terça-feira, 2 de maio de 2023

Avaliação das aprendizagens dos alunos: inflação nas classificações

 

Estamos a falar, obviamente, das classificações atribuídas na avaliação sumativa interna dos alunos do ensino secundário, mormente nos cursos científico-humanísticos, que são aqueles de que, normalmente, saem os candidatos ao ensino superior.

Essa inflação também sucede, em parte, nas disciplinas de Português e de Matemática, em que os alunos do 9.º ano se submetem a prova final nacional.

Os cursos profissionais regem-se por normas específicas cujo eventual incumprimento pode ter repercussões no financiamento. A avaliação, em cada disciplina, decorre da estrutura modular e resulta da média ponderada, conseguida nos diferentes módulos, podendo o peso de cada um ser diferente, consoante a sua relevância no processo de aprendizagem. E o aluno, após o estágio (desenvolvido num só período, no fim do curso, ou períodos intermitentes, durante o mesmo), têm a prova de aptidão profissional (PAP), apresentando relatório perante o júri, constituído por elementos internos e externos, entre os quais o orientador.

Decorreu, a 2 de maio às 10h30, o evento “O contributo dos dados para o conhecimento da realidade do sistema educativo: InfoEscolas 2022”, no Teatro Thalia, em Lisboa, com transmissão online em direto, via streaming – uma oportunidade para a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) dar a conhecer os novos dados inseridos na edição de maio de 2023 do Portal InfoEscolas e para divulgar relatórios de informação estatística que contribuem para a melhor compreensão e análise da informação nele apresentada.

O evento, organizado pela DGEEC, contou com a intervenção do Diretor-Geral e da Subdiretora-Geral, Nuno Neto Rodrigues e Filomena Oliveira, da Técnica Superior, Patrícia Pereira, bem como de especialistas na área da Educação e do Ministro da Educação, João Costa.

Os relatórios de informação estatística encontram-se disponíveis na página da DGEEC em https://www.dgeec.mec.pt/np4/1496.html

Entre as mais de 100 escolas privadas analisadas pelos serviços do Ministério da Educação (ME), 41 atribuem aos alunos um número anormal de classificações de 19 e 20 valores, o que é tido como “comportamentos desviantes”.

O ME analisou as classificações internas atribuídas aos alunos em todas as escolas secundárias públicas e privadas de Portugal Continental, ao longo dos últimos cinco anos letivos, e detetou um padrão de inflação de notas muito mais comum nos colégios.

Entre as escolas privadas, a classificação interna mais frequentemente atribuída aos alunos (moda) nos últimos cinco anos letivos é de 20 valores em 12 disciplinas, enquanto, no ensino público, isso acontece com apenas quatro. No total, a média total das classificações internas atingiu os 15 valores, nas escolas públicas, e os 17 valores, nas privadas. A Inspeção-Geral da Educação e Ciência (IGEC) já determinou a “reposição imediata da legalidade” em sete estabelecimentos de ensino, um dos quais é público. E o ME promete rever regras para a sanção dos colégios.

O ME quis perceber em que escolas há um padrão de notas invulgarmente altas atribuídas pelos professores aos alunos no fim de cada ano letivo. Para isso, foi ver em quantos estabelecimentos de ensino, pelo menos 30% dos alunos, tiveram classificação final do ensino secundário entre os 19 e os 20 valores em, pelo menos, dois dos últimos cinco anos letivos.

No ensino público, foram detetadas quatro escolas com este perfil, num universo total de 478 (0,8%). Já no privado, foram encontradas 41, num universo de 101 (40,5%).

O universo de escolas privadas é quatro vezes menor [em relação ao do público], mas o número das que têm comportamentos desviantes é 10 vezes superior. Este é um problema que se encontra num subsetor do sistema de ensino e que tem levado à intervenção da Inspeção-Geral da Educação”, enfatizou o ministro da Educação, na apresentação dos novos dados.

Para garantir que este fenómeno é devidamente sancionado, o ministro anunciou a revisão do “regime sancionatório das escolas privadas”, para se poder dada uma “resposta mais rígida” ao problema. Embora não tenha passado impune até agora, pois, desde 2019, já foram instaurados 85 processos disciplinares por más práticas nos critérios de atribuição de classificações, como lembrou Luís Capela, contudo a ideia é identificar melhor esta violação do dever de zelo.

E, já neste ano, após uma visita a 39 estabelecimentos de ensino (37 privados e dois públicos) que levantaram dúvidas pela atribuição alta de classificações – mais de 30% dos alunos com 19 e 20 valores a, pelo menos, uma disciplina –, a IGEC deixou a sete destas escolas a recomendação de “reposição imediata da legalidade”, já que os critérios de avaliação “não estavam bem delineados”. Neste conjunto de inflação de notas, havia apenas uma escola pública, informou ainda o responsável da IGEC.

