sábado, 20 de maio de 2023

O Papa na proa de um barco a conduzir os jovens. Porque não?

 

A 15 de maio, no âmbito de uma série de selos comemorativos do Vaticano, foi apresentado, pelo Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, o selo e o carimbo, para venda a 16 e a 17, comemorativos da XXXVII Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que acontecerá de 1 a 6 de agosto, em Lisboa.

Numa alusão à caravela estilizada do Padrão dos Descobrimentos, o monumento português, situado em Lisboa, na margem direita do rio Tejo, a evocar a expansão além-mar de Portugal, o selo trocava a figura do Infante D. Henrique, o propulsor da expansão, pela figura cimeira do Papa Francisco, o timoneiro da Igreja missionária dos nossos dias, não a conduzir, propriamente, portugueses, com qualquer objetivo de conquista ou combate proselitista, mas a conduzir jovens na conquista solidária de si mesmos e do futuro de que são herdeiros. E, como marca de Portugal, ostentava a nossa bandeira.

É tradicional a imagem da Igreja figurada na barca de Pedro e era suposto que a mensagem papal junto de jovens tivesse escolhido um monumento dos que figuram na cidade que vai acolher a JMJ de 2023, enfatizando a importância de seguir um caminho de discernimento, com prontidão, mas nunca ansiosos.

A emissão deste selo comemorativo pelo Vaticano emparceira com a emissão do selo dos 825 anos da Dedicação da Catedral da cidade italiana de Spoleto; do selo do bicentenário da União Lateranense; e do centenário da Comissão Permanente para a Proteção dos Monumentos Históricos e Artísticos da Santa Sé. Por outro lado, a emissão de uma série especial sobre a Europa é dedicada à paz, “o maior valor da humanidade”, ao acolher a proposta do Operador Postal da Ucrânia, para mostrar solidariedade ao país martirizado pela guerra. Serão dois selos dessa iniciativa: um a reproduzir o momento em que Francisco, na Audiência Geral de 6 de abril de 2022, mostrou a bandeira ucraniana recém-chegada da cidade de Bucha, recém-massacrada.

É de recordar que a cidade de Lisboa foi anunciada, como local da JMJ em 2022, na edição anterior, em janeiro de 2019, no Panamá, pelo cardeal Kevin Joseph Farrell. Mas a pandemia fez com que o evento de Lisboa passasse de 2022 para 2023. O tema escolhido pelo Papa para a JMJ de Lisboa é “Maria levantou-se e saiu apressadamente” (Evangelho de Lucas 1,39).

O Vaticano descreve o monumento que evoca a expansão além-mar de Portugal, numa das margens do Tejo, no bairro de Belém, em Lisboa: “O monumento – de 56 metros de altura e 46 metros de comprimento – foi construído em 1960, passados 500 anos da morte do Infante, para celebrar a era dos Descobrimentos portugueses, como por exemplo, a chegada ao território brasileiro em 22 de abril de 1500, considerado um dos momentos mais marcantes das grandes navegações realizadas por eles, durante todo o século XV.” Da mesma forma como o timoneiro D. Henrique lidera a tripulação na descoberta do novo mundo, assim, no selo do Vaticano, o Papa conduz os jovens e a Igreja, representada pela barca de Pedro, na descoberta desta “mudança de época” – como afirmou o Pontífice por ocasião da Conferência Eclesial de Florença, sem se resignar a navegar apenas em águas rasas, a ponto de ignorar a realidade do porto que os aguarda.

Desenhado pelo artista Stefano Morri, o selo retrata, assim, o Papa na proa de um barco, inspirado na caravela do Padrão dos Descobrimentos, que conduz os jovens para o futuro. No canto superior esquerdo, encontra-se o logótipo do encontro feito pela jovem designer portuguesa Beatriz Roque Antunez. Este delineia, sobre o fundo de uma grande cruz, o dinamismo de Maria ao visitar Isabel, segundo o tema escolhido para o evento: “Maria levantou-se e partiu apressadamente”.

Numa videomensagem dirigida aos jovens, na preparação para a JMJ de Lisboa, o Papa exortou: “Neste encontro, nesta Jornada, aprendei sempre a olhar para o horizonte, a olhar sempre para além. Não levanteis uma parede diante da vossa vida. As paredes fecham-te, o horizonte faz-te crescer. Olhai sempre para o horizonte com os olhos, mas olhai sobretudo com o coração. Abri o coração a outras culturas, a outros rapazes, a outras raparigas que vêm também a esta Jornada.”

O selo (formato 48 x 32mm) tinha o valor facial de 3,10 euros com uma tiragem de 45 mil unidades, mas sem disponibilidade para venda online, conforme informava o site oficial do departamento comercial de selos e moedas do Vaticano. Já o carimbo comemorativo, em formato circular, que representa o logotipo oficial da XXXVII JMJ de Lisboa, foi usado pela agência dos correios “Arco delle Campane” (no ponto de vendas do braço de Carlos Magno, na Praça São Pedro) nos dias 16 e 17 de maio.

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Entretanto, o selo levantou polémica em Portugal, pelo que o Vaticano o retirou da circulação, sem qualquer explicação ou comentário. Por isso, escrevi os verbos no pretérito imperfeito.  

A notícia da retirada de circulação do selo, foi avançada, na tarde de 17 de maio, pelo jornal online 7Margens, que tinha pedido a “um funcionário do Vaticano” que lhe comprasse um exemplar.

“No posto de correios oficial da Praça de São Pedro, o empregado que atendeu disse que era impossível fazer a venda, por ordens superiores, pois o mesmo iria ser retirado”, referiu o jornal.

A notícia da retirada de circulação do selo foi confirmada pela Rádio Renascença junto da Santa Sé, que não apresentou quaisquer explicações.

Após a divulgação da imagem do selo, foram vários comentários negativos publicados nas redes sociais, que remetiam para o imaginário gráfico do Secretariado de Propaganda Nacional do Estado Novo e para o colonialismo. Muitas publicações nas redes sociais até recuperaram a capa do antigo Livro de Leitura da 3.ª Classe, para fazer a comparação.

O desenho do selo, lançado conjuntamente com um carimbo comemorativo, com o logótipo da JMJ, é da autoria de Stefano Morri.

Questionado no dia 16, a propósito da polémica gerada, o bispo português D. Carlos Moreira Azevedo, delegado do Comité Pontifício para as Ciências Históricas, considerou de “péssimo mau gosto” a imagem do selo comemorativo da JMJ lançado pelo Vaticano.

Para Carlos Azevedo, o selo “recorre a uma obra muito conotada” e “evoca epicamente uma realidade pastoral que não corresponde a esse espírito”.

Também no mesmo dia, a organização da JMJ esclareceu que o selo comemorativo apresentado pelo Vaticano visava apenas “promover” o encontro de jovens com o Papa, afastando leituras que o identificassem com o Estado Novo ou com o colonialismo português.

Rosa Pedroso Lima, porta-voz da Fundação JMJ Lisboa 2023, disse à agência Lusa que “o selo foi feito por um ilustrador italiano, Stefano Morri, que tem trabalhado, muitas vezes, com os serviços de numismática do Vaticano” e cuja leitura para a ilustração do selo é “uma imagem do Papa num monumento de Lisboa, simbolizando, numa espécie de alegoria, a barca de S. Pedro e o Papa conduzindo os jovens e a Igreja para uma nova época”.

E Rosa Pedroso Lima admite: “Haverá sempre várias leituras sobre o que quer que seja numa obra de arte, seja ela um selo ou uma ilustração. Esta é a leitura que o Vaticano faz e o objetivo é o de promover a Jornada Mundial da Juventude.”

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Do meu ponto de vista, foi pena ter-se eclipsado um ícone da mensagem e do objetivo papal para esta JMJ, bem como uma visão forte e atual da missão da Igreja. É impensável que o Vaticano tivesse como objetivo canonizar a expansão portuguesa na totalidade, mormente no que ela teve de pior. O que se passou foi uma leitura abusiva, por suposta visão nacionalista e obscurantista perpetuada no monumento. Muito do volume crítico da opinião pública portuguesa ainda não se redimiu do passado. Estão como os que não cantam “Grândola Vila Morena” por a verem colada ao Partido Comunista. Se os comunistas rezarem “Pai Nosso”, os cristãos deixarão de o rezar? Sei lá! Já deixaram perder para a esquerda a fraternidade, a igualdade e a socialização…

Ora, a descoberta europeia marítima de novas terras, nos séculos XV e XVI, protagonizada por Espanhóis e por Portugueses, é um facto indesmentível: com muitos erros (sobretudo à luz dos critérios da atualidade, mas também segundo certos critérios coevos, incluindo alguns do Infante D. Henrique); e com virtualidades, que as houve, do ponto de vistas dos contactos e miscigenações, da permuta económica, do encontro de rotas alternativas. E, sobretudo, originou um belo painel de países que falam ao Mundo em Língua Portuguesa, como há outro painel de países falantes de Língua Espanhola.  

Por mais que nos pintemos, não somos raça pura lusitana. Há, na nossa constituição somática, sangue azul, negro, judeu, árabe, latino, anglo-saxónico, indiano, etc. Mal ou bem, é com este fenómeno ecuménico que temos de conviver e de avançar na vida.

O pobre padrão dos descobrimentos é vestígio do Estado Novo e do colonialismo. E a Ponte 25 de Abril é vestígio de quê? É óbvio que era de escolher um monumento de Lisboa. Seria preferível o Papa ir como timoneiro de jovens num barco rabelo ou num moliceiro? Mas um cacilheiro, de Lisboa, é símbolo “reconhecido” de quê? Pergunto-me se os inocentes dos meus amigos doentes se recusam a ser atendidos, por exemplo, no Hospital de São João ou no Hospital de Santa Maria. É que foram edificados no Estado Novo. Os monumentos são fruto de uma época e é natural que transportem a marca desse tempo, mas o tempo torna-os maiores que o tempo. Tive pena que se aniquilasse à nascença um ícone da missão eclesial, graças a uma leitura umbilical do símbolo.

O silêncio do Vaticano, a este respeito, é mais eloquente do que uma explicação, não tendo de alinhar com leituras parcelares da simbólica, nem de as contrariar. A catolicidade tanto se faz pela palavra tonitruante como pelo silentium loquens. De minimis non curat praetor – é máxima latina.

2023.05.20 – Louro de Carvalho

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