segunda-feira, 15 de maio de 2023

Não somos órfãos: temos connosco o Paráclito

No 6.º domingo da Páscoa no Ano A, o convite da liturgia aos cristãos vai no sentido de estes descobrirem a presença – discreta, mas atuante e tranquilizadora – de Deus na caminhada histórica da Igreja. A promessa de Jesus – “não vos deixarei órfãos” – unida à de que nos enviará o Paráclito é a garantia dessa inefável presença, sendo pena que a nossa distração nos impeça de a perceber e de fruir dela.
O Evangelho (Jo 14,15-21) apresenta-nos parte do discurso testamentário de Jesus, na ceia de despedida, em Quinta-feira Santa. O Paráclito, que Ele enviará, conduzirá a comunidade cristã rumo à verdade e à comunhão cada vez mais íntima com Jesus e com o Pai. Assim, a comunidade será a morada de Deus no Mundo e dará testemunho da salvação de Deus para todos.
Estamos no contexto da tomada de decisão, pelas autoridades judaicas, de matar Jesus, decisão de que Jesus tem plena consciência. É, pois, imediato o cenário da morte na cruz.
Portanto, a Ceia pascal da noite daquela quinta-feira é a última ceia judaica da comunidade dos discípulos e a primeira ceia da comunidade dos amigos, que serão, muito em breve, constituídos em irmãos do Senhor, aquando da ressurreição. No decurso da ceia, Jesus – depois de instituir a Eucaristia no mistério sacrificial e banquetário do pão e do vinho transformados em seu Corpo e Sangue, entregues ao Pai em redenção da Humanidade pecadora, e depois de, juntamente com o gesto do lava-pés, ter dado aos discípulos o mandamento novo do amor (o do serviço aos irmãos, tal como fez o Mestre) – fez o longo discurso de despedida, em que rezou por eles ao Pai, pediu que fossem um só, pisou e repisou a necessidade do amor fraterno (a marca dos crentes) e reiterou a promessa do envio do Espírito de verdade, vincando o seu indizível papel como conforto, luz fortaleza e inspiração para a luta pelo bem, para a oração e para a ação.
As palavras de Jesus são de testamento final: parte para o Pai e os discípulos continuam no Mundo. Fala-lhes do caminho que percorreu (e que ainda tem de percorrer, até à consumação da sua missão e até chegar ao Pai); e convida-os a seguirem esse caminho de entrega a Deus e de amor radical aos irmãos, pois é seguindo-o que se tornarão homens novos e constituirão a família de Deus. Porém, eles estão desconcertados, sentindo dificuldade em percorrer tal caminho sem Jesus a caminhar ao seu lado; não sabem como irão manter a comunhão com Jesus e como receberão d’Ele a força para doar a própria vida. Ora, Jesus garante-lhes que não ficarão sós no Mundo. Ele vai para o Pai, mas tem forma de continuar presente e de acompanhar, a passo, a caminhada dos discípulos. Só é preciso que eles continuem o seguimento de Jesus, O amem e se amem. E a consequência do amor é cumprir tudo quanto Ele mandou.
Todavia, os mandamentos têm que deixar de ser normas puramente externas, que se impõem, para serem a expressão clara do amor dos discípulos e da sua sintonia com Jesus.
Para mostrar que estará ao lado dos discípulos, dando-lhes a coragem para percorrer o caminho do amor e do dom da vida, Jesus expõe-lhes a sua fórmula de presença, que os confunde mais.
Jesus fala no envio do “Paráclito”, que estará sempre com os discípulos. O termo grego “paráklêtos”, importado do vocabulário jurídico, designa aquele que ajuda ou defende o acusado, podendo traduzir-se por “advogado”, “auxiliar”, “defensor”. E daqui deduz-se o sentido de “consolador” e o de “intercessor”. No Novo Testamento, o termo só aparece em João e é usado para designar o Espírito e o próprio Jesus (que, no céu, cumpre a missão de intercessão).
O “Paráclito” que Jesus enviará é o Espírito Santo – apresentado como o “Espírito da Verdade”.
