domingo, 7 de maio de 2023

As ordens profissionais devem ultrapassar o espírito corporativista

 

Noticiava a agência Lusa, a 4 de maio, que os advogados reunirão em assembleia geral extraordinária, dentro de um mês, para mostrar, “de forma inequívoca”, que não se resignam às alterações ao seu estatuto profissional, que dizem representar “uma ingerência do Estado” e uma “diminuição da atuação da advocacia”.

Em conferência de imprensa, na sede da Ordem dos Advogados (OA), em Lisboa, na tarde daquele dia, a bastonária, Fernanda de Almeida Pinheiro, ladeada pelos presidentes de órgãos nacionais e regionais da instituição, assinalou que “o momento impõe a união da classe” e que, “numa atuação sem precedentes na História desta instituição”, os vários órgãos “unem esforços, para, de forma clara, indicar ao governo que a alteração a efetuar ao Estatuto da Ordem dos Advogados não poderá passar pela diminuição da atuação da advocacia”.

Em declaração lida aos jornalistas, mas dirigida aos advogados, a bastonária acrescentou que os advogados não aceitarão que os atos próprios da profissão, definidos legalmente, “sejam alterados ou possam vir a ser prestados por outros profissionais que não sejam licenciados em Direito” ou inscritos na OA, a qual “não aceitará qualquer ingerência do Estado na sua autorregulação”, bem como “não compactuará com qualquer solução que belisque o sigilo profissional ou possa pôr em causa a relação de confiança entre advogado e cliente”.

A bastonária referiu que a assembleia geral será convocada “nos termos legais, em princípio daqui a 30 dias”, e apelou à mobilização dos advogados, por considerar que “está em causa o Estado de Direito democrático e os direitos, liberdades e garantias” dos cidadãos, vincando que é “indispensável ouvir a classe” e consultar os advogados “sobre o que pretendem fazer a seguir”.

E porfiou que os advogados se vão fazer ouvir, sendo as medidas de ação tomadas em conjunto.

Face a este posicionamento da OA, o professor Vital Moreira, constitucionalista, observou que a bastonária parece ignorar que “as ordens são entidades públicas criadas pelo Estado para desempenharem as tarefas que a lei lhes confere e que, num Estado de direito, as entidades públicas estão submetidas, de modo qualificado, ao princípio da legalidade, ficando, por isso, sujeitas a tutela governamental”.

Do meu ponto de vista, a OA, para lá da autorregulação e do autogoverno, parece arrogar-se ao exclusivo da defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.  

E Vital Moreira sustenta que, sendo a OA uma entidade pública administrativa, a sua rebelião contra a Lei-quadro das associações públicas profissionais a revisão dos seus estatutos, a aprovar pela Assembleia da República [AR], tem de a respeitar e de a implementar – constitui “lamentável desafio à autoridade do Estado e, em especial, à autoridade legislativa da AR”. Com efeito, prosseguindo o interesse público, como definido pelo Estado, estas associações não são grupos de defesa de interesses privados, pelo que não podem “propor-se resistir ao cumprimento das leis”.

Além disso, como salienta o renomado constitucionalista, o principal ponto da divergência é a “inevitável redução da esfera dos chamados “atos próprios” dos advogados”, os “atos que só eles podem praticar, excluindo outros profissionais”. E a OA quer manter o elenco legal atual.

Segundo, Vital Moreira, esse é objetivo impossível, pois o monopólio profissional injustificado traduz-se numa “restrição ilegítima da liberdade profissional”; a Autoridade da Concorrência, não tem escondido a oposição aos monopólios profissionais, “por restrição manifesta da concorrência na prestação de serviços profissionais”; “a Constituição só reserva aos advogados o patrocínio forense, sendo este a única tarefa que […] deve ser salvaguardada como competência exclusiva”; e nenhuma justificação há “para que os demais ‘atos próprios’ atuais  (consulta jurídica, assistência na negociação de contratos, etc.), embora continuando a ser competência dos advogados, não sejam abertos a outros profissionais, desde logo outros juristas, tanto ou mais habilitados para os praticarem”. 

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Casos como este, que levam ao máximo a defesa dos interesses de um grupo com grande poder na sociedade e cujos membros atuam em bloco ou com espírito de corpo, costumam ser encaixados na postura corporativista, não obviamente no corporativismo de Estado, mas no corporativismo profissional.  

corporativismo de Estado é uma ideologia política que defende a organização da sociedade por grupos corporativos, associações ou sindicatos agrícolas, trabalhistas, policiais, militares, científicas ou corporações de artes e de ofícios (associações de guilda), com base nos seus interesses comuns. O termo é derivado do latim corpus (corpo). E a ideia é a de que a sociedade atingirá o apogeu de funcionamento harmonioso quando cada uma das suas divisões desempenhar eficientemente a sua função, como os órgãos de um corpo, que contribuem, individualmente, com a sua saúde e funcionalidade, para o bem-estar da comunidade, para o interesse geral.

As ideias corporativistas vingaram em várias civilizações antigas, inclusive em sociedades confucionistas, abraâmicas, etc. e serviram de suporte a uma ampla gama de sistemas políticos: autoritarismo, absolutismo, fascismo, liberalismo, integralismo e socialismo.   

O Estado Novo, definindo Portugal como uma república orgânica e corporativa, dispunha da Câmara Corporativa, como órgão consultivo da Assembleia Nacional. Porém, Marcello Caetano confessava-se cansado de ouvir falar tanto de corporativismo, o qual nunca se instalou a sério, em sua opinião. E parece-me que, ao invés do que sucedeu em Espanha, com o franquismo, em Portugal, a ideia corporativista apenas serviu de justificação epidérmica para a ditadura, que se afirmava seguidora dos princípios sociais da Igreja Católica. Tive professores que no-lo diziam abertamente: a Igreja quer sociedades intermédias (de vários tipos e com liberdade de expressão e de reunião) entre as famílias e o Estado, mas o Estado exerce forte controlo sobre os poucos grupos sociais existentes, pondo-os ao serviço da sua ideologia de Pátria.

O termo “corporativismo” também pode referir-se ao tripartismo económico que envolve negociações entre grupos de interesses trabalhistas e comerciais e o governo, para estabelecer políticas económicas: neocorporativismo ou corporativismo socialdemocrata. Entre nós, parece funcionar na Concertação Social.

Já na Roma Antiga (753 a.C – 476 d.C.) havia agrupamentos de trabalhadores do mesmo ofício, que a lei denominava como corpora ou collegia e que tinham a mesma função que as corporações das artes e dos ofícios. Com as invasões bárbaras, desapareceram, mas voltaram, no século XII, como inspiração para o surgimento das cidades, graças às transformações no feudalismo, com o processo de reurbanização e com o surgimento dos burgos na Europa Medieval.

Alguns sustentam que as corporações surgiram para controlo económico dos governantes, pois, ainda na época agrícola da Idade Média, os reis e senhores feudais exerciam poder sobre pesos e medidas, a moeda e os mercados. Os artesãos, ao chegarem às novas cidades, deviam apresentar-se às autoridades locais, já que os senhores tinham o direito político de controlo de vendas. Nessa ordem de ideias, os agrupamentos teriam sido constituídos pelos senhores, a fim de melhor regulamentarem os produtores e os produtos.

Outros defendem que as cidades – construídas com a união de burgos (fortificações), igrejas e terrenos – cresceram com o aumento do comércio. A maior parte dos seus habitantes eram mercadores. Com o passar do tempo, criou-se o embate entre a lógica feudal e a lógica das cidades, que era comercial. Para solucionar o conflito, surgiram as corporações, que eram associações de mercadores, com o objetivo de garantir liberdade para as cidades em que viviam, de modo que nestas houvesse crescimento contínuo.

O homem da cidade queria ser livre e, muitas vezes, buscava a liberdade pela violência. Por isso, muitas das guerras travadas nas cidades foram lideradas pelas corporações das artes e dos ofícios. Os senhores feudais podiam dar direitos aos mercadores, através de cartas de atribuição de privilégio. E cada vez mais as associações monopolizavam o comércio, deixando de fora tanto não membros, como comerciantes estrangeiros. As mercadorias, ao chegarem à cidade, deveriam ser, a princípio, analisadas e compradas pelos membros das corporações. Caso um estrangeiro ou não membro comprasse ou trocasse alguma mercadoria antes dos membros, o infrator seria punido e o produto confiscado pelo rei. Com efeito, as instituições de poder estavam diretamente ligadas e dispostas pelas associações de mercadores, que determinavam os preços, assim eliminando a concorrência e ganhando cada vez mais poder.

Na Itália, eram nominadas de mercadantia ou collegia notariorum; na França, confréries; na Inglaterra, Suécia e Holanda, guilds; na Alemanha, InnungenGilden ou Zünfle e, por fim, grémios, na Espanha em Portugal.

As corporações das artes e dos ofícios eram estabelecidas por relações de solidariedade e de auxílio mútuo e visavam conservar o ofício dos artesãos que as formavam. Para tanto, criaram rígidos regulamentos que estavam ligados ao princípio básico de proteção dos produtos e do consumidor e impunham cada vez mais um padrão a seguir, garantindo a qualidade da mercadoria.

Contudo, tinham outras atribuições e princípios básicos, como a ajuda mútua, em nome da qual, pelo espírito de fraternidade, garantiam direitos básicos aos seus membros mais necessitados (por exemplo na falta de trabalho e na incapacitação por doença ou por velhice); o controlo direto da indústria, isto é, o monopólio da produção de específicos, vedando a participação de estrangeiros e de não membros; a conduta moral entre os membros, sendo proibidas vantagens obtidas através de golpes entre membros; a sua hierarquia de categorias profissionais e de competências; e o padrão de qualidade, em nome do qual se visava o nome e o prestígio da respetiva corporação, através de fiscalizações contínuas, de modo a assegurar a qualidade dos produtos. E, em contexto de cristandade, as corporações tinham as suas obrigações cultuais próprias, o seu padroeiro, as suas festas, o seu pendão e a sua caldeira.

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Ora, a OA, aliás como as demais associações profissionais públicas (ordens) estão dotadas da capacidade de autorregulação e de autogoverno, zelam os direitos dos seus membros e garantem a qualidade dos seus serviços, a benefício dos clientes – tal como as velhas corporações. Porém, como lhes cabe, por definição do Estado, prosseguir o interesse público e desempenhar funções administrativas por delegação do poder público, não podem refugiar-se no bastião corporativista e reivindicar monopólios ilegítimos que anulem a necessária concorrência.

2023.05.07 – Louro de Carvalho

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