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Antes de avançar no desenvolvimento do tema, convém opor à atitude do ME a veemente crítica de uma irregularidade ser, ridiculamente, “sancionada” com uma recomendação de “reposição imediata da legalidade”. Uma recomendação não passa disso mesmo. Consta que a um colégio foi concedido um prazo para repor a legalidade, sob pena de cessar o seu funcionamento, o que o terá levado a contestar a sanção em tribunal. Admite-se que, face à degradação da autoridade do Estado, que já vem de longe, os tribunais desautorizem o ME.

Por outro lado, a culpa da infração avaliativa não está nos critérios de avaliação definidos pelo respetivo conselho pedagógico. Ainda gostava de ver escrito um critério segundo o qual o conselho de turma (órgão que procede à avaliação sumativa interna) deverá subir dois ou três pontos à avaliação proposta pelo professor da respetiva disciplina.

O axe está nas pressões encapotadas de diretores e, mesmo, de inspetores, em tempos idos (isso foi dito por um professor pouco experiente, num “Prós e Contras” da RTP1, perante a então titular da pasta da Educação, motivo pelo qual foi obrigado a retratação pública). Além disso, subjaz, na mente dos professores, o espectro dos rankings de escolas e a necessidade de colocar o máximo de alunos no ensino superior, sobretudo nos cursos mais apetecidos (por exemplo, medicina e engenharias).

Tudo isto se refletiu, negativamente, no processo de ensino-aprendizagem: muitas escolas não resistiram à estandardização, havendo professores, que pressionados por alunos, por encarregados de educação e pela produção editorial, insistiam na resolução de batarias de fichas de avaliação construídas segundo o modelo da prova final. Era a caça às notas!           

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Os dados disponibilizados, a 2 de maio, pelo ME, relativos ao período entre 2017/18 e 2021/22, mostram, igualmente, que as classificações atribuídas, internamente, pelos professores nas escolas têm vindo a subir nos últimos anos, tanto no público como no privado.

Se, em 2018, a classificação mais frequentemente atribuída nas escolas públicas era 16 valores, nos últimos dois anos letivos, já em pandemia, foi de 17; no privado, a média de classificações mais frequentemente atribuídas subiu de 18 para 19 valores. E não creio que o processo de ensino-aprendizagem tenha melhorado. Ao invés, as medidas tomadas no quadro do Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar (PNPSE), a partir de 2016, concretizadas pelos diversos planos de Ação Estratégica (PAE), foram atenuadas pelas dificuldades da pandemia.    

Com a pandemia, por decisão do ME, os exames nacionais deixaram de contar para o cálculo da classificação final de cada disciplina, que passou a resultar apenas da avaliação interna feita pelos professores na escola. A medida contribuiu para a subida das médias, pois já não se confrontaram com o enunciado-surpresa do exame nacional que, não raro, as fazia descer.

O mesmo é visível, se olharmos apenas para as disciplinas em que a classificação de 20 é a mais comum. No ensino público, o número de disciplinas em que a moda das classificações é 20 subiu de quatro, em 2017/2018, para sete, em 2021/22. Já no privado, passou de 15 para 16.

As classificações são invulgarmente altas, sobretudo nas disciplinas não sujeitas a exame nacional. Educação Física é a disciplina trienal com a média nacional mais elevada (16,8 valores, no público, e 18,2 valores, no privado). Nas disciplinas bienais, o Espanhol, o Inglês e a Geometria Descritiva A são as que têm a média mais alta.

Em todos os casos, a classificação média interna atribuída às raparigas é superior à dos rapazes, tanto nas escolas públicas como nas privadas. No ensino público, a diferença situa-se nos 0,4 valores, enquanto nos colégios chega aos 0,6 valores.

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Tendo a DGEEC analisado as classificações internas atribuídas entre 2018 e 2021 e encontrado “escolas e disciplinas que chamam a atenção pelas classificações internas singulares e sistematicamente elevadas” (no ensino privado, havia 11 disciplinas em que a classificação mais frequente era sempre de 20 valores), a IGEC prometia, a 27 de janeiro deste ano, visitar escolas públicas e privadas, para verificar a regularidade dos processos de atribuição de classificações, na sequência de intervenções inspetivas anteriores, desde 2015.

O diretor-geral dos serviços de Estatística da Educação, Nuno Rodrigues, explicava que o objetivo da análise então concluída era apontar pistas para que a tutela e os serviços com responsabilidade na matéria, como a IGEC e o Instituto de Avaliação Educativa, Instituto Público (IAVE, IP), responsável pelos exames, decidissem em conformidade, face a padrões de distribuição de notas e desvios encontrados. Não significava que escola com grande concentração de classificações elevadas estivesse a fazer algo de errado, mas era preciso verificar se estava ou não.

Nesta análise de então, a DGEEC concluía que, em 38 escolas privadas, 30% ou mais dos seus alunos obtiveram 19 ou 20 valores a, pelo menos, uma disciplina, em dois anos letivos do período estudado. A maioria delas (25 em 38) repetiu este padrão entre 2018 e 2021. E o mesmo exercício foi feito para as escolas públicas. Só que, neste caso, no universo de 475 analisadas, só se encontraram duas com uma concentração invulgar de notas máximas.

