sábado, 6 de maio de 2023

Paulina Chiziane pediu a descolonização da Língua Portuguesa

 

O Dia Mundial da Língua Portuguesa ficou marcado, em 2023, pela entrega do Prémio Camões 2021 à escritora moçambicana Paulina Chiziane, que enunciou a necessidade de se proceder à descolonização da Língua Portuguesa, na convicção de que, para ser de todos os povos que a falam, precisa de “tratamento, limpeza, descolonização”.

Efetivamente, a laureada com o prémio Camões 2021, no seu discurso da cerimónia da entrega do respetivo prémio, no Picadeiro Real, em Lisboa, a 5 de maio de 2023, Dia Mundial da Língua Portuguesa, assinalou a existência, na Língua de Camões, de “algumas especificidades” que, por vezes, a assustam, dando como exemplo a maneira como algumas palavras surgem definidas em alguns dicionários. É o caso de palavras, como catinga, “que vem como cheiro nauseabundo caraterístico da raça negra”; matriarcado, que aparece definida como “costume tribal africano”, em contraposição com patriarcado, “tradição heroica dos patriarcas”; e palhota, que surge como “habitação rústica caraterística dos negros”.

Na verdade, o cheiro a catinga tem a ver com o produto e o ambiente, não com quem é por ele envolvido. O matriarcado atual, em África, existe sobretudo na região norte de Moçambique, mas não é exclusivo de africanos, nem de deitar fora, como se fosse coisa repugnável segundo critérios machistas. E palhota é, segundo a escritora, habitação ecológica.

Julgo que Paulina Chiziane tem alguma razão em fazer tais observações, não quanto à generalidade dos cultores da língua, nem mesmo dos dicionaristas atuais, mas relativamente a algumas mentalidades e a algumas práticas de falantes e de escritores. Contudo, não me parece justo que se faça uma limpeza a nível diacrónico, queimando ou ostracizando dicionários, gramáticas e obras literárias. O tempo não perdoa e, às vezes, é mordaz, nas suas medidas. Mas as coisas também têm o seu tempo, importando que não se vertam para outros tempos

Não obstante, é possível e desejável libertar alguns conceitos e alguns dos termos que lhes dão corpo em certas categorias coloniais e neocoloniais. E, de igual modo e até mais do que isso, é de combater um outro colonialismo que se vem apoderando da Língua Portuguesa, com a apetência e o agrado de tantas pessoas, entidades e instituições: temos o Português repleto de anglicismos na língua corrente, nas academias e até nas linguagens do Estado.

Temos de libertar o Estado, as instituições de ensino e as empresas da prática dos trabalhos académicos em Inglês, das designações de institutos politécnicos e de faculdades em Inglês, bem como de termos, como coaching, outsourcing, chaiman, master, business, suite, CEO, CFO e tantos outros anglicismos desnecessários, quando temos, para as mesmas atividades, profissões ou misteres, designações e termos bem portugueses. Prefiro ver na versão europeia Língua Portuguesa nomes das versões brasileira, europeia e asiática aos anglicismos desnecessários. Antes era a moda francesa; agora é a moda inglesa. Ora, mais do que proceder à descolonização diacrónica Língua Portuguesa, é preciso fazer a sua descolonização sincrónica.    

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Porém, esta efeméride também ficou assinalada pela intervenção do primeiro-ministro, António Costa, que acentuou a dimensão de universalidade da Língua Portuguesa: “De Camões, retemos o exemplo como criador de uma nova língua portuguesa e da sua universalidade. Em vez de uma visão estática da língua, Camões revela a possibilidade de expandir os limites dessa língua. O que torna a Língua Portuguesa universal é a multiplicidade de formas de utilização e de expressão de todos os que a falam, que a escrevem ou cantam”, afirmou o chefe do Governo, na presença do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, dos ministros dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, e da Cultura, Pedro Adão e Silva, e do corpo diplomático.

Destacando que a entrega do Prémio Camões ocorreu, pela primeira vez, no Dia Mundial da Língua Portuguesa, disse que este dia “deve ser sentido, verdadeiramente, como celebração e valorização da comunidade dos países e dos povos que a falam, que, antes de ser uma realidade política, era já uma realidade afetiva”. “Uma língua que não se restringe às formalidades e às decisões dos governos. Mas uma língua que os povos seus falantes usam para comunicar. E, ainda que a falem com múltiplas variantes ou sotaques diversos, a falar se entendem. O Português é, hoje, a língua de várias pátrias, uma língua que navega e se recria em cada porto, permitindo conhecermo-nos melhor na diversidade das nossas múltiplas identidades nacionais, mas também sentirmo-nos menos estrangeiros na casa de cada um”, explanou.

Citando a escritora moçambicana, segundo a qual Luís de Camões foi “um indivíduo para quem o mundo era a sua morada”, para salientar a universalidade da nossa língua, António Costa destacou “a força da tradição oral própria da sua cultura”: “Na sua obra, a língua ganha novas possibilidades, novas estruturas gramaticais, novas sonoridades, revelando uma expressividade linguística que não é dominante e uma liberdade criativa”.

O primeiro-ministro frisou ser esta “uma feliz ocasião para entregar a Paulina Chiziane o Prémio Camões, ele próprio um símbolo maior de uma grande comunidade linguística”, até porque a escritora pertence à geração de autores moçambicanos que emergiu a seguir à independência.

