quarta-feira, 10 de maio de 2023

Manifesto abuso de poder, tiques ditatoriais

 

O Presidente da República (PR) promulgou, a 8 de maio, o decreto-lei sobre recrutamento e colocação dos professores. E, como vem sendo hábito, fê-lo com reservas e tecendo considerações que, a serem levadas a sério, deveriam levar ao veto presidencial. 

Na verdade, uma nota da Presidência da República, daquele dia, dá conta de que “a Casa Civil da Presidência da República tem acompanhado, de muito perto, em contacto com o Governo e recebendo as Associações Sindicais, quer o presente regime legal, quer a matéria, ainda pendente, da recuperação faseada do tempo de serviço dos docentes”.

É estranho que, pública e formalmente, infrinja a separação de poderes. Entendo que uma cooperação discreta entre altos funcionários afetos ao PR e altos funcionários afetos ao governo ocorra a propósito de todas as matérias, embora as assessorias civis e militares, neste âmbito, devam funcionar no aconselhamento ao PR, na análise tendente à promulgação ou ao veto (político ou constitucional – este mediante apreciação do Tribunal Constitucional que acorde na inconstitucionalidade).  Não obstante, a nota vai mais longe, especificando que, no atinente ao diploma em causa, foram formuladas várias sugestões e, também, apresentada proposta concreta sobre a vinculação dos professores, no sentido de a tornar mais estável, sem, com isso, introduzir desigualdades adicionais às já existentes”.

Ora, se o referido acompanhamento, explicitamente confessado, já concitava suspeitas, as sugestões feitas e a “proposta concreta” apresentada “sobre a vinculação dos professores” denotam ingerência dos serviços do PR nos do executivo – o que nunca tinha sucedido, mesmo com este chefe de Estado, de forma tão despudorada. É verdade que todos os PR, em democracia, exerceram pressões sobre os governos, mas todos se limitaram à discrição dos gabinetes e a mensagens públicas de teor genérico ou a declarações prévias a dissolução parlamentar ou a propósito de matérias sobremodo relevantes, como foram os casos dos vetos da Lei da Rádio, da Lei dos Coronéis (ambas com Mário Soares) e do Estatuto Político-Administrativo dos Açores (com Mário Soares e com Cavaco Silva). Porém, Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), que nos habituou a comentar os diplomas que promulga, analisando os prós e os contra, que se arvorou ao direito/dever de, publicamente, chamar ministros a capítulo e, por várias vezes, foi dando sinais – explícitos ou implícitos – da necessidade de demissão deste ou daquele governante, tornou-se useiro e vezeiro a declarar apoios ao governo, bem como distanciamentos e críticas. E, desta vez, ultrapassou-se a si mesmo. Não fica bem ao PR colocar-se ao lado dos que reivindicam, ainda que os deva ouvir e possa cooperar na mediação. E, principalmente, nunca deve dar sugestões ou apresentar propostas formais de decreto ao governo ou de lei ao Parlamento, muito menos sentir-se desobedecido ou ultrapassado, por as suas sugestões e propostas não serem seguidas.           

A nota refere que o chefe de Estado promulgou o diploma do governo, “tendo em atenção a publicação pelo Governo, no Diário da República, da Portaria n.º 111-A/2023, de 26 de abril, que abre concurso apenas para dois mil professores, para o ano próximo, fundada na versão da lei vigente e porque a nova lei não foi promulgada nem publicada e, portanto, não entrou ainda em vigor”. Ora, a dita portaria parece que abre oito mil vagas e não apenas duas mil.

Mais refere que “adiar a promulgação” ou recusá-la “representaria adiar as expetativas de cerca de oito mil professores” e deixaria sem consagração reivindicações pontuais já aceites.

No entanto, a Federação Nacional dos Professores (Fenprof) diz que a generalidade do diploma só produz efeitos no ano letivo de 2024-2025, vincando que a não aprovação não poria em causa oito mil professores, pelo que “a não promulgação poderia abrir um novo espaço de negociação, do qual poderia resultar a eliminação daquelas que a Fenprof considerou como linhas vermelhas”. Por isso, avisou que rever o diploma passa a ser um objetivo da luta dos professores.

