quarta-feira, 3 de maio de 2023

A surpreendente decisão de António Costa

 

Independentemente das simpatias ou das antipatias que se nutram pelo atual primeiro-ministro, é de saudar a clarificação a que procedeu com a comunicação ao país, no passado dia 2 de novembro, sobre o escândalo ocorrido no gabinete do ministro das Infraestruturas, João Galamba, na sequência da exoneração de um dos seus adjuntos. A minha distância partidária, apesar de pontuais simpatias ou críticas por atitudes e por medidas deste ou daquele partido, permite-me refletir, com à vontade, sobre o caso. 

A crítica persistente do Presidente da República (PR) à ação do governo e aos seus elementos estava a tornar-se insustentável. Desde logo, a indicação de linhas programáticas no discurso presidencial de tomada de posse do XXIII Governo Constitucional, suportado pela maioria parlamentar do Partido Socialista (PS); depois, a invectiva concreta contra uma das ministras, por causa da execução das medidas do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR); a referência pública ao mérito de antigos líderes partidários; a adjetivação com que mimoseou esta maioria: requentada e desgastada; a tergiversação opinativa sobre muitas das medidas tomadas pelo governo, para aliviar os cidadãos e as empresas dos efeitos perversos da crise económico-social (boas, já não boas, insuficientes, tardias, melão, lei-cartaz, PowerPoint, etc.); a banalização do discurso sobre dissolução; a renacionalização das eleições europeias, podendo ser ocasião para novo ciclo governativo; a insatisfação por não haver ainda uma alternativa credível à atual maioria parlamentar; e a declaração antecipada da necessidade de tirar consequências políticas deste ou daquele caso atinente a governantes em concreto.

Dificilmente se compreenderá que a tessitura dos comentários do PR ao relatório da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) sobre a saída de uma administradora da TAP (Transportes Aéreos Portugueses), antecipando-se ao eventual juízo do Tribunal de Contas (TdC).

E, no aludido caso do escândalo ocorrido no gabinete de João Galamba, a excecional parcimónia de palavras do chefe de Estado (que a primeira pessoa com quem iria falar seria o primeiro-ministro) deram lugar à asserção de que a situação era melindrosa e deveria ser tratada discretamente; e, mais tarde, se deveriam tirar consequências (demissão) e que os leves sinais de crescimento económico podiam não ser suficientes.

Do meu ponto de vista, uma remodelação governamental deveria – e deve – ser feita. Porém, não deve ser feita aos pingos, mas na hora certa. Aliás, o presidente do Parlamento, Augusto Santos Silva, na sessão parlamentar comemorativa da Revolução dos Cravos, fez o discurso do tempo, conjunturalmente necessário, para cada uma das instituições: tempo para analisar, para programar, para executar, para avaliar, para tomar decisões.   

Na hora certa – que entendo, na atual conjuntura, ser o conhecimento do relatório final da comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP – devem sair os/as governantes cuja prestação é fraca ou pouco mobilizadora politicamente, por inabilidade ou por inépcia das assessorias, como devem manter-se aqueles/as cuja prestação política é nevrálgica. E, para que não se corra o risco de não mobilizar gente para a ação governativa, devem as incompatibilidade e os impedimentos cingir-se à intervenção direta os titulares de cargos públicos sobre assuntos dos familiares, dos amigos e das respetivas empresas.

É de efeito perverso, por exemplo, um candidato à governação ter de vender a sua quota empresarial ou ser arrastado em processos do cônjuge. Criam-se artificial e hipocritamente incompatibilidades; e pessoas que poderiam dar um contributo temporário à política deixam espaço livre à elite do aparelho partidário, gente que engoliu as cartilhas políticas, mas, o mais das vezes, sem grande experiência profissional. E, com gente maioritariamente do aparelho, a governança torna-se uma translúcida cápsula esférica, com dificuldade em concitar o apoio do partido que sustenta o governo, partido que é postergado para um mundo à parte, sem capacidade de escrutínio construtivo.                

Compreende-se – e é benéfica – a trovoada constante na Assembleia da República (AR), entre os partidos políticos com assento parlamentar, pois foram eleitos, uns, para apoiarem a governação, sugerindo emendas de percurso e de processo ou acrescentando mais-valias, e outros, para enriquecerem o debate, ora concordando, ora opondo-se fortemente, ora abstendo-se. Ao invés, é de rejeitar o irritante chuvisco com que, em regime de quase permanência, o Palácio de Belém envolve o governo, com a intermitência de algumas réstias de sol de inverno.

O PR não pode fazer coro com a oposição e, muito menos, substituí-la. Tem o poder da palavra. E a sua palavra, quando devidamente pensada e se utilizada no momento oportuno, é um poder simbólico de que podem surgir consequências concretas. Se é usada sempre e em todas a parte, a propósito de tudo e de nada, perde eficácia. E a propalada magistratura de influência pode reduzir-se a comentário, a desgaste, a vingança ou a marcação de agenda política.

Com o professor e constitucionalista Vital Moreira, digo que me parece ser esta “a primeira vez, no sistema político-constitucional de 1976, que um PR faz saber publicamente que entende que um ministro deve ser demitido e que, depois, vem anunciar oficialmente que discorda da opção do primeiro-ministro [PM] de recusar o pedido de demissão, entretanto apresentado pelo próprio ministro em causa”. E o constitucionalista critica o entendimento do PR, no sentido de que “detém um poder de superintendência e [de] tutela política quotidiana sobre o PM, quer para efeitos de recorrente crítica e de recomendações públicas sobre a atividade governativa, quer para se permitir, como agora, censurar e propor publicamente a demissão de ministros”.

Por mim, entendo que o PR pode não concordar com proposta de nomeação (ainda não publicada) que o PM lhe apresente. Porém, como a exoneração é assunto mais delicado, o PR não pode, ao menos publicamente, exigir a exoneração de um governante. O que está em causa não é a confiança do PR no governante, mas a do PM, que é o detentor da prerrogativa de proposta.

E o constitucionalista recorda: “Não existe nenhuma base constitucional para tal poder de tutela presidencial, pois o governo não deriva a sua legitimidade política das mãos do PR, nem é politicamente responsável perante ele, mas somente perante a AR. De igual modo, é domínio reservado ao primeiro-ministro manter ou não a confiança nos seus ministros e decidir sobre eventual remodelação governamental.”  

É sabido – ele o disse – que Mário Soares insistiu, em privado, com o então PM Cavaco Silva para que propusesse a exoneração de uma das suas ministras, o que o chefe do Governo não aceitou, estribado na sua ideia institucionalista. Porém, quando Cavaco Silva propôs a Mário Soares a nomeação de um ministro para vice-primeiro-ministro, o PR não aceitou a proposta. E tudo se passou no segredo dos gabinetes do Palácio de Belém.

É claro que, agora, para respaldar algumas possíveis atitudes de Marcelo Rebelo de Sousa, se fala do exemplo de Jorge Sampaio. Ora, sem desprimor pelo exercício presidencial de Sampaio (não gostei da sua eleição, mas entendo que foi um homem cordato, bom autarca e, globalmente, bom chefe de Estado), o ter forçado, intempestivamente, embora em privado, a exoneração de dois ministros de António Guterres, só abona a fraqueza deste PM. Fez bem, em minha opinião, não aceitar a proposta, feita por Santana Lopes, de um determinado governante para ministro dos Negócios Estrangeiros. Todavia, explicitar, no discurso de posse de Santana Lopes como primeiro-ministro, que o governo ficava sob vigilância em determinadas matérias, que especificou (por exemplo, Finanças e Justiça), merecia que o PM, acabado de empossar, aproveitasse o discurso da posse para colocar o lugar à disposição do PR.

E, sobretudo, está por explicar cabalmente a dissolução da AR quando o governo tinha por base uma maioria parlamentar que não lhe criava problemas. Se fosse dado mais tempo ao PM, provavelmente os eventuais conflitos suscitados pelos barões do partido seriam resolvidos. Assim, não pode dizer-se outra coisa, a não ser que o PR cedeu à opinião de comentadores e do próprio partido de que era originário. Estou à vontade para o referir, pois o escrevi então.

Também penso que os episódios do gabinete de João Galamba puseram em causa a imagem do governo e a credibilidade do ministro, pelo que o normal (e o que eu esperava) era que houvesse demissão (por iniciativa do próprio) ou exoneração (proposta pelo PM e decidida pelo PR).

Por isso, António Costa apresentou e reapresentou aos portugueses o formal pedido de desculpa. Não obstante, por ter sido posto o carro à frente dos bois (e em público), o PM fez bem em distinguir as responsabilidades dos dois titulares de órgãos de soberania. Cabe ao PM propor a nomeação e a exoneração de governantes e o PR decidir, e não o inverso.  

No governo minoritário de António Costa, apoiado por três partidos à esquerda do PS, o PR chamou a Belém o ministro das Finanças, por via do caso da administração da Caixa Geral de Depósitos (CGD), vindo a dizer, posteriormente, que o ministro se mantinha por causa da necessidade de obviar ao equilíbrio das contas públicas; e, em discurso público, a partir de Oliveira do Hospital, quase exigiu a saída da ministra da Administração Interna, que pediu a demissão. No segundo governo minoritário de António Costa, foi clara a exigência pública do PR da demissão do ministro da Administração Interna, mas sem êxito, até que o governante foi indiciado em processo-crime. E, neste breve período de governação maioritária, os mimos públicos a governantes em concreto têm sido useiros e vezeiros.                    

Portanto, a ostensiva recusa da exoneração, querida pelo PR, e a não aceitação do pedido de demissão do ministro, por parte do PM, revela que o chefe do Governo, contra tudo e contra todos, resolveu não aceitar passivamente quaisquer passos na ingerência de Belém na esfera governativa e de não continuar a suportar discretamente, como até agora – diz Vital Moreira –, “o abuso de poder presidencial, tornando-se conivente com a manifesta subversão do quadro constitucional sobre o sistema de governo”.

Em meu entender, fê-lo tarde (devia tê-lo feito a seguir à entrevista à RTP1, de 9 de março – a da maioria requentada). Mas fê-lo. Resta saber qual o impacto que esta clarificação terá sobre Belém. Em todo o caso, cada um – PR e PM – assume as suas responsabilidades. Há erros, mediocridade e incompetência, mas as reais instituições democráticas estão a funcionar e o governo está a fazer trabalho. O PR quer dissolver a AR? Que o faça, mas sem imputar responsabilidade e causas, a não ser a si próprio e à sua eventual agenda política.

A procissão de comentadores já saiu do adro a classificar a decisão do PM de deslavado desafio ao chefe de Estado. Até dizem que perdeu a cabeça. Porém, é o PR quem, sem precedente histórico no atual regime constitucional, vem desafiando o exclusivo da autoridade do PM sobre o governo, ao exigir, publicamente, a demissão de um ministro em concreto.

A separação de poderes agradece, quando o que estava a acontecer não era interdependência, nem cooperação, mas confusão e interferência, para lá dos limites do razoável.

Se querem eleições, não temos pressa, mas estamos dispostos a ir votar!

2023.05.03 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário