terça-feira, 16 de maio de 2023

A “que, despois de ser morta, foi Rainha”

 

O caso de D. Pedro e D. Inês de Castro é o mais extraordinário dos que exibem as dramáticas frustrações resultantes da vivência de amores inéditos ou de paixões arrebatadoras, ao longo da História de Portugal, com efeitos no todo nacional e que tiveram infeliz desfecho.

João Paulo Oliveira e Costa aborda o tema no seu livro “Portugal na História – Uma Identidade” (Temas e Debates, 2022), páginas 231-234, considerando Pedro e Inês como “namorados do mundo”, obviamente sem deixarem de ser os grandes apaixonados de Portugal.

O caso, alegadamente constituindo perigo para o Reino, perturbou o país e provocou uma guerra civil em 1355. E, mais do que isso, acabou por se tornar conhecido pela maioria da população, a partir daí, e sempre tão envolto em lenda como em história, tornando-se um dos dramas amorosos mais falados da Europa, desde o século XVIII, e originando, ainda hoje, romances e espetáculos por toda a parte. Os régios túmulos de Inês e de Pedro com estátuas jacentes dos seus titulares – voltados um para o outro, de modo que, no fim do Mundo, quando ressuscitarem, se levantem e fiquem juntos e frente a frente – constituem um testemunho imorredouro do cuidado com que Pedro tratou a memória daquela com quem, segundo declarou, terá casado secretamente, que pretendeu que fosse rainha efetiva e que, não o tendo conseguido, a fez rainha imortal.

Para Maria Leonor Machado, Inês e Pedro protagonizam “um caso de invulgar de interpenetração da crónica e da literatura”, tendo o facto da morte violenta da amada despertado “a ira e a sanha vingativa de D. Pedro” e sido retomado “pelos poetas e romancistas do século XVI”, que salientam o inefável poder do amor e a iniquidade a que levou o caprichoso assunto de Estado.

A Literatura Portuguesa acolheu, logo nos séculos XV e XVI, a narrativa que lhe dedicou Fernão Lopes, na Crónica do senhor rei Dom Pedro I, oitavo rei de Portugal (composta entre 1440 e 1450, mas impressa em 1735); as Trovas de Garcia de Resende, integradas no Cancioneiro Geral (1516); a Carta de Anrique da Mota (1528); A Castro, de António Ferreira (1587), a primeira tragédia escrita em Português; o episódio integrado no canto III de Os Lusíadas (1572), estrofes 118-137; e um poema de André de Resende (viveu entre 1498 e 1573), que reforça a convicção de que a lenda era muito referida no século XVI.

As obras portuguesas sobre a Castro invadem vários setores da produção textual: a poesia, o teatro, a paródia, a narrativa histórica e ficcional e a crítica literária.  

O tema foi retomado, muitas vezes, pela nossa Literatura e pela nossa História, mas, ainda no século XVI, começou a interessar a públicos estrangeiros. Tanto assim é que, por exemplo, a tragédia A Castro já estava traduzida para Francês, em 1572. Em 1577, Jerónimo Bermudez publicou, em Madrid, Nise Laureada, que abordava o tema das primeiras tragédias de Espanha, pelo que a lenda de Pedro e Inês pertencia ao memorialismo ibérico, desde os meados do século XVI. Foi nessa edição castelhana que surgiu, pela primeira vez, a lenda da coroação do cadáver de Inês (por ordem do rei D. Pedro), como anota Maria Leonor Machado. Depois, o tempo encarregou-se da difusão imparável do tema pela Europa. Aludem a ele um livro editado em Basileia, em 1598, e outro editado em Frankfurt, em 1603. Em 1654, foi publicada a obra de Luis Velez Guevara, Reynar despues de morir, traduzida para Italiano, em Bolonha, em 1689. Em 1688, Mademoiselle Barbier de Brillac publicou Agnes de Castro, Nouvelle Portugaise, que foi traduzida para Inglês, em 1692, e para Alemão, em 1697, além de a versão original ter sido reeditada, pelo menos, 13 vezes, até 1915.   

Se, no século XVIII, Manuel Barbosa du Bocage dedica à morte de Inês de Castro uma cantata e, pelo menos, dois sonetos, também fora de Portugal se regista, por exemplo, a publicação de uma cantata em Alemão, em Viena de Áustria, em 1783, de um bailado em Sampetersburgo, em 1792, e de um musical realizado no King’s Theatre, em 1797.

Como refere Lara Miguel Bule, na sua dissertação de mestrado, Inês de Castro. A imagem e o mito nas artes visuais, de 2019, foi o século XIX que celebrou “a iconografia da coroação da rainha depois de morta, convertendo-a num tópico trabalhado por artistas franceses e espanhóis e, quase sempre, de acentuada espetacularidade”, ao invés do que sucedeu em Portugal, “onde foi preterido em favor do lirismo da súplica ao rei”. Assim, apareceu a ópera com libreto de Antonio Gasparini, estreada em Milão, em 1803, que foi representada, pelo menos, em mais 13 cidades, até 1812, e, depois, em Londres, em 1833; em 1808, surgiu mais uma tragédia apresentada em Zurique; e, em 1820, surgiu um bailado em Copenhaga. O episódio camoniano foi traduzido para Sueco, em 1844; e, em 1871, foi apresentado mais um drama, em Londres, sob o título Inez or the Bride of Portugal, da autoria de Ross Neil. Em 1878, em 1901 e em 1908, há referências a novos originais ou a traduções em Russo, em Sueco e em Dinamarquês.  

Em 1916, Pedro e Inês – caso real, não inventado – foram tema da escrita de Ruy Coelho, Almada Negreiros e José Pacheco, para um bailado dos futuristas de Lisboa.

Foi no século XX que a lenda transpôs o Oceano. Assim, em 1933, foi publicado, em Nova Iorque, o romance A Queen after Death, de William Harman Black; em 1935, foi estreada, em Buenos Aires, uma nova versão de teatro; e, em 1937, foi estreada outra em Sidney.    

Porém, mais relevante da popularidade do tema é o facto de, em 1977, em Bruxelas, a revista Tintin ter publicado, no seu n.º 41, a história La reine morte, bem como o facto de, em 1999, uma rádio da Croácia ter emitido um texto radiofónico sobre o tema.

Além disso, entre 13 de outubro e 5 de novembro de 2009, a companhia de teatro Takarazuka apresentou um musical em Osaka e em Tóquio, intitulado Koinbura Monigatori, isto é, O Conto de Coimbra; e, em 2011, o Ballet du Capitole, de Toulouse, levou à cena um bailado intitulado La Reine Morte.       

Tudo isto quer dizer que Inês e Pedro vivem e revivem na Europa e que a sua fama se espalha por toda a parte.

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Nos últimos tempos, mais precisamente nos séculos XX e XXI, Portugal não tem sido parco no tributo aos amores de Pedro e Inês e agrega autores de outras nacionalidades. Para lá das artes figurativas e das artes dramáticas tradicionais, temos o Cinema e a Música e continuamos com a Literatura. Assim, a título de exemplo, temos os filmes: Inês de Castro, Leitão de Barros, 1945; Inês de Portugal, José Carlos de Oliveira, 1997; Inês de Castro, Grandela, 2002; A casa de Lava, Pedro Costa, 1994; Amor de Perdição, Manoel de Oliveira, 1978; O Delfim, Fernando Lopes, 2000; Sem Sombra de Pecado, José Fonseca e Costa, 1982; e Verde Anos, Paulo Rocha, 1963.

Além de várias óperas (por exemplo, Inês de Castro, Ópera – Scena ed aria de Carl Maria Friedrich Ernst von Weber; e Inês de Portugal, Ópera de Julien Duchesne) e de outros espetáculos de Pedro e Inês, sobressaem as seguintes músicas: de Cari Giorni, Ines de Castro (Giuseppe Persiani); de Niccolo Zingarelli, Ines de Castro – Quartetto; e de Pedro Syrah, Inês de Castro.

Quanto a livros, temos, por exemplo, Agustina Bessa-Luís, Adivinhas de Pedro e Inês (1997); Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, Uma Aventura na quinta das Lágrimas (1999); Ana Paula Torres Megiani e Jorge Pereira de Sampaio Almeida, Inês de Castro, a época e a memória (2008); António Cândido Franco, A Rainha Morta e o Rei Saudade (2003); António Vasconcelos, Lenda e História de Inês de Castro (2010); Armando Martins Janeira, Linda Inês ou o Grande Desvairo (1957); Artur Pedro Gil, O julgamento de Inês de Castro (2008); Diogo Lucas e Filipe Lopes, Inês de Portugal – Lusitana Paixão (2010); Faustino da Fonseca, Inês de Castro (2013); Francisco Cândido Xavier, Mensagens de Inês de Castro (2011); Gondin da Fonseca, Inês de Castro (1957); Guilherme Manuel de Souza Girão, Souza Girão e Valle na Descendência de D. Pedro e D. Inês de Castro (2007); Isabel Stilwell, Inês de Castro (2021); João Aguiar, Inês de Portugal (1997); José Rocha Martins, Linda Ignês (2006); Maria Leonor Machado de Sousa, Inês de castro, um tema português na Europa (2020); María Pilar Queralt del Hierro, Inês de Castro (2003); Mário Domingues, Inês de Castro na vida de D. Pedro (1953); Rosa Lobato de Faria, A Trança de Inês (2001); e Seomara da Veiga Ferreira, Inês de Castro – a Estalagem dos Assombros (2007).  

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A listagem está longe de ser exaustiva. Já em 5 de junho de 2017, em artigo sob o título “Os amores de Pedro e Inês com novos rostos”, fornecia uma lista mais avantajada. No entanto, é legítimo concluir que Inês e Pedro marcaram o imaginário popular em toda a História de Portugal a partir do século XIV. Bem fazem as escolas que promovem, através da Literatura, a catarse da população escolar, bem como os agentes culturais, junto das camadas populares, contribuindo com a sua parte. Ao mesmo tempo, o arrazoado plasmado neste texto, dá-nos a ideia da imensidão do caso de Inês e Pedro, como fenómeno na Europa e até nalgumas paragens do resto do Mundo.

O tema galgou, efetivamente, os séculos e ultrapassou as fronteiras da lusa pátria. Muitos lhe reservaram lugar, anónimos, poetas, dramaturgos, críticos e historiadores, além de músicos, pintores e escultores. Muito se misturou, no caso, a História, a Lenda, a Literatura e a Crítica. Muitas lágrimas se derramaram, muito se cantou, muito se representou.

Quantos casos romanescos, similares do de Pedro e Inês, não há por aí e de consequências dramáticas, mas a que a Literatura, a História e a Lenda não têm oportunidade de fazer jus.

2023.05.16 – Louro de Carvalho

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