Já que se meteu a fundo na questão, o PR faz bem em esperar “que o diálogo com os professores prossiga, nomeadamente quanto ao futuro dos professores agora vinculados por um ano, assim como quanto à recuperação faseada do tempo docente prestado e ainda não reconhecido”.

E termina com uma observação em que parece ter razão: “Importaria que o ano letivo de 2023-2024 não fosse, ao menos para alguns alunos e famílias, mais um ano acidentado, tal como foram, por razões muito diversas, os três que o precederam.”

Não obstante, devo dizer que os professores têm toda a razão em bater na exigência da contagem de todo o tempo de serviço que esteve congelado. Ninguém está a pedir dinheiro, no imediato. A progressão é um ato de justiça. Em alternativa, poderá beneficiar-se quem o preferisse em desconto de anos para a idade pessoal da reforma/aposentação. Há tanta gente que não beneficiou do descongelamento do tempo de serviço (aposentados, aceitantes da rescisão de contrato por acordo e falecidos). E, quanto a receios inerentes ao diploma têm razão, nomeadamente quanto à possível decisão discricionária de colocação em agrupamento diferentes.

Todavia, é estranho que o PR, publicamente, se tenha implicado tão claramente na questão. E também a diversificação das formas de luta e o seu prolongamento no tempo só se entendem pela inusitada implicação e apoio de pessoas e de organizações que nunca se envolveram em qualquer tipo de luta reivindicativa. Isto não revela maior furor sindicalista, mas o refinamento da convergência contra o atual governo, sobretudo da direita política.        

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Vital Moreira, professor e constitucionalista chama à atitude presidencial, vertida no diploma em causa, “modo de litígio institucional”. Efetivamente, no blogue “Causa nossa, sob a epígrafe “O que o Presidente não deve fazer (36)”, diz que a postura do PR, no diploma que entendeu “não poder vetar”, culmina “uma prática inovadora desviante do atual PR que, desde o início, recorreu à promulgação com reservas, demarcando-se dos atos legislativos, como se, de outro modo, fosse considerado politicamente corresponsável por eles”.

Tal postura não é plausível, pois, “constitucionalmente, o PR não compartilha do poder legislativo” com a Assembleia da República (AR), nem com o governo. Como “as leis não carecem de sanção (assentimento) do chefe do Estado” ao invés do “que sucedia na monarquia constitucional”, o “poder de veto presidencial é um puro ‘poder negativo’, obrigando o legislador a reconsiderar o diploma” (no caso da AR), pelo que, no dizer do constitucionalista, “a promulgação é um ato ‘por omissão’, não traduzindo concordância política presidencial”.

Assim, o veto de diploma da AR “tem de ser justificado, mas a promulgação, não”. Já um diploma do governo pode ser vetado sem devolução ou sem explicação, que, do ponto de vista curial, deve ser dada. Por isso, para Vital Moreira, a “promulgação com reservas”, em que o PR “regista objeções políticas aos diplomas que promulga, como se fosse colegislador, não tem cabimento constitucional, nem político”. É, diz o constitucionalista, “um manifesto abuso de poder”

O caso é especialmente grave, porque o PR denuncia oficialmente o governo por não ter seguido uma pressão presidencial para alterar o diploma, incluindo uma “proposta concreta”, como se o executivo tivesse obrigação de ceder, tal como fez na proposta de demissão do ministro Galamba, em que denunciou, publicamente, a rejeição das suas propostas, “como se fossem um desafio à sua autoridade”. Ora o governo não tem obrigação de seguir os conselhos presidenciais, “quando se trata de ingerência nos poderes constitucionalmente reservados ao executivo, seja a condução política do País, seja a demissão de ministros, seja o exercício do poder legislativo, pelos quais ele não responde politicamente perante o PR, mas somente perante a AR e [perante] o país”.

