de categorias e
de serviços.
***
A este
respeito, o constitucionalista Vital Moreira, a 12 de outubro, no blogue “Causa
nossa”, sustenta que o problema da pensão dos magistrados do MP, quando
jubilados não é só o “elevado montante” – no caso, o maior do setor público
institucional” –, mas o facto de a pensão equivaler “ao último vencimento bruto
no ativo” (sem desconto para a segurança social).
Assim, “é
maior a pensão de aposentado do que a remuneração líquida no ativo”. É um “regime
altamente vantajoso”, face ao “aplicável aos demais servidores do Estado”,
cujas pensões “(i) dependem da carreira contributiva, (ii) equivalem
a uma percentagem da última remuneração (deduzida da contribuição para a
segurança social), inferior a 90% [Já não é assim: o P2, em vigor desde
2005, desfere um golpe maior] e (iii) têm regras próprias de
atualização, sem indexação à atualização das remunerações no ativo”.
Ainda que tal se justificasse para os juízes (dificilmente
justificável), “por serem titulares de órgãos de soberania (os tribunais), com
especiais responsabilidades e incompatibilidades”, não há razão para a
equiparação dos magistrados do MP, que não são titulares de órgãos de soberania,
tendo “relação de emprego público com o Estado”, sem “responsabilidades e
incompatibilidades comparáveis com as dos juízes” (desde logo, quanto à
liberdade sindical e ao direito à greve).
Aqui, faço reparo que os juízes têm sindicato (são
funcionários e titulares de órgão de soberania, o que é contraditório) e, no
limite, podem fazer greve (é controverso).
Um dos efeitos colaterais desde regime é a tendência
para a aposentação e para o abandono de funções, atingida a idade necessária (65
anos de idade e 40 de serviço), até porque os candidatos à vaga pressionam, ao
invés do que sucede noutras atividades públicas, em que muitos preferem adiar a
aposentação até ao limite legal (70 anos) – a menos que possam continuar a
atividade no setor privado –, por a aposentação implicar significativa redução
de rendimento.
Um modo de atenuar este indevido privilégio seria permitir
a dita jubilação só na idade da aposentação obrigatória (70 anos), como sucede
com os professores universitários, aliás sem vantagem nas pensões. O mínimo exigível
para obter tal privilégio deveria ser algum tempo de serviço extra e de contribuição
adicional, para moderar o peso dessas pensões nos contribuintes. Porém, é impensável esperar que partidos políticos, governos
e parlamento tenham a coragem para tanto. Os privilégios corporativos tornam-se
“direitos coletivos irrevogáveis”.
Citando um leitor, Vital Moreira
aponta a manutenção pelos pensionistas do subsídio de
compensação, relativamente ao qual, “através de decisões judiciais, em
benefício próprio, decidiram que não era tributado em sede de IRS”. Inicialmente atribuído aos magistrados deslocados
como compensação no caso de falta de “casa de função”, foi estendido a todos, “em
compensação da exclusividade das funções (como se esta não fosse tida em conta
no montante da remuneração). E diz o constitucionalista: “Perante um poder
político frágil e/ou pusilânime, não há limite para a imaginação na
captura de benefícios pelas corporações profissionais poderosas.”
***
Todos somos iguais perante a lei, mas
a lei estabelece situações de privilégio. E há casos em que se interpreta a lei,
a gosto da exceção. Tal é o caso do novo procurador-geral da República,
empossado à beira dos 70 anos de idade, tempo em que a lei manda cessar funções!
2024.10.12 – Louro de Carvalho
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