segunda-feira, 1 de maio de 2023

Desagravar o fascismo pela equivalência ao comunismo não vale

 

Num artigo de opinião, de 26 de abril, subordinado ao título “Rui Rocha, um lugar-comum”, Carmo Afonso, jornalista do Público assinala o “25 de Abril” como “o dia preferido das novas direitas para fazerem tristes figuras”.

Na verdade, há sintomas de que os partidos mais à direita sentem dificuldade em assumir a data da revolução abrilina no seu cariz fundacional do regime democrático e preferiam a celebração do 25 de Novembro, por ter sido, supostamente, a data da libertação da onda mais esquerdista do PREC (processo revolucionário em curso). Dá a impressão de que o motivo por que participam na sessão solene comemorativa, no Parlamento, se prende com a obrigação institucional de marcar presença e, adicionalmente, de aproveitar a oportunidade para fazer vincar a ideia de que o 25 de Abril não tem um dono, sobretudo um dono à esquerda.

Não reparam que também os partidos à esquerda e, mesmo, os partidos considerados do arco democrático moderado lamentam a insuficiência das realizações pós-abrilinas e até alguns recuos no processo evolutivo da democracia. Se reparassem nisso, poderiam afirmar, claramente, o seu ideário de democracia e fazer um discurso mais construtivo. Porém, entendem marcar a diferença pelo combate ao uso do cravo, como se fosse este o ex-libris dos comunistas.  

Ora, a história da presença do inocente, mas agora temível, cravo no epicentro visível da revolução é muito simples.

Naquele dia de abril de 1974, passando o aniversário do restaurante Franjinhas, o proprietário havia encomendado muitos cravos vermelhos para decoração do seu espaço, naquele dia festivo, até porque iria inaugurar um serviço de self-service, o primeiro em Lisboa.

A empregada de mesa Celeste Caeiro, ao chegar ao restaurante, de manhã, com os cravos encomendados, recebeu a notícia de que o estabelecimento não abriria ao público, por estar a decorrer uma revolução. Porém, o patrão recomendou que as flores não fossem desperdiçadas.

Celeste Caeiro recolheu os cravos e dirigiu-se ao Rossio, onde estavam concentrados os soldados à espera de ordens do comando geral. Um soldado, precisando de fogo para acender o seu cigarro, aproximou-se e perguntou se a senhora fumava. A interpelada, não fumadora, disse que não e que só podia oferecer-lhe um cravo vermelho. O militar aceitou e enfiou-o no cano da metralhadora, gesto que foi sendo replicado pelos demais camaradas. Assim, todos os cravos foram distribuídos. E o cravo passou a ser o símbolo da revolução que não derramou nenhuma gota de sangue.

Todos os partidos políticos com assento parlamentar usaram da palavra na sessão comemorativa do 25 de Abril e todos acentuaram o que entendem como ameaças à democracia e as ambiguidades da mesma. Porém, o Chega, para lá de patrocinar e organizar uma manifestação (prometida) enorme (mas reduzida a umas dezenas de manifestantes) nas imediações do Parlamento, contra a presença do presidente do Brasil na Casa da Democracia, transportou para a sessão parlamentar, em que o chefe de Estado do país irmão discursava, pelas mãos e pelos gestos dos seus deputados, o protesto de rua, alegadamente contra a corrupção. E o discurso do líder, na sessão subsequente, a comemorativa da Revolução dos Cravos, foi demolidor, sem um ponto construtivo (até disse que vivemos um “dos momentos mais negros”), apesar de citar a carta de São Paulo aos Romanos.

Até poderíamos ser levados a pensar que a corrupção, a insuficiência da Justiça, a má governação, a fome e a precariedade na vida, no trabalho, na segurança, na saúde, na habitação, na educação e na proteção social são marcas da democracia.

André Ventura não conhece o país da ditadura. Caso contrário, teria vergonha de perorar como o fez. A sua retórica, cheia de contradições (por exemplo, elogia os operadores da Justiça por terem a coragem de dizer que o lugar do ladrão é a prisão, mas deu como certo que os grandes indicados da praça nem serão julgados), é destrutiva, irreal e não concretizável, no futuro, mas concita a simpatia dos descontentes e dos detratores da democracia.                        

É certo que a Iniciativa Liberal (IL) não tem feito, na sessão comemorativa da Revolução dos Cravos, o que o Chega fez neste ano. Contudo, o seu posicionamento é, no mínimo, ambíguo.

Na sessão comemorativa do 25 de Abril, em 2022, Bernardo Blanco defendeu que falta “o inconformismo de Abril para romper a estagnação” e que a guerra na Ucrânia evidencia que “a democracia é difícil de conquistar mas fácil de perder”. E Abril, como disse, “confiou-nos esta difícil missão: a de continuar a querer saber – da política, de Portugal, da Europa e do Mundo –, a de continuar a querer saber do futuro.”

Neste ano, o novo líder da IL, Rui Rocha, recordou que, a 25 de abril de 1974, “Portugal fez-se de novo outra vez” e que a revolução não tem donos. E defendeu que, “em democracia, há sempre alternativa” e que “o vento da mudança já começou a soprar”. Porém, na rede social Twitter, escreveu: “25 de Abril sempre. Fascismo, comunismo e outros totalitarismos, jamais.”

E é este segmento que a jornalista em referência considera que, na data em que celebrámos “o fim do fascismo”, o presidente liberal veio “desagravá-lo”, anotando que “os liberais não conseguem criticar o fascismo sem falar de comunismo” e “fazendo uma equivalência entre ambos”.