Apesar de ser uma das traves-mestras do Estado de direito constitucional, diz Vital Moreira, “a separação de poderes não goza de grande consideração em Belém”. Por mim, digo que Belém assume a vertente epistémica da separação de poderes (fala na separação tantas vezes), mas não tem em conta a sua vertente deôntica (tantas vezes a contradiz por atos).

No caso dos professores, MRS deu “foros oficiais à sua ideia de o Governo dever ceder na negociação em curso com os professores”, aceitando “uma recuperação faseada do tempo docente prestado e ainda não reconhecido”, uma linha vermelha reiterada pelo governo. Além de não ter precedente, esta deliberada intromissão “no poder negocial do Estado numa negociação sindical em curso é “uma inaceitável ingerência na condução da política governamental” e “uma grosseira provocação política ao Governo” ou a entrada “em modo de litígio institucional aberto contra o governo”, já sem poupar as armas. São tiques ditatoriais, em meu entender.

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MRS quer seguir a linha dos anteriores PR. Em segundo mandato, todos quiseram levar avante a sua ideia de governação e “infernizaram” os respetivos executivos.

Ramalho Eanes, a partir do Palácio de Belém patrocinou a criação de um novo partido, que não governava, quando o PR terminou o mandato, mas tinha assento parlamentar com 18% dos votos e protagonizou a moção de censura ao governo minoritário de Cavaco Silva, secundada pelo Partido Socialista (PS). Mário Soares, reeleito com apoio do Partido Social Democrata (PSD), não descansou nas diatribes com o governo (sem se intrometer, publicamente, no processo legislativo e no da nomeação de membros do executivo), mas deixou no governo o PS, que fundara. Jorge Sampaio – que se sentiu obrigado a dissolver a AR, porque António Guterres se demitiu na sequência da derrota em eleições autárquicas, recusou a dissolução aquando da saída de Durão Barroso para a Comissão Europeia, apressou-se a dissolver a AR, contra a maioria absoluta que suportava o executivo de Santana Lopes, e deixou o PS a governar com maioria absoluta. Cavaco Silva conviveu pacificamente com a maioria absoluta do PS, mas, na tomada de posse em segundo mandato, apelou ao sobressalto democrático e, dada a demissão de José Sócrates, dissolveu a AR e o seu partido – o PSD – ficou a liderar o governo maioritário de Passos Coelho/Paulo Portas. Ter-se-á adiantado uns meses naquela decisão, pelo que saiu de Belém com o governo nas mãos de António Costa, que, não tendo vencido as eleições, conseguiu formar governo com o arranjo parlamentar de então. Saiu deixando, a contragosto, o PS a governar. 

Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de apoiar o mecanismo de governo que o seu antecessor se sentiu obrigado a aceitar. E, explicava daqui, divergia dali, mas, em termos globais, estava a favor do governo, para levar a legislatura até ao fim. As eleições de 2019 deram maioria relativa ao PS e tudo iria bem (a legislatura terminaria em 2023, ficando o PR com margem de manobra para ajudar o seu partido). Porém, MRS, cujo segundo mandato foi lançado e apoiado pelo PS, prometeu a dissolução da AR, caso houvesse rejeição da proposta do Orçamento do Estado para 2022. O PS ganhou as eleições com maioria absoluta. Ora, se a legislatura for até ao fim, já MRS não é o Presidente, tendo deixado Belém sem colocar o seu PSD a governar.

Como a AR teve a sua primeira reunião em fins de março, devido ao recurso sobre a votação num círculo eleitoral, MRS teve tempo de pensar. Na posse do governo, fez o discurso das linhas com que vinculou o executivo (o que Jorge Sampaio fez a Santa Lopes) e acenou com a dissolução da AR para 2024, caso houvesse mudança de chefe de governo. E vai daí a primar, em público, por comentários, críticas, invetivas e intromissões na área governativa, como se vê.                      

António Costa, de início, gostou; depois, tolerou; mais tarde, explicava-se; e, por fim, demarcou-se, remetendo-se à estrita separação de poderes. E a vigilância presidencial galopa.

2023.05.10 – Louro de Carvalho

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