Depois, António Costa referiu que os romances de Paulina Chiziane retratam “as diferenças culturais entre o Norte e o Sul, os traumas da guerra civil, as tradições ancestrais, os dilemas do povo moçambicano, os seus modos, as suas aspirações”. E acrescentou: Como toda a grande literatura, eles permitem aos seus leitores aceder a mundos que lhes são distantes, mas que, ao mesmo tempo, têm uma dimensão universal.”

Vincando que, há 50 anos, nem Portugal, em ditadura, nem Moçambique, sob colonialismo, deixavam falar ou escrever em liberdade, o primeiro-ministro apontou: Foi nesta liberdade partilhada que nos reencontrámos, que nos reencontramos e que seguimos. Paulina Chiziane faz parte dessa geração que viu na literatura um lugar de emancipação pessoal e coletiva e cuja criação literária corresponde a uma necessidade profunda de interpretar e representar a cultura do seu povo. Pioneira a vários títulos, foi a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique e é agora a primeira mulher moçambicana e negra distinguida com o prémio Camões.”

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É de referir que a ministra da Cultura do Brasil, que não esteve presente, mas participou por videomensagem. Margareth Menezes fez, inicialmente, uma referência a Chico Buarque e, depois, enfatizou a importância da entrega do prémio a Paulina Chiziane: “Para mim, como primeira mulher negra a assumir o ministério da Cultura do Brasil, também é muito simbólico e significativo vivenciar este momento em que, pela primeira vez, temos uma escritora negra premiada com Camões.

Margareth Menezes destacou os “temas universais” da escritora, que contribuem para a partilha da cultura moçambicana.

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Também é de vincar que a escritora (nascida em Manjacaze, Moçambique, em 1955), vinda “de lugar nenhum”, que “aprendeu a escrever na areia do chão” e usou “o primeiro par de sapatos com dez anos”, não se ficou pela necessidade da descolonização da Língua Portuguesa. Antes se mostrou “muito feliz” por receber o Prémio Camões, “um prémio tão importante, exatamente no Dia Mundial da Língua Portuguesa”.

“Para quem vem do chão, estar aqui diante do Governo português, do Governo brasileiro, do corpo diplomático e de várias personalidades é algo que me comove profundamente. Caminhei sem saber para onde ia, mas cheguei a algum lugar, que é este prémio”, enfatizou.

Dos seus vários agradecimentos, o maior foi para os seus leitores, “em Moçambique e em todos os países que falam português”.

Confessando-se a “primeira negra a receber tão alto prémio”, partilhou que “um dos primeiros aspetos, para um bom escritor, tem de ser a originalidade”, pois “a dignidade de um povo é feita pela sua originalidade”. E, salientando o orgulho que tem por ser africana, destacou a importância do sentido de afirmação. “Se queres ser alguém na vida, no mundo, deves deixar marcas do teu pé gravadas de forma indelével, para que todos digam: por aqui passou alguém”, afirmou.

Observando que a afirmação é questão “muito séria”, recordou que, quando começou a escrever, lhe diziam que os seus escritos “não eram bem, bem, bem em Língua Portuguesa” e que tinha de “escrever bem, bem, bem em Língua Portuguesa”. Contudo, achou que devia mostrar quem era, a sua identidade como mulher, como negra, como africana, através da Língua Portuguesa.

Paulina Chiziane, cujo percurso linguístico se iniciou pelo Chope, passou ao Ronga e chegou à língua de Camões na escola (Maputo), faz-nos registar um dado muito importante: “Cada povo africano recebeu uma língua, que tem que preservar, guardar”, pois é “herança divina”; mas, depois, por “circunstâncias da história”, receberam outras línguas, “uma herança humana”, que, “no caso do povo moçambicano, é a Língua portuguesa”.

E a escritora, convidando todos a aprenderem línguas africanas, pôs-nos a todos em questão: “O império colonial dizia ‘eu tenho, mas tu não tens’, e não é justo. Tenho uma língua materna e uma que me foi dada. Por que tenho de aprender a que me é dada? E por que não aprendem a minha?”

No final do discurso, disse: “Sou da tradição oral. Gosto de contar histórias. Por vezes, escrevo.”

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Na altura da atribuição do prémio, em 2021, o júri justificou a escolha, por unanimidade, com a “vasta produção e receção crítica, bem como o reconhecimento académico e institucional da obra” de Chiziane. E, referindo a importância que a escritora dedica, nos seus livros, aos problemas da mulher moçambicana e africana, sublinhou o seu trabalho recente de aproximação aos jovens, nomeadamente na construção de pontes entre a literatura e outras artes.

Agora, o presidente do júri, Carlos Mendes de Sousa, disse que “a voz, a claridade, a poesia, o puro encantamento das palavras ditas por Paulina Chiziane mostram uma estreita ligação entre o oral e o escrito”: “Paulina Chiziane escreve como fala. Voz e escrita brotam do mesmo chão, onde vislumbramos a essencial pertença à cultura Bantu, à voz de África, que na sua voz ecoa.”

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Em suma, queremos a Língua Portuguesa descolonizada naquilo que tem de ser (na diacronia e na sincronia), universalizante, inclusiva, mobilizadora, diversificada, rica, livre e libertadora.

2023.05.06 – Louro de Carvalho

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