Não me vou meter, agora, nas diferenças e semelhanças entre comunismo e fascismo, nem na precisão sobre o tipo de fascismo que a ditadura emoldurou. Contudo, é de vincar que as gerações que viveram no tempo da ditadura e as que fizeram a revolução bem sabem como era cruel a ausência e o sofrimento da juventude na guerra colonial, como era difícil viver na dureza do trabalho para subsistir, na depauperação em quase todos os aspetos da vida, com o ónus do silêncio, quando a palavra fosse de crítica, e com a coação à palavra e ao aplauso, quando o poder o exigia. Sou desse tempo, sem estradas, sem transportes, sem hospitais e sem escolas pós-primárias. As novas gerações deviam conhecer esse tempo pelo estudo da História.  

Quanto ao comunismo, é preciso dizer que nunca vivemos sob esse regime e que as experiências conhecidas, nesse âmbito, tinham pouco de comunismo na forma original.

Todavia, como diz Carmo Afonso, devemos aos comunistas portugueses “uma luta fervorosa contra o Estado Novo” e “a liberdade democrática”. Sabemos que “milhares de comunistas foram presos e torturados e outros chegaram a perder a vida, por serem a [principal] resistência ao regime”. Mas Rocha expôs anticomunismo numa data também “de vitória para os comunistas”.

O povo, por “uma sociedade nova”, “confrontou as classes dominantes”, pondo em causa o seu poderio. Ora, se recuasse no tempo, a luta da IL, provavelmente, privilegiaria “os interesses económicos que defende”, pondo-se no “lado do fascismo e do colonialismo, nunca no do povo”.

Se calhar, há muitos que terão os mesmos objetivos, mas acantonam-se em partidos que, em termos programáticos, acreditam na socialdemocracia e na democracia cristã, para não terem o rótulo de liberais. São mais perigosos, pois, não dando o rosto, disfarçam as intenções.

Na página da IL, estão inscritos os valores que enformam a missão do partido: a liberdade, a responsabilidade, a civilidade, a comunidade e a igualdade. Porém, sublinha-se, no âmbito da liberdade, a soberania individual. Por outro lado, a igualdade proclamada cinge-se a iguais direitos políticos, ou seja, o direito ao voto e a, eventualmente, ser eleito.

Ora, é certo que os direitos do cidadão são uma peça fundamental na democracia. Todavia, não podemos cingir-nos aos aspetos individuais, nem aos aspetos económicos. É de prosseguir na promoção do exercício dos direitos sociais (ao trabalho, à saúde, à educação, à proteção social), culturais e políticos, bem como zelar pela promoção e pela defesa do interesse geral. O povo, que não se reduz a mero somatório de indivíduos dum território, é que é o detentor do poder soberano, não cada pessoa considerada singularmente. Por outro lado, embora as pessoas tenham direito à diferença, há que promover a necessária igualdade económica, social e cultural.

Assim, se o 25 de Abril não pode ser presa dos comunistas, também não o pode ser de socialistas, de socialdemocratas, de democratas-cristãos ou de liberais. Na certa, a revolução não se fez para promoção do liberalismo ou do neoliberalismo. Talvez fosse interessante revisitar o programa do Movimento das Forças Armadas na redação anterior às emendas exigidas por António de Spínola.      

Como acentua Carmo Afonso, a postura liberal “tem pouco que ver com a luta contra o fascismo”; é, antes, “um combate declarado ao ideário socialista”. O que a relaciona ao 25 de Abril “é o pregão da liberdade”. Mas a sua liberdade “é individual e económica”, que “desprotege os mais fracos e que nada tem que ver com liberdade coletiva e material”. Ora, não há liberdade sem “paz, pão, habitação, saúde e educação”. E, ao exigir menos Estado e menos impostos, a IL é contra um Estado que assegure os direitos económicos e sociais. É o velho “laissez faire, laissez passer”.

Por trás do pregão da responsabilidade deveria estar a assunção das consequências dos atos praticados por cada um, bem como as suas omissões. Contudo, sob a capa da obrigação de cada um zelar pela conservação e pelo aumento do seu património, pode estar a culpa de cada um pela sua pobreza e pela falta de “inteligência” para a sua capacitação académica e profissional.

Rui Rocha posicionou-se contra a ida de Lula da Silva ao Parlamento, no 25 de Abril, por causa das declarações do estadista brasileiro sobre a guerra na Ucrânia. André Ventura fez o mesmo, argumentando com a corrupção. Assim, é bom de entender que – diz Carmo Afonso – “não é só o anticomunismo genético que une os dois partidos”, mas também uma postura de equívoca democraticidade. Assim, a previsão de Cotrim de Figueiredo, de que o novel líder a IL seria muito mais popular do que ele, não está a cumprir-se.

Após as lideranças fortes de Carlos Guimarães Pinto e de João Cotrim de Figueiredo, esperava-se que Rui Rocha fosse mais claro, chegasse a mais públicos e trouxesse uma abordagem mais popular ao partido. Porém, a sua liderança circunscreve-se a gerir o ruído à direita, em parceria com o Chega e com algumas tiradas menos democráticas de alguns socialdemocratas.

E a democracia precisa de propostas claras – à esquerda, ao centro e à direita (sem extremismos e sem arruaças) de governação do país, para os eleitores poderem escolher, em tempo oportuno, entre as diversas alternativas, que deveriam ter peso e credibilidade.   

2023.05.01 – Louro de Carvalho

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