sexta-feira, 5 de maio de 2023

O absurdo de arrasar o governo e querer estabilidade

 

O Presidente da República (PR) tem o direito de discordar do primeiro-ministro (tal como este) e de o expressar publicamente. No entanto, tal discordância deve ser contida, sem cair em incoerências, sem resvalar para o fácil populismo e sem prejudicar os poderes e a honorabilidade de cada um dos órgãos em causa, bem como das pessoas.

Como o PR, penso que o ministro das Infraestruturas, não tendo resistido à questão da TAP (Transportes Aéreos Portugueses), aniquiladora de governantes, não tem condições políticas de continuar no governo, o que deveria acontecer, quando a comissão parlamentar de inquérito (CPI) em curso àquela empresa pública, da sua tutela, finalizasse o seu trabalho.

Porém, não cabia ao chefe de Estado, à semelhança do que fez a propósito de outros governantes (e tentou fazer com outros), clamar explícita ou implicitamente pela exoneração ou pela demissão do ministro. A saída deveria ter sido combinada a sós com o primeiro-ministro, deixando-lhe margem de liberdade para aceitar um eventual pedido de demissão do governante e propor ao PR a sua exoneração ou tomar a iniciativa de propor ao PR a exoneração do ministro.

Como não sucedeu assim, o PR exorbitou das suas funções. É legítimo o PR recusar a proposta de nomeação ou, no limite, de exoneração de um ministro feita pelo PM, mas não tomar a iniciativa. O direito de proposta deve ser respeitado e Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) desrespeitou-o em público, o que seus antecessores não fizeram.

Tenho dificuldade em dizer que o governo não responde perante o PR, só respondendo perante a Assembleia da República (AR). Com efeito, nos termos do artigo 190.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), “o Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República”. Por isso, “o primeiro-ministro é responsável perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República” (CRP, artigo 191.º, n.º 1). E uma das competências do PM é “informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do país” (ver alínea c) do artigo 201.º da CRP).

Já “os vice-primeiros-ministros e os ministros são responsáveis perante o primeiro-ministro e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República” (CRP, artigo 191.º, n.º 2). Assim, dificilmente o PR tem autoridade para chamar a Belém ministros ou ajuizar publicamente sobre o mérito ou demérito do seu desempenho. E isto não é inédito no PR.

Nem a AR, que faz cair o governo, através da rejeição do programa, da aprovação de uma moção de censura ou da não aprovação de confiança, nem os deputados, que podem fazer requerimentos ao governo, para obterem explicação sobre a ação governativa e sobre o desempenho dos seus membros, invetivam pessoalmente os ministros e secretários de Estado

Obviamente, no calor do debate político, deputados e membros do governo exaltam-se e invetivam-se mutuamente, mas são cordatos no relacionamento institucional. 

Assim, penso que foi ignóbil o destratamento público do ministro por MRS, que usou de uma forma de justiça popular, antecipando-se ou substituindo-se à justiça formal.       

O chefe de Estado fez um discurso arrasador sobre o ministro, frisando que não estava em causa a honorabilidade pessoal e até o desempenho, mas relevando a responsabilidade política, explicitando que o governante é responsável por tudo o que faz e pelo que não faz e pelo que os outros fazem ou não fazem na área que dirige. É verdade, mas a responsabilidade política não é o azorrague total, definitivo e único. Em meu entender, a partir do momento em que o responsável político identifica os responsáveis materiais pelos erros cometidos e os penaliza adequadamente, no âmbito das suas competências disciplinares e administrativas ou contratuais, duvido de que seja legítimo continuar a invocar a responsabilidade política.

O exemplo reiteradamente apresentado de Jorge Coelho, que se demitiu aquando da queda da ponte de Entre-os-Rios, não resolveu o problema da responsabilidade material pelo colapso daquela obra de arte. E é caso para questionar se o PR é responsável por eventuais desmandos que ocorram na sua Casa Civil ou na sua Casa Militar, após os debelar e resolver.

O discurso arrasador contra o ministro e contra o governo pelo que aconteceu no gabinete ministerial – não tendo sido suficiente pedir desculpas, porque o caso não se apagou, nem se apaga – reconhece alguma melhoria económica, embora insuficiente, mas acusa a falta de “capacidade, confiabilidade, credibilidade, respeitabilidade e autoridade” do ministro e do governo.

Identificou “fraquezas” da governação que causam “maior deterioração” no país, que o que quer é “ver os governantes a resolverem os seus problemas do dia a dia, os preços dos bens alimentares, o funcionamento das escolas, a rapidez na justiça, o preço da aquisição da habitação”.

Reconheceu “alguns grandes números muito positivos da nossa economia e de apoios a famílias e a empresas”, mas sustenta que “esses grandes números ainda não chegaram à vida da maioria dos portugueses”, que “esperam e precisam de mais e melhor”. “Esperam e precisam de um poder político que resolva mais e melhor os seus problemas. Isso exige: capacidade, confiabilidade, credibilidade, respeitabilidade, autoridade”, avisou.

E sublinhou que a autoridade, “para existir, ser confiável, ser credível, ser respeitada, tem de ser responsável”. “Onde não há responsabilidade – na política como na administração – não há autoridade, respeito, confiança, credibilidade”, sentenciou.

Ora, sendo verdade o que disse no discurso de 4 de maio – mais gelado que o gelado que estava a comer, quando os jornalistas o interpelaram sobre as declarações de António Costa, no dia 2 –, ou seja, se a atuação do ministro das Infraestruturas e a ação do governo em geral são como diz o PR, só havia uma saída, a demissão do governo nos termos do n.º 2 do artigo 195 da CRP, invocando a necessidade de “assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado”. Em alternativa, o PR deveria anunciar, para breve, a dissolução da AR e a marcação de eleições legislativas. Porque não o fez? Porque não crê na verdade inequívoca da sua análise? Porque sabe que a oposição não constitui alternativa credível?

Em qualquer dos casos, podia dispensar-nos deste discurso demolidor e de quase inutilidade para o país, a não ser a reiteração de que Ele é que é o Presidente e que exerce os seus poderes escritos e os não escritos como se estivéramos em sistema presidencial de governação.

Estaremos perante um caso de recalcamento de alguém que não conseguiu ser primeiro-ministro ou perante um exercício de presidência-espetáculo?

O PR prometeu uma atenção e uma vigilância reforçadas sobre a ação politica e administrativa do governo e, se for o caso, o uso dos seus poderes, uso de que não prescinde.

Porém, incorreu num equívoco: a CRP não lhe reconhece competências na área administrativa. Essa é uma área do governo, sem que haja órgão superior a este: “O Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública” (CRP, artigo 182.º). E do artigo 199.º da CRP, que define a competência administrativa do governo, ressalta que a este compete “dirigir os serviços e a atividade da administração direta do Estado, civil e militar, superintender na administração indireta e exercer a tutela sobre esta e sobre a administração autónoma”, bem como “praticar todos os atos exigidos pela lei respeitantes aos funcionários e agentes do Estado e de outras pessoas coletivas públicas”.

Pouco importa que MRS tenha querido dar uma aula da ciência política na televisão (Queremos um PR, não um docente!). Afirmar-se professor de todos é uma forma de populismo como a de dizer que terá o governo sob pressão ou como a de que acredita na sabedoria do povo. Confiar na sabedoria do povo é uma afirmação que se entende em maré de eleições ou de epidemia, a não ser que se queira evitar ou promover qualquer exaltação coletiva contra o status quo vigente. E dizer que estará atento à distância entre o povo e os poderes públicos é um populismo indevidamente responsabilizador do governo, quando as grandes causas são a falta de formação das camadas populares pelas estruturas partidárias, a despolitização criada pelos detentores de interesses instalados e a rejeição da formação cívica que as escolas querem implementar.  

Há uma diferença entre PR e PM, mas não uma “diferença de fundo”, sobre a “questão da responsabilidade política e administrativa dos que mandam”. E, se o PR quer “estar mais atento e interventivo no dia-a-dia”, para evitar “o aparecimento e o avolumar de fatores imparáveis e indesejáveis”, que esteja, mas sem exorbitar das suas funções e sem pôr em causa as pessoas.

Lamenta que, “desta vez”, não tenha sido possível “acertar agulhas”, mas o erro está em quem tentou resolver as coisas na ribalta pública, raiando as malhas da interferência.

É irónico MRS não confiar no governo, que se tornou, alegadamente descredibilizado e incapaz, e “continuar a preferir a garantia de estabilidade institucional”; ou criar ou avolumar público de um caso de governação, como se fosse o líder da oposição, e deixar um aviso aos que o tentam fragilizar e que por “aí andam com cenários que implicam imediata e direta ou indiretamente o apelo ao voto popular antecipado”: “Comigo não contem para criar conflitos ou para deixar crescer tentativas, isoladas ou concertadas, para enfraquecer a função presidencial envolvendo-a em alegados conflitos institucionais.”. Lindo!

Fez eco do que a oposição e os comentores disseram do suposto envolvimento do ministro nas trapalhadas da TAP e fez julgamento sumário público do que se passou no gabinete ministerial. Porém, disse que “não se mistura política com justiça”.

É verdade que “responsabilidade política e administrativa é essencial para que os portugueses acreditem naqueles e naquelas que governam”, mas não cabe ao PR ser juiz da mesma.

É certo que “um governante sabe que, ao aceitar sê-lo, aceita ser responsável por aquilo que faz e não faz”, bem como “por aquilo que fazem ou não fazem aqueles que escolhe e nos quais é suposto mandar”. Contudo, a responsabilidade política não é infinda.

Não se resolve [um erro] apenas pedindo desculpa pelo sucedido”, pois “responsabilidade é mais do que pedir desculpa, virar a página e esquecer, mas é “pagar por aquilo que se faz ou deixou de fazer”. Todavia, esse pagamento não é determinado pelo chefe de Estado, cujos poderes não são absolutos, mas exercidos sob condicionantes: proposta, audição prévia, tendo em conta determinadas circunstâncias. A realidade objetiva contribui para a formulação da consciência subjetiva. E esta também funciona em política, na justiça, na economia, na cultura, etc.   

É verdade que tudo isto – capacidade, confiabilidade, credibilidade, respeitabilidade, autoridade – “tem de existir para que os portugueses não se convençam de que ninguém responde por nada, nem manda em nada”. Porém, impõe-se o respeito pelas competências de cada órgão, secundado pela cooperação institucional e pela não desautorização mútua, bem como pela não interferência.

***

Enfim, o PR faria bem em explicitar a sua discordância sobre um caso, justificando-a, mas sem queimar pessoas e expor o governo no pelourinho da inutilidade. O povo merece melhor governo, mas também melhor chefe de Estado.

2023.05.05 – Louro de Carvalho  

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