domingo, 21 de maio de 2023

A Ascensão do Senhor postula a esperança, a confiança e a missão

 

O 7.º domingo da Páscoa, em Portugal e nos países em que o dia da Ascensão não é feriado, cede o passo à solenidade da Ascensão de Jesus aos Céus, a qual sugere que, no termo do caminho percorrido na doação, está a vida de comunhão com Deus, devendo nós, enquanto discípulos e seguidores de Jesus, continuar o projeto libertador de Deus para os homens e para o Mundo.

Para tanto, é oportuno, desde já, convocar a esperança, a confiança e o sentido acurado da missão. Com efeito, com a ascensão, Jesus não emigrou, apenas deixou de ser permanentemente visível, não se prendendo aos limites do Mundo. Como refere a primeira leitura, enquanto Jesus subia e depois de deixarem de O ver, os apóstolos estavam de olhos fitos no céu – uma atitude pascal –, mas dois homens vestidos de branco garantiram-lhes: “Esse Jesus, que do meio de vós foi elevado para o Céu, virá do mesmo modo que O vistes ir para o Céu.” Ele não nos deixou, não fugiu. A ascensão é para nos dar espaço à oração e à ação, atitudes pascais também necessárias.

É, pois, firmados nesta atitude de esperança ou de espera ativa que celebramos a morte do Senhor e proclamamos a sua ressurreição até que Ele volte.

No Evangelho de Mateus, proclamado neste Ano A, Jesus garante que está connosco, todos os dias, até à consumação dos séculos. Na verdade, aquele Jesus que Mateus diz, quase no início do seu relato evangélico, ser o Emanuel ou Deus-connosco, à despedida, no monte da Galileia, afirma-se, por Si próprio e não por outrem, o Deus connosco: “Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos.” Ora, esta promessa de garantia da permanente presença de Jesus concita a nossa confiança, na certeza de que não estamos sós. E o Espírito Santo que Ele nos enviou aninha em nós esta certeza inabalável e este afeto confiante.  

Além disso, a esperança e a confiança, que já seriam boas, por si mesmas, impõem-nos a resposta positiva e ativa ao mandato do Senhor: “Ide e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei.” É a missão que Ele nos confiou que urge e que exige de nós, saída (ide) afeto e universalidade (todas as nações), ação (ensinai, batizai).

***

A primeira leitura (At 1,1-11) é um extrato de Atos dos Apóstolos, livro que se dirige a comunidades que vivem em contexto de crise. Na década de 80, cerca de 50 anos após a morte de Jesus, passara a fase da expectativa pela vinda iminente do Cristo glorioso para instaurar o Reino e havia certa desilusão. As questões doutrinais faziam confusão, a monotonia favorecia a mediocridade e as comunidades instalavam-se, sem entusiasmo e sem empenho. O mundo continuava igual e a esperada intervenção vitoriosa de Deus parecia adiada.

É neste ambiente que se insere o trecho em referência. O catequista Lucas adverte que o plano de salvação passou (após a ida de Jesus para junto do Pai) para o coração e para as mãos da Igreja, animada e unificada pelo Espírito. A construção do Reino é tarefa interminada, que é preciso concretizar na história e que exige o empenho contínuo de todos os crentes. Os cristãos são, pois, instados a redescobrir o seu papel, no sentido de testemunhar o projeto de Deus, na fidelidade ao caminho que Jesus percorreu.

O relato é precedido por um prólogo que relaciona os Atos com o 3.º Evangelho, na referência ao mesmo Teófilo, a quem o Evangelho foi dedicado, e na alusão a Jesus, aos seus ensinamentos e à sua ação no mundo (tema fulcral do 3.º Evangelho). Além disso, o prólogo apresenta os protagonistas do livro: o Espírito Santo e os apóstolos, ambos vinculados com Jesus.

A seguir, vem o tema da despedida de Jesus. O narrador evoca os quarenta dias que mediaram entre a ressurreição e a ascensão, durante os quais Jesus falou aos discípulos “a respeito do Reino de Deus” (o que parece contradizer o Evangelho, que apresenta a ressurreição e a ascensão no dia de Páscoa). O número quarenta é, na certa, o número simbólico a definir o tempo necessário para o discípulo aprender e repetir as lições do mestre. Temos, portanto, aqui o tempo simbólico de iniciação ao ensinamento do Ressuscitado.

As palavras de Jesus vincam dois aspetos: a vinda do Espírito e o testemunho que os discípulos são chamados a dar “até aos confins do Mundo”. É a síntese da experiência missionária da comunidade de Lucas: o Espírito derramar-se-á sobre a comunidade crente e dar-lhe-á a força para testemunhar Jesus em todo o Mundo, desde Jerusalém a Roma. O catequista quer mostrar que o testemunho e a pregação da Igreja entroncam em Jesus e são impulsionados pelo Espírito.

Por fim, vem o tema da ascensão, a interpretar de modo que, através da roupagem dos símbolos, a mensagem apareça com toda a clareza.

Primeiro, temos a elevação de Jesus aos Céus. Não se trata, literalmente, de descolagem física da Terra, mas de uma categoria teológica: a ascensão é uma forma de expressar que a exaltação de Jesus é total e atinge dimensões supraterrenas; é a forma literária de descrever o culminar de uma vida vivida para Deus, reentrando na glória da comunhão com o Pai. Mas Jesus não entra só como Deus, entra também com a nossa natureza humana. Tal como nasceu Verbo de Deus feito homem, também agora reentra como Deus e homem.

Depois, surge a nuvem, que subtrai Jesus aos olhos dos discípulos. Pairando a meio caminho entre o Céu e a Terra, a nuvem é, no Antigo Testamento (AT), símbolo privilegiado da presença do divino. Ao mesmo tempo, esconde e manifesta, sugerindo o mistério do Deus escondido e presente, cujo rosto o Povo não pode ver, mas cuja presença se adivinha nos acidentes da caminhada. Céus e Terra, presença e ausência são dimensões sugeridas a propósito de Cristo ressuscitado, elevado à glória do Pai, mas a caminhar com os discípulos.

Nos discípulos a olhar para o céu, espelha-se a expectativa ansiosa da comunidade pela segunda vinda de Cristo, para levar a cabo o projeto de libertação.

Temos, finalmente, os dois homens vestidos de branco. O branco sugere o mundo de Deus – o que indica que o testemunho dos discípulos vem de Deus. Com efeito, os discípulos são chamados a continuar no mundo, animados pelo Espírito, a obra libertadora de Jesus. Assim, o sentido fundamental da ascensão não é não ficarmos a admirar a elevação de Jesus, mas decidirmo-nos a seguir o caminho de Jesus, olhando para o futuro e entregando-nos à realização do desígnio de salvação no Mundo.

***

O trecho do Evangelho (Mt 28,16-20) situa-nos na Galileia, após a ressurreição (embora não se diga se é muito ou pouco tempo após a descoberta do túmulo vazio). Segundo Mateus, Jesus – pouco antes de ser preso – marcara encontro com os discípulos na Galileia; e, na manhã da Páscoa, os anjos que apareceram às mulheres, no sepulcro, e o próprio Jesus, vivo e ressuscitado, que a interceta no caminho (mais uma vez a categoria do caminho) renovam o convite a que os discípulos, droa vate irmãos, se dirijam à Galileia, para o encontro com o Senhor.

A Galileia – região setentrional da Palestina – era uma região próspera. A sua situação geográfica tornava-a o ponto de encontro de muitos povos. Por isso, um número importante de pagãos integrava a sua população. A coabitação de populações pagãs e judias fazia com que os judeus da Galileia vivessem a religião de modo diferente dos judeus de Jerusalém e da Judeia, pois a presença diária dos pagãos levava os galileus à suavização da prática da Lei e à interpretação menos restritiva das regras que se referiam, por exemplo, às impurezas rituais contraídas pelo contacto com os não judeus. E isto levava os judeus de Jerusalém a desprezar os judeus da Galileia e a considerar que da Galileia não podia sair nada de bom.

Todavia, foi na Galileia que Jesus viveu quase toda a sua vida e lá começou a anunciar o Evangelho do Reino e a reunir à sua volta um grupo de discípulos. Isto quer dizer que é preciso recomeçar desde o princípio e entender o que Jesus disse e fez, à luz na nova realidade da ressurreição. Por outro lado, na ótica de Mateus, o anúncio libertador de Jesus tem uma dimensão universal: destina-se a judeus e a pagãos.

Mateus situa este encontro final entre Jesus ressuscitado e os discípulos num “monte que Jesus lhes indicara”, que nós não sabemos qual é, mas que Mateus terá ligado com a montanha da tentação e com a montanha da transfiguração. De qualquer forma, o “monte” é sempre, no A T, o lugar onde Deus se revela aos homens.