Enquanto esteve com os discípulos, Jesus ensinou-os, protegeu-os, defendeu-os; mas, doravante, será o Espírito quem ensinará esta comunidade e cuidará dela. O Espírito desempenhará um duplo papel: conservará a memória da pessoa e dos ensinamentos de Jesus, ajudando os discípulos a interpretá-los à luz dos novos desafios; e dará segurança aos discípulos, guiando-os e defendendo-os, frente à oposição e à hostilidade mundanas. Enfim, o Espírito conduzirá a comunidade em marcha pela História, rumo à verdade e à liberdade plena.
Ao garantir o envio do “Paráclito”, Jesus reafirma que não deixará “órfãos” os discípulos. A utilização do termo “órfãos” é muito significativa: no Antigo Testamento, o “órfão” é o protótipo do desvalido, do desamparado, do que está à mercê dos poderosos, do que é vítima de todas as injustiças. Assim, os discípulos não ficarão indefesos, pois Jesus vai estar ao lado deles.
Ele vai deixar o Mundo, vai para o Pai. O Mundo deixará de O ver, pois não estará fisicamente presente. Porém, os discípulos poderão contemplá-Lo, pois continuarão em comunhão de vida com Ele e receberão o Espírito que lhes transmitirá, no quotidiano, a vida de Jesus ressuscitado, que nunca se porá de férias, nem estará em teletrabalho.
No dia em que Jesus for para o Pai e os discípulos receberem o Espírito, a comunidade descobrirá – por ação do Espírito – que faz parte da família de Deus. Jesus identifica-Se com o Pai, pela ação do Espírito; e também, por ação do Espírito, os discípulos identificam-se com Jesus. É a brilhante experiência da comunidade cristã unida com o Pai, através de Jesus, em comunhão de vida entre Deus e o homem e dos homens entre si. Então, a comunidade será a presença de Deus no Mundo: ela e cada membro seu convertem-se em morada de Deus, o espaço onde Deus vem ao encontro dos homens, para realizar a sua ação salvadora no Mundo.
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A primeira leitura (At 8,5-8.14-17) mostra a comunidade cristã a dar testemunho da Boa Nova de Jesus e a ser presença libertadora e salvadora na vida dos homens. Não obstine, adverte que o Espírito só se manifestará e só atuará quando a comunidade aceitar viver a sua fé integrada numa família universal de irmãos, reunidos à volta do Pai por Jesus.
Nos primeiros anos, o cristianismo praticamente circunscrevia-se a Jerusalém. E os primeiros sete capítulos do livro dos Atos dos Apóstolos apresentam a Igreja de Jerusalém e o testemunho dado pelos primeiros cristãos no espaço da cidade. Porém, quando, por volta do ano 35, se desencadeou a perseguição contra esta comunidade, muitos deixaram Jerusalém.
Provavelmente, esta perseguição, desencadeada após a morte de Estêvão, não afetou todos os membros da comunidade (os apóstolos continuavam em Jerusalém), mas atingia, especialmente os Judio-helenistas do círculo de Estêvão (cristãos hebreus, que mantinham fidelidade relativa à Lei e ao judaísmo). E estes, não conformados com uma morte inútil: deixaram Jerusalém e espalharam-se pelas outras regiões da Palestina. É um facto providencial que permitiu a difusão do Evangelho pelas outras regiões palestinas.
Neste domingo, está em evidência Filipe, um dos sete diáconos, do grupo do mártir Estêvão (cf At 6,1-7), que foi anunciar o Evangelho aos habitantes da região central da Palestina, a Samaria.
Ironicamente, a difusão do Evangelho fora de Jerusalém ocorreu na Samaria, que era, para os judeus, uma terra praticamente pagã (os judeus desprezavam os Samaritanos por serem uma mistura de sangue israelita com estrangeiros e consideravam-nos hereges em relação à pureza da fé Javista). Assim, o anúncio do Evangelho na Samaria mostra que a Igreja não tem fronteiras e pré-anuncia o passo seguinte: a evangelização do mundo pagão.
O trecho em referência divide-se em duas partes.
Na primeira parte (vv 5-8), um sumário resume a atividade missionária de Filipe entre os samaritanos. Filipe pregava “o Messias”, ou seja, Jesus Cristo e o seu desígnio de salvação e de libertação. Ante a interpelação do Evangelho, os Samaritanos “aderiam unanimemente às palavras de Filipe” e surgia ali a comunidade de homens livres, iluminados pela luz libertadora de Jesus, pois os espíritos impuros abandonavam os possessos e os coxos e paralíticos eram curados. Desta novidade brotava profunda alegria, a alegria que, na obra de Lucas, acompanha a erupção da comunidade do Messias.
A segunda parte (vv 14-17) é dedicada à chegada dos apóstolos Pedro e João. Quando a comunidade de Jerusalém soube que a Samaria acolhera a mensagem de Jesus, enviou lá Pedro e João em visita. Não se diz qual a reação de Pedro e de João ante o avanço do Evangelho; apenas se refere que os Samaritanos, já batizados, ainda não tinham recebido o Espírito Santo.
Provavelmente, isto quer dizer que a adesão dos Samaritanos ao Evangelho era superficial (mais motivada pelos gestos espetaculares, concomitantes à pregação de Filipe, do que pela convicção) e que não havia, entre eles, o sentido de pertença à família de Jesus, a Igreja universal. Por isso, Pedro e João impuseram-lhes as mãos, a fim de que recebessem o Espírito. O Espírito aparece como o selo da pertença dos Samaritanos à Igreja de Jesus Cristo.
Assim, ficamos a perceber que, para uma comunidade se constituir como Igreja, não é suficiente a aceitação superficial da Palavra, nem manifestações humanas; é preciso que a comunidade tenha consciência de que não é uma célula autónoma, mas que é convidada a viver a fé integrada na Igreja universal. Portanto, toda a comunidade que quer integrar a família de Jesus deve, acolher a autoridade e buscar o reconhecimento dos pastores da Igreja universal. Só então se manifestará nela o Espírito, a vida de Deus.
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A segunda leitura (1Pe 3,15-18) exorta os crentes à confiança, ao testemunho sereno da fé, à prática do amor para com todos, incluindo os perseguidores, ao jeito de Cristo. O trecho em causa, exortativo, mostra qual deve ser a atitude dos crentes, confrontados com a hostilidade do Mundo.
Os crentes devem, acima de tudo, reconhecer nos corações a santidade de Cristo, que é “o Senhor” (“Kýrios” – isto é, o próprio Deus, Senhor do Mundo e da História). Do reconhecimento da santidade e da soberania de Cristo brota a confiança e a esperança; e os crentes nada temerão, pelo que podem enfrentar a injustiça e a perseguição.
Os cristãos devem estar sempre dispostos a mostrar as razões da fé e da esperança. Porém, devem fazê-lo sem agressividade (precisamos de apóstolos, não de prosélitos), com delicadeza, com modéstia, com respeito, com boa consciência, mostrando o seu amor por todos, mesmo pelos perseguidores. Assim, os perseguidores ficarão sem argumentos e todos perceberão, mais facilmente, de que lado está a verdade e a justiça.
Os cristãos devem, ainda, em qualquer circunstância, mesmo ante o ódio e a hostilidade, preferir o bem ao mal.
A carta remata a exortação, apresentando aos crentes a razão fundamental pela qual os crentes devem agir desta forma ilógica: “Cristo morreu uma só vez pelos nossos pecados – o justo pelos injustos – para nos conduzir a Deus”. E, se Cristo propiciou, até aos injustos, a salvação, também os cristãos devem dar a vida e fazer o bem, quando são perseguidos e sofrem. Aliás, esse caminho de dom da vida não é caminho de fracasso e de morte, pois Cristo, que morreu pelos injustos, voltou à vida pelo Espírito. Portanto, os cristãos que fizerem da vida um dom ressuscitarão.
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Se calhar, teremos de prestar mais atenção e obediência ao Espírito Santo!

2023.05.14 – Louro de Carvalho


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