quarta-feira, 17 de maio de 2023

Cimeira do Conselho da Europa reafirmou os princípios democráticos

 

O Conselho da Europa (CoE), de que Portugal faz parte, há 47 anos, esteve reunido nos dias 16 e 17 de maio, em Reiquiavique, na Islândia, tendo a guerra da Ucrânia como impulsionadora e a principal prioridade na agenda. Portugal fez-se representar pelo primeiro-ministro António Costa, que emparceirou com os representantes dos outos 45 Estados-membros.

Esta cimeira já estava nos planos, mas a guerra na Ucrânia foi, segundo os observadores, o gatilho para a marcação. Em quase 75 anos de história, este foi apenas o quarto encontro ao mais alto nível da mais antiga instituição europeia em funcionamento, que é a “principal organização de defesa dos direitos humanos no continente”.

Em Reiquiavique, a Ucrânia foi “a prioridade número um, dois e três da agenda”, como apontara, previamente, Tiny Kox, presidente da Assembleia Parlamentar do CoE, em entrevista de antevisão a jornalistas portugueses, em Estrasburgo no final de abril. “O ponto principal será como podemos reafirmar a nossa solidariedade, a solidariedade de toda a Europa.”

E a expectativa era que tal demonstração resultasse de unanimidade. A este respeito, dizia, então, disse Bjørn Berge vice-secretário-geral do CoE: “Creio que, em princípio, veremos todas as decisões levadas à cimeira, assim como as declarações, a serem adotadas por consenso. Há também a possibilidade de adotá-las por voto, mas a nossa esperança e intenção é que possamos mostrar unidade, que todos os 46 Estados-membros concordam com os textos.”

É o poder do Conselho. Dizia Tiny Kox: “Não temos exército e não temos dinheiro. Mas temos o nosso conjunto de regras com o qual todos os Estados-membros se comprometeram”.

E Bjørn Berge vincava o mérito desta via: “Sem o Conselho da Europa, sem o Tribunal dos Direitos do Homem, sem todo o sistema de convenções e toda a maquinaria que construímos na Europa, a Europa teria parecido muito, muito diferente, quando se trata de proteger os direitos humanos, a democracia e o Estado de direito.”

No atinente à Ucrânia, o foco é a responsabilização. Uma grave violação do direito internacional absorveu dezenas de milhares de vidas, provocou milhões de fugas (de casa, da terra e do país) e causou enormes danos. Por isso,  o Conselho da Europa, enquanto guardião dos direitos humanos, tinha de encontrar maneiras de garantir que a justiça seja feita ao Estado da Ucrânia, às suas estruturas da Ucrânia e aos seus cidadãos. E quem inicia a guerra será responsabilizado mais cedo ou mais tarde. Porém, como os tribunais responsáveis por julgar estes crimes demoram “anos e anos e anos”, é importante dar um “sinal” o “mais rápido possível” de que será feita justiça. Nesse sentido, o CoE dá o primeiro passo, ao nível da responsabilização dos que tiverem cometido crimes e ao da compensação para os que os sofreram. Assim, sobressai a importância de “um registo onde todos e cada um dos cidadãos da Ucrânia que se sintam vítimas da guerra podem registar os danos que sofreu, que será a base da criação de um mecanismo de compensações, que possa indemnizar os que sofreram perdas no conflito.

A declaração final da cimeira, segundo a expectativa criada, deveria mencionar a criação de um tribunal especial. É certo que estes assuntos deveriam ser resolvidos pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). No entanto, como a Rússia nunca o reconheceu, este não tem jurisprudência para julgar crimes de agressão cometidos por Moscovo. Portanto, a Assembleia Parlamentar do CoE foi a primeira a dizer que é necessário um tribunal ad hoc para lidar com o crime de agressão. A ideia parecia estranha, pois o último tribunal especial deste género foi o de Nuremberga, que julgou os crimes dos nazis na Segunda Guerra Mundial. Contudo, em 2022, a União Europeia (UE) apoiou a ideia. E, como a maioria dos países europeus e os EUA estão de acordo, a probabilidade de haver efetivamente um tribunal internacional aumentou.