O trecho em referência divide-se em duas partes.

A primeira (vv 16-18) descreve o encontro com o Ressuscitado, que Se revela aos discípulos, os quais O reconhecem e O adoram. Não obstante, alguns ainda duvidaram. Isto mostra que a fé não é uma certeza científica e que não exclui a dúvida. Porém, a dúvida constante dos discípulos – expressa em vários momentos, ao longo do caminho para Jerusalém – agora, perde razão de ser.

Ao reconhecimento e à adoração dos discípulos, segue-se a manifestação do mistério de Jesus, que reflete a fé da comunidade: Jesus é o “Kýrios”, que possui todo o poder sobre o Mundo e sobre a História. É “o mestre”, cujo ensinamento será sempre a referência para os discípulos. É o Deus-connosco, que acompanha, pari passu, a caminhada dos discípulos pela História.

A segunda parte (vv 19-20) descreve o envio dos discípulos em missão pelo Mundo. A Igreja é, essencialmente, uma comunidade missionária, cuja missão é testemunhar no mundo a salvação que Jesus veio trazer aos homens e que deixou no coração e nas dos discípulos.

Como notas da missão, sobressaem: a universalidade (para todas as nações); as duas componentes, ensino e batismo (o discipulado começava pelo catecumenato – palavras e gestos de Jesus – a que se seguia o batismo, a selar a íntima vinculação do discípulo com o Pai, o Filho e o Espírito Santo e a plena inserção na comunidade); e a presença perpétua de Jesus com os discípulos. Esta última nota expressa a convicção – dos crentes da comunidade mateana – de que Jesus ressuscitado está sempre com a sua Igreja, acompanhando-a na sua marcha pela História, ajudando-a a superar as crises e as dificuldades da caminhada. E, ao mesmo tempo, está junto do Pai a interceder por nós.

***

Por fim, o trecho da segunda leitura (Ef 1,17-23), que aparece na primeira parte da Carta aos Efésios, faz parte de uma ação de graças a Deus pela fé dos Efésios e pela sua caridade para com todos os irmãos na fé. À ação de graças, o Apóstolo une fervorosa oração a Deus, para que os destinatários conheçam “a esperança a que foram chamados”. A prova de que o Pai tem poder para realizar a esperança de conferir aos crentes a vida eterna como herança é o que Ele fez com Jesus Cristo: ressuscitou-O e sentou-O à sua direita, exaltou-O e deu-Lhe a soberania sobre todos os poderes angélicos (Paulo preocupa-se com a tendência de alguns cristãos para a excessiva importância aos anjos, pondo-os até acima de Cristo). A soberania sobre os anjos estende-se à Igreja, o corpo de que Jesus Cristo é a cabeça.

A ideia de que a comunidade cristã é um corpo – o “corpo de Cristo” – formado por muitos membros, já havia aparecido nas “grandes cartas”, acentuando, sobretudo, a relação dos vários membros do corpo entre si. Porém, mas, nas “cartas do cativeiro” (e esta carta é uma delas), Paulo retoma a noção de corpo de Cristo, para refletir sobre a relação da comunidade com Cristo. Há, aqui, dois conceitos significativos para definir a relação entre Cristo e a Igreja: o de cabeça e o de plenitude (em grego, “plêroma”).

Dizer Cristo como cabeça da Igreja significa que os dois formam uma comunidade indissolúvel e que há, entre os dois, uma comunhão total de vida e de destino. Porém, Cristo é o centro à volta do qual o corpo se articula, a partir do qual e em direção ao qual o corpo cresce, se orienta e se constrói. Cristo é a origem e o fim desse corpo. Ao mesmo tempo, a Igreja-corpo está submetida à obediência a Cristo-cabeça: só de Cristo a Igreja depende e só a Ele deve obediência.

Dizer que a Igreja é a plenitude de Cristo significa dizer que nela reside a totalidade de Cristo. Ela é o recetáculo pelo qual Cristo Se torna presente no Mundo e através do qual realiza, todos os dias, o plano de salvação em favor dos homens. Assim, Cristo enche o mundo e atrai a Si o universo inteiro, até que o próprio Cristo “seja tudo em todos”.

Em suma, a ascensão é, da parte de Cristo, poder, presença, intercessão; da parte da Igreja, unida a Cristo, é esperança, confiança, missão. E importa que a Igreja fale mais de Jesus do que de si.

2023.05.21 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário