É comum, entre eurodeputados de extrema-direita, numa altura em que o
debate sobre a imigração se torna cada vez mais tóxico, a afirmação de que está
aumentar a migração irregular para a União Europeia (UE). Por isso, há
discursos, manifestações e atos violentos contra imigrantes, eivados de
xenofobia e de racismo, até com o pretexto de que estão a descaraterizar os países
europeus, a eclipsar os valores ocidentais, nomeadamente a nossa matriz
judaico-cristã. Parecerá uma
preocupação perene, mas o debate sobre a imigração para a UE aqueceu, nos
últimos meses.
O
primeiro-ministro da Hungria, a 8 de outubro, em Estrasburgo, no discurso ao Parlamento
Europeu (PE), em que apresentou as prioridades da presidência rotativa húngara do
Conselho Europeu, incluiu a defesa de controlos fronteiriços mais rigorosos e
políticas de migração mais duras em toda a UE, bem como a criação de centros de
registo fora da UE, para o tratamento dos pedidos de asilo, e apelou à
realização regular de uma “cimeira de Schengen”, para discutir o controlo das
fronteiras. E reiterou o pedido do seu país para se excluir da política de
migração da UE, uma abordagem que o governo holandês está agora a considerar.
“A ideia de
uma política comum de migração é aceitável, mas, por favor, deixem que os
países que não conseguem seguir a corrente principal tenham uma opção de
exclusão. Caso contrário, estaremos a destruir a União Europeia”, afirmou Victor
Orbán.
É de recordar que o chefe do governo
húngaro ameaçou enviar refugiados para Bruxelas, em resposta à multa de
200 milhões de euros, imposta pelo Tribunal de Justiça Europeu (TJE), por
violar, persistentemente, as regras de asilo do bloco e mais um milhão de euros
por dia, até que alinhe as suas políticas com a legislação da UE.
“Respeitaremos as leis e os regulamentos europeus. Mas, se alguém a quem foi
concedido asilo na Hungria quiser ir para Bruxelas, teremos todo o gosto em
ajudá-lo”, atirou.
No entanto,
a eurodeputada holandesa Tineke Strik, relatora do PE para a Hungria, acusou
Orbán de minar o sistema comum de asilo da UE. Em entrevista à Euronews, afirmou que o
primeiro-ministro húngaro “usa a retórica para reforçar a sua posição e [para]
chantagear a UE, [a fim de] obter mais fundos; não está a cumprir as obrigações
de asilo e os requerentes de asilo estão a ser empurrados para trás nas
fronteiras da Hungria”.
Já a 6 de setembro, Vitor Orbán, no
Fórum de Cernobbio, no Norte de Itália, em que pediu novas leis para conter o fluxo migratório,
clamava que a migração vai desintegrar a UE. “Se olharmos para trás, desde 2014
até agora, este período é um período de processo de desintegração da União
Europeia”, vincou.
O líder
nacionalista, criticado, há muito, que pelas posições contra os
imigrantes, referiu-se a eles como
“veneno” e como “não necessários”, enquanto discutia as suas três
prioridades, durante os seis meses da presidência húngara da UE:
competitividade, guerra na Europa e migração. Disse que a migração – como o
género, o emprego e a segurança – é “questão existencial” que a UE enfrenta. E,
refletindo sobre a abordagem da Hungria à migração ilegal e comparando-a com a
generosa política de asilo da Alemanha, assegurou: “Nunca os deixaremos entrar.”
Depois de ter
discursado no Fórum, reforçou estas declarações na rede social X: “Deixem a Hungria e outros países
optarem por não participar na política comum de migração”, publicou.
Entretanto, o secretário de Estado Bence Rétvári, em conferência de imprensa, em Budapeste, fez
eco destes comentários, afirmando que o governo anti-imigração está empenhado
em pôr em prática um plano para oferecer aos requerentes de asilo viagens
gratuitas, só de ida, para Bruxelas.
Considerando que a UE quer forçar
a Hungria a permitir que “imigrantes ilegais” atravessem as suas fronteiras, disse que o
país ofereceria
a esses imigrantes, voluntária e gratuitamente, viagens só de ida para Bruxelas.
O transporte seria efetuado, “após a aplicação do procedimento europeu”, mas
não especificou qual o estatuto dos requerentes de asilo, após o transporte.
Os comentários foram proferidos tendo
como pano de fundo uma fila de autocarros de passageiros com letreiros
luminosos a dizer “Röszke-Bruxelas” – rota que levaria os imigrantes da
fronteira Sul da Hungria com a Sérvia para a sede da UE, na Bélgica. “Se
Bruxelas quer imigrantes ilegais, Bruxelas pode tê-los”, disse.
A UE discorda da posição de
Budapeste de obrigar as pessoas que procuram proteção
internacional a deslocarem-se às embaixadas húngaras na Sérvia ou na Ucrânia,
para solicitarem autorização de viagem, o que viola as regras da UE, que obrigam
todos os países-membros a terem procedimentos comuns para a concessão de asilo.
O governo de Orbán afirmou que vai instaurar um processo judicial contra a UE, por causa das multas. E exigiu
compensação pelos milhares de milhões que diz ter gasto na proteção das
fronteiras, incluindo a construção de vedações protegidas por arame farpado,
nas suas fronteiras meridionais com a Sérvia e com a Croácia. De facto, a UE
congelou milhares de milhões de euros para a Hungria, devido a violações das
normas do Estado de direito e da democracia. Alguns legisladores da UE pediram
que o país fosse destituído dos direitos de voto na Comissão Executiva. E o governo
não cumpriu o primeiro prazo de setembro para pagar a multa de 200 milhões de
euros, imposta pelo TJE, abrindo caminho a potencial novo conflito com
Bruxelas.
Em Portugal,
a 29 de setembro, uma enorme manifestação anti-imigração organizada pelo Chega
(e em que se terão integrado grupos ainda mais extremistas, como o 1143) encheu
as ruas da capital, no que foi contrariada por uma manifestação de sentido
contrário. Porém, o líder do Chega, André Ventura, contente garantiu que foi um
dia histórico.
Entretanto,
têm-se registado incidentes contra imigrantes, da parte de grupos organizados de
ativistas anti-imigrantes, incluindo o caso de um grupo que encerrou as instalações
da Agência
para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) na cidade do Porto; e o presidente da Câmara de Lisboa, a 5 de
outubro, no 114.º aniversário da implantação da República, mostrou-se contra a imigração
de portas escancaradas, com situações de escravatura e, subliminarmente, de
crime.
***
Enfim, os
políticos de extrema-direita, na França, na Alemanha, na Hungria e noutros
países, têm apontado as chegadas de migrantes, “sem precedentes”, como ameaça à
segurança e à identidade europeias: Berlim introduziu novos controlos
fronteiriços; Budapeste, como vimos, ameaçou enviar autocarros de migrantes
para Bruxelas; e Madrid estabeleceu acordos com líderes africanos para tentar
conter o fluxo de pessoas.
Porém,
apesar da retórica e das várias medidas defensivas, os números oficiais mostram
que, nos primeiros oito meses de 2024, a migração não autorizada para a UE
diminuiu significativamente.
De acordo
com a Organização Internacional para as Migrações (OIM) da Organização das
Nações Unidas (ONU), as travessias irregulares das fronteiras meridionais da UE
– que representam a maior parte deste tipo de migração – diminuíram 35%, de
janeiro a agosto. Cerca de 115 mil migrantes não autorizados, que representam
menos de 0,03% da população da UE, chegaram à UE, neste ano, através do Mediterrâneo
ou do Atlântico, contra 176252 no mesmo período de 2023. Para colocar isto em
perspetiva, mais de um milhão de pessoas entraram na UE, no auge da crise
migratória, em 2015.
Os dados da UE
revelam uma tendência semelhante. A Frontex, a agência de fronteiras do bloco,
diz que as travessias não autorizadas do Sul caíram 39%, neste ano, em
comparação com 2023.
Os migrantes
utilizam, mais frequentemente, a rota do Norte de África através do
Mediterrâneo central, para Itália, e cerca de 64% menos pessoas utilizaram esta
rota, neste ano, do que em 2023. No entanto, os números relativos às rotas
individuais não são os mesmos em todos os setores.
A segunda
rota mais utilizada é a do Mediterrâneo Oriental, onde os números aumentaram
57%, nos primeiros oito meses do ano, com as redes de contrabando a utilizarem
lanchas rápidas e outros métodos agressivos para contrariar a guarda costeira. Isto, apesar do suposto sucesso da UE
com a declaração UE-Turquia, assinada em 2016, que terá travado o fluxo de
migrantes irregulares da Turquia para a UE. A rota atlântica da África
Ocidental para as Ilhas Canárias de Espanha é a terceira mais procurada e a sua
utilização mais do que duplicou, neste ano.
De acordo com
a ONU, mais de 25500 migrantes provenientes de países como o Mali e o Senegal
desembarcaram nesta rota, no final de agosto.
No entanto,
o primeiro-ministro espanhol anunciou uma série de acordos com vários países da
África Ocidental, para tentar travar a maré, para aumentar a cooperação e para combater
o tráfico de seres humanos. Pedro Sánchez garantiu que, apesar da retórica na
Europa, a migração em si não é um problema, mas, sim, um problema que deve ser
tratado com humanidade.
***
Fixemo-nos um pouco no caso da AIMA, no Porto, pelo
que representa. O grupo extremista Habeas Corpus, liderado pelo ex-juiz Rui da
Fonseca e Castro, encerrou o balcão da AIMA, a 8 de outubro, como forma de
protesto. O líder do grupo e alguns militantes afixaram diversos cartazes em
toda a fachada do prédio, onde se lia “AIMA encerrada, enquanto os Portugueses
não tiverem saúde, segurança, habitação, emprego, educação”. Durante a manhã,
os cartazes foram retirados e o atendimento aos imigrantes aconteceu,
normalmente, com seguranças à porta e apoio da Polícia de Segurança Pública
(PSP). A entidade “lamenta estes atos de vandalismo que exibem práticas nada
consentâneas com os valores democráticos e que, em última análise, prejudicam a
segurança interna”.
Com esta ação na AIMA do Porto, já é de três o número
de protestos promovidos por diferentes grupos, mas tendo os imigrantes como
alvo. “A AIMA ficará encerrada, por determinação nossa e por tempo indefinido,
enquanto os portugueses forem cidadãos de segunda na sua própria terra”,
declarou Rui da Fonseca e Castro, num vídeo partilhado no grupo na rede social Telegram. Também foram colados QR Codes
de propaganda do Habeas Corpus. Nos grupos online,
a iniciativa foi festejada. “Esses estrangeiros vieram para substituir a raça
branca; e, por isso, tudo fazem para nos eliminar”, escreveu uma militante.
Outros sugeriram a mesma ação em Lisboa e outras
iniciativas, como “colocar carne de porco”.
Estas atividades são, geralmente, focadas contra
pessoas LGBTI+, contra judeus e contra o 25 de Abril. Uma das ações recentes
foi colocar uma cabeça de porco crua na mesa da reunião da Câmara Municipal de
Vila Franca de Xira. No site oficial,
o grupo frisa que a “luta é do Bem contra o Mal, dos valores Cristãos
Ocidentais, que fazem da civilização europeia a mais evoluída e avançada do
mundo, contra a seita do Anticristo”.
Para a investigadora da Faculdade de Direito
Universidade de Lisboa, Ana Rita Gil, “é um momento em que os discursos
intolerantes passaram a ter um espaço mais público para se exteriorizarem”. De acordo
com a especialista e relatora nacional de diversos estudos para a Comissão Europeia
e para o PE, nesta matéria, a ascensão do Chega tornou o tema da imigração fraturante
na sociedade portuguesa, mudando o paradigma e demonstrando que há espaço para
discursos intolerantes, cujas ideias já poderiam existir, mas não tinham ‘tempo
de antena’”.
Para a investigadora, é importante ouvir as
preocupações das pessoas e dar respostas. “Perceber de onde vem a preocupação e
responder à mesma, ao invés de catalogar, imediatamente, tudo como sendo
intolerância ou xenofobia. Por vezes, é apenas preocupação com o descontrolo,
pura e simplesmente”, analisa, sustentando que, se a resposta não for adequada,
podem ser atraídas para a causa pessoas inicialmente moderadas, que, não sendo
ouvidas, passam intolerantes.
Por mais números que se exibam sobre a importância da mão-de-obra
dos imigrantes no mercado de trabalho e nas receitas para a Segurança Social e
para o fisco (é verdade), é preciso que o governo gira as migrações, de forma que seja
sustentável para todos, pois, enquanto a população vir pessoas sem-abrigo
migrantes na rua, nenhuma estatística as tornará menos extremistas. Depois, há
que saber integrá-los, ministrar-lhes o ensino do Português e fazê-los
cumpridores das nossas leis, mas respeitando, dentro do possível, as suas caraterísticas
culturais.
2024.10.09 –
Louro de Carvalho
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