Este tema tem estado na agenda internacional há vários meses. Contudo, se a sua existência é cada vez menos disputada, os moldes em que irá acontecer ainda não são consensuais.

Sobre o papel do Conselho no processo, Tiny Kox opinou que não seria organizado pelo CoE, mas que este ofereceria os seus serviços, pois dispõe de larga quantidade de especialistas em Direitos Humanos, Democracia e Estado de Direito, nos vários organismos.

Outra proposta cuja provação que Bjørn Berge esperava era a declaração quanto às crianças que foram deportadas – algo com um acordo alargado entre os 46 Estados-membros do CoE.

O tema esteve em discussão na sessão plenária de Primavera da Assembleia Parlamentar (que decorreu entre 24 e 28 de abril). Na altura, o deputado Paulo Pisco, como relator do CoE, apelou, na apresentação de um relatório, que todas as crianças fossem devolvidas à Ucrânia e que a Rússia parasse imediatamente as deportações, o que foi aprovado por unanimidade.

Um pedido inscrito no relatório foi que toda a comunidade internacional e as organizações internacionais mantivessem o tema em cima da mesa para discussão, “para que sejam encontradas as soluções e para que haja uma cooperação que permita que todas as crianças que foram deportadas possam regressar ao seu país, às suas famílias ou aos seus tutores legais”.

Todavia, o âmbito da cimeira não se esgotou na Ucrânia. Entre as preocupações na agenda esteve o preocupante. “retrocesso democrático”, que está a afetar toda a Europa, com a sociedade civil a “perder espaço de manobra”. Há novos desafios relacionados com a proteção da liberdade de imprensa e com a independência dos tribunais. Há uma certa desilusão com as instituições democráticas. Há o problema da corrupção. São desafios que não pertencem a um pequeno grupo de países. Embora a níveis diferentes, afetam todos os 46 Estados-membros. Por isso, era de esperar a adoção de um conjunto de princípios de democracia, uníssono e comum a todas as democracias europeias, o que será um bom princípio para o trabalho subsequente do CoE, que atua numa lógica de estabelecer standards, que monitoriza e ajuda a implementar.

Por último, há que melhorar o funcionamento do conselho da europa.

Em 2022, o CoE foi pioneiro ao ser a primeira instituição internacional a expulsar a Rússia na sequência da invasão da Ucrânia (decisão que ficou efetivada menos de um mês depois do início da guerra) – uma medida extrema, a primeira do género alguma vez tomada.

Porém, as tensões com a Rússia vêm de antes da guerra. Moscovo estava a ser pressionado por não cumprir as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH ou ECDR, na sigla inglesa), que definiu, por exemplo, a libertação de Alexei Navalny, advogado, ativista, blogueiro e político russo. Por outro lado, a Rússia não está isolada nas tensões por casos julgados pelo ECDR, cujas decisões são vinculativas para os Estados-membros. É disso exemplo o caso de Osman Kavala, ativista turco e opositor de Erdogan, que foi condenado a prisão perpétua pela organização dos protestos do Parque Gezi, em 2013. O TEDH decidiu que o ativista devia ser imediatamente libertado, mas Ancara rejeita a deliberação.

Interpelado sobre a contradição de o “guardião” europeu dos direitos humanos manter Estados-membros em violação destes princípios, Tiny Kox respondeu: “Todos estes Estados assinaram e ratificaram voluntariamente os estatutos do Conselho da Europa e a Convenção Europeia de Direitos do Homem. Por isso, se há uma contradição, é uma contradição causada pelos próprios Estados. Eles assumiram esta obrigação, por isso eles têm de garantir que fazem aquilo com que se comprometeram.” Admitiu que, em alguns, como na Turquia e no Azerbaijão, os governos têm problemas em cumprir o que prometeram em larga escala e que, também na pequena escala, como nos Países Baixos, em certos momentos, há problemas em cumprir as obrigações. É a consequência de ter uma organização tão ampla baseada num tratado. No entanto, salvaguardou: “A boa notícia é que, cada vez mais, os veredictos do tribunal são executados. Há muito trabalho bom feito e vidas são salvas por causa das sentenças nos tribunais.”

Porém, como há um número crescente de casos muito importantes em que os Estados se recusam a fazer o que o tribunal diz, um dos pontos em agenda era a melhoria do sistema.

***

Na conferência de imprensa que assinalou o final da cimeira, a primeira-ministra da Islândia, Katrín Jakobsdóttir, defendeu que a cimeira do Conselho da Europa (CoE) alcançou “decisões concretas” que terão “impacto direto” na atividade da instituição internacional e na vida dos mais de 700 milhões de cidadãos que representa. Com efeito, o encontro tinha por objetivos fortalecer o apoio à Ucrânia e reafirmar o compromisso com os valores basilares do CoE.

A principal decisão prendeu-se com a criação de um Registo de Danos sofridos na Ucrânia. Esta será a “primeira componente de um futuro mecanismo de compensação”. Para isso, reunirá dados sobre danos, perdas e ferimentos causados pela invasão, podendo incluir uma comissão de reivindicações e um fundo de compensação. E fica patente a obrigação da Federação Russa de pagar pelos danos causados ​​pela sua guerra de agressão.

O primeiro-ministro da Ucrânia, Denys Shmygal, defendeu que todos os envolvidos na invasão devem ser responsabilizados, desde os oficiais de topo aos soldados, e que são necessárias garantias para que a agressão não se repita. E a secretária-geral do CoE, Marija Pejčinović Burić, sublinhou este compromisso com a responsabilização: “Não é possível pôr por palavras o choque com o horror vivido na Ucrânia.”

 

CoE apoiará a reconstrução da Ucrânia, inclusive pelo financiamento e pela implementação do Plano de Ação do Conselho da Europa para a Ucrânia ‘Resiliência, Recuperação e Reconstrução’, comprometendo-se a usar todos os meios disponíveis no Conselho, incluindo o Banco de Desenvolvimento do Conselho da Europa. Posiciona-se a favor da criação de um tribunal especial para julgar os crimes de agressão no decurso da invasão (que caem fora da jurisdição do TPI). E apela à Federação Russa para que cumpra com suas obrigações internacionais e retire imediata, completa e incondicionalmente, a suas forças da Ucrânia, da Geórgia e da República da Moldávia, tal como apela à “libertação imediata de todos os civis que foram transferidos à força ou deportados ilegalmente para o território da Federação Russa ou para as áreas temporariamente controladas ou ocupadas”, sobretudo dos menores.

Sobre a situação das crianças na Ucrânia, o CoE apoia as autoridades ucranianas para “garantir o retorno imediato” de todos os que foram ilegalmente transferidos ou deportados pelas forças russas, tal como apoia os Estados que acolhem temporariamente as crianças ucranianas.

Manifestando preocupação com a tendência do retrocesso democrático em vários países, o CoE avançou com a adoção de um conjunto de princípios democráticos, nomeadamente: participação democrática, independência dos parlamentos e instituições democráticas, separação de poderes, imparcialidade dos órgãos judiciais, luta contra a corrupção e liberdade de expressão. E reiterou o compromisso com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pedra basilar do CoE.

Das decisões da cimeira, destaca-se também o reconhecimento político do direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável como um direito humano, bem como as prioridades da adesão da UE ao CoE, do estabelecimento de novos standards para salvaguardar os Direitos Humanos na era digital (sobretudo quanto à inteligência artificial), da promoção dos direitos sociais na Europa através da Carta Social, da cooperação contínua com as forças de oposição democrática da Bielorrússia, bem como com os defensores dos direitos humanos da Bielorrússia e da Rússia e com os meios de comunicação.

Ficou ténue a reforma do sistema de funcionamento do CoE. Não obstante, a cimeira constitui um avanço notável, que é de saudar. Assim se concretize a vontade política dos 46 Estados.

2023.05.17 – Louro de Carvalho

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