segunda-feira, 8 de maio de 2023

A paciência de Jesus para com os discípulos

 

O Evangelho do 5.º domingo da Páscoa no Ano A (Jo 14,1-12), a entender à luz do acontecimento da ressurreição do Senhor, insere-se no discurso testamenteiro de Jesus aos discípulos subsequente à Ceia em que lhes dera o mandamento novo. 

É a etapa final da caminhada histórica do Messias. Até agora, Jesus cumprira a sua missão em aberto confronto com os dirigentes judeus. O último e mais importante dos seus sinais, a ressurreição de Lázaro, levou o Sinédrio a decidir matá-Lo (cf Jo 11,45-54). Portanto, Jesus tem absoluta consciência da implacável proximidade da sua morte.

Por isso, o trecho em referência integra o discurso da despedida. Na ceia de quinta-feira, à noite, a pouco tempo da prisão, na véspera da sua morte, Jesus, depois do banquete pascal, em que instituiu a Eucaristia e confiou à comunidade o mandamento novo do amor, tornado serviço à vida de todos, despede-se dos discípulos, reza por eles ao Pai e faz-lhes recomendações e promessas. Sabe que vai partir para o Pai e que os discípulos vão continuar no mundo.

Os discípulos perceberam que o ambiente é de despedida e que, daí a poucas horas, o mestre lhes vai ser tirado. Estão inquietos e preocupados. Não sabem o que lhes vai acontecer nem o caminho que vão percorrer. Não sabem como é que manterão a relação com Jesus e com o Pai.

Enquadram-se neste contexto as palavras de Jesus que o Evangelho de hoje nos apresenta. Aqui, o evangelista desenvolve uma catequese sobre o caminho. Com efeito, os cristãos dos primevos tempos apresentavam-se como as pessoas do caminho, ao passo que hoje seremos os mirones de varanda ou de berma a ver quem passa e, com alguma sorte, seremos cristãos de procissões.

Jesus garante que partirá e o lugar para onde vai tem muitas moradas. Vai preparar uma morada para cada um, porque também nós iremos para onde Ele vai.

Era suposto os discípulos, que andaram com Ele durante três anos e até foram encarregados de algumas missões em nome do seu mestre, já estivessem cientes do que se passava. Porém, surge um desafio à paciência de Jesus. Tomé objeta: “Como podemos ir para onde tu vais, se não sabemos o caminho?” E Filipe pede: “Senhor, mostra-nos o Pai!”

É doloroso, para Jesus, notar que, à hora do adeus, os discípulos não sabiam o essencial. Contudo, As questões levantadas pelos dois discípulos marcam dois itens essenciais da rota discipular: o caminho e o Pai.

Por isso, apesar da índole dolorosa da hora, o afeto anula qualquer laivo de impaciência e irrompe o esclarecimento: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. Por isso, ninguém vai ao Pai, senão por Jesus. E, apesar da repreensão por os discípulos, que andaram tanto tempo com Jesus, não saberem quem é o Pai, esclareceu, com a paciência do mestre: “Quem me vê vê o Pai.”  

O caminho que Jesus percorreu é o mesmo caminho que os discípulos são convidados a percorrer. Basta seguir a pegada de Jesus.

O plano de salvação visa estabelecer com os homens uma relação de comunhão de amor. Por isso, Jesus veio ao mundo para tornar os homens filhos de Deus (“aos que O receberam, aos que creem n’Ele, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” – Jo 1,12).

Jesus concretizou este plano montando a sua tenda no meio dos homens” (Jo 1,14) e oferecendo-lhes o caminho de vida em plenitude: mostrou-lhes, na sua pessoa, como podem ser Homens Novos, homens que vivem na obediência total ao desígnio do Pai, que implica o amor aos irmãos. Viver assim faz-nos entrar na intimidade do Pai, torna-nos filhos de Deus.

Jesus sente que está a iniciar o último ato da missão que o Pai lhe confiou. Faltava oferecer aos discípulos a lição do amor que se dá até à morte; faltava o dom do Espírito, que capacitará os homens para viverem como Jesus, na obediência a Deus e na entrega aos homens. Para que o desígnio do Pai se cumprisse, Jesus tinha de passar pela morte: tinha de “ir para o Pai”, para que os homens pudessem, pela lição do amor e pelo dom do Espírito, integrar a família de Deus.

Nessa família, há lugar para todos os homens (“na casa de meu Pai há muitas moradas”): basta que sigam o caminho de Jesus. A casa do Pai é a comunidade dos seguidores de Jesus, a Igreja.

Os discípulos foram testemunhas da vida que Jesus levou e conhecem o mapa do caminho, mas parecem não querer entender que o dom da vida seja caminho obrigatório para integrar a família de Deus. Ora, o caminho é Jesus: é a sua vida, os seus gestos de amor e de bondade, a sua morte, que é dom da vida por amor. É este o itinerário a percorrer. Ao aceitarem este caminho de identificação com Jesus, os homens caminham para a verdade, para a vida em plenitude. E, ao identificarem-se com Jesus, os discípulos estabelecem íntima e familiar relação com o Pai, porque o Pai e Jesus são um só.  

Os discípulos têm de percorrer o caminho, até chegarem a ser família de Deus, caminho traçado por Jesus, na obediência a Deus e no amor aos homens. E, no final desse caminho, os discípulos – tornados Homens Novos – encontrarão o Pai e serão integrados na família de Deus.

Porém, Jesus não é só o modelo do caminho, mas oferece, como dom, a força, para que o homem percorra o caminho. É o Espírito do Senhor ressuscitado quem renova e transforma o homem, levando-o, cada dia, a tornar-se Homem Novo, na obediência a Deus e no amor aos irmãos. Desta realidade, nasce a comunidade de Homens Novos, a família de Deus, a Igreja.

***

A primeira leitura (At 6,1-7) pertence à secção que apresenta o testemunho da Igreja de Jerusalém, onde aparecem, pela primeira vez os helenistas, que terão papel fundamental na ulterior expansão do cristianismo.

Há clima de tensão entre os hebreus e os helenistas, na comunidade cristã de Jerusalém. Estes hebreus são cristãos de origem judaica, originários da Palestina, que falam o aramaico, que leem a Escritura em hebraico e que teriam sido convertidos pela pregação de Jesus e dos apóstolos, o que os apega às tradições judaicas e os leva a ter apreço pela Lei e pelas interpretações dos rabis. Os helenistas, por sua vez, são cristãos de origem judaica, mas provindos da diáspora israelita, ou seja, das comunidades judaicas espalhadas por todo o império romano e, até, por fora dele. Falam o Grego e leem as Escrituras em Grego. Residem em Jerusalém temporariamente. O contacto com outras realidades culturais torna-os tolerantes e abertos à novidade.

Com dois grupos tão diversos cultural, religioso e socialmente a integrar a mesma comunidade, era natural que viessem a surgir conflitos. Também os apóstolos tinham de ser confrontados com o desafio à sua paciência, tal como Jesus fora confrontado por eles.

O que provoca a questão evocada no texto em causa é um problema de ordem material: na distribuição alimentar aos membros necessitados da comunidade, as viúvas helenistas sentiam-se prejudicadas. O facto suscitou queixas e os líderes da comunidade intervieram.

Assim, Lucas fornece-nos um quadro teológico que nos dá a conhecer o rosto da Igreja e entender como ela se apresenta ao Mundo. Nesta ótica, destacam-se quatro ideias fundamentais.

Antes de mais, a Igreja aparece, não como um quadro de perfeição, mas como uma comunidade real e normal, formada por homens e mulheres, onde tensões, preconceitos, rivalidades, invejas e ciúmes marcam a experiência diária de caminhada. É o resultado das limitações e da finitude que fazem parte da nossa existência histórica. E a Igreja é uma comunidade que está – ou tem de estar – sempre em contínuo processo de conversão.

Depois, ressaltam a estrutura hierárquica e o exercício, na Igreja, do serviço da autoridade. Lucas já conhecia uma estrutura hierárquica em que os Doze desempenhavam o serviço da orientação e da direção da comunidade. Porém, fica a impressão, pelo desenrolar da ação, que não estão interessados em modos de poder absoluto; antes, procuram envolver a comunidade no processo, fazendo com que todos participem na procura de soluções para os problemas comuns.

Em terceiro lugar, a Igreja revela-se como uma comunidade de serviço. E, havendo necessidade de prover ao importante serviço das mesas, são escolhidos sete homens “cheios do Espírito Santo” para esse serviço específico, enquanto os Doze reforçam o serviço da Palavra e da Oração. Porém, estes sete aparecem, noutros episódios, mais ligados ao serviço da Palavra do que ao serviço das mesas, parecendo que estes sete – todos com nomes gregos – tenham vindo a ser dirigentes da comunidade cristã judio-helenística e que Lucas tenha fundido duas tradições diversas: a dos dirigentes do grupo helenista e a dos escolhidos para uma função de serviço e de ministério assistencial. Em todo o caso, fulge a essência da comunidade cristã como uma realidade que tem no centro o serviço: o da Palavra e o de assistência aos mais pobres.

Por fim, releva-se o papel do Espírito nas crises que fazem parte da caminhada comunitária. O Espírito aparece ligado à vocação dos chamados a exercer a diaconia e à missão (impor as mãos significa a escolha para um serviço comunitário e a invocação do Espírito para concretizar a missão). Assim, a Igreja é a comunidade criada, animada e dinamizada pelo Espírito.

E o trecho em causa termina em sumário, a assinalar o avanço irresistível da Boa Nova, por ação dos discípulos de Jesus, animados pelo Espírito.

***

Quanto à passagem da Carta de Pedro (1Pe 2,4-9), que foi tomada para segunda leitura, é de referir que o emitente recorda aos destinatários o exemplo de Cristo, que passou pela cruz, antes de chegar à ressurreição. E, se toda a carta é um convite à esperança, esta passagem constitui uma pérola de índole pascal.

A imagem textual determinante é a da pedra, referida a Cristo, imagem que nos leva a Is 28,16, que aponta para o novo Templo que Javé construirá, no futuro, e que será um sinal da intervenção de Deus em favor do seu Povo. Deus vai colocar em Sião uma pedra, provada, angular, de alicerce, que terá uma inscrição: “quem nela se apoia, não vacila”. A imagem (retomada em Sl 118,22) adquire, no judaísmo tardio, a conotação messiânica de que o Messias será essa pedra, sobre a qual Deus construirá a sua intervenção salvadora na História.

A Primeira Carta de Pedro aplica esta imagem a Cristo. Jesus Cristo é a pedra escolhida, preciosa, viva (alusão à ressurreição), sobre a qual Deus alicerça a sua intervenção salvadora em favor dos homens. Desta pedra brota a vida para o Povo de Deus

Os cristãos são convidados a aproximar-se de Cristo e a entrar na construção do edifício de Cristo – edifício espiritual, cujo fim é “oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus”. No Templo de Jerusalém – feito de pedras materiais – ofereciam-se sacrifícios de animais para expressar a comunhão do Povo com Javé; no novo Templo, que tem Cristo como pedra angular e os cristãos como pedras vivas, ligadas a Cristo, oferecer-se-ão sacrifícios espirituais: uma vida santa, vivida na entrega a Deus e no dom aos irmãos. Os membros deste edifício constituem um povo de sacerdotes, que diariamente oferecerão a Deus o que têm de mais precioso: a vida e o amor.

Este edifício será rejeitado pelos homens (alusão à paixão e morte de Jesus e aos sofrimentos dos crentes). Todavia, para Deus, este Templo/comunidade é a “geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus para anunciar os louvores”. A citação leva-nos a Ex 19,5-6, que emoldura a comunidade da Aliança, pelo que, agora, apesar da rejeição do Mundo, os cristãos são a comunidade da nova aliança, que Deus trouxe da escravidão para a liberdade e a quem encarregou de testemunhar diante de todos a salvação. É este o desafio à paciência dos crentes!

2023.05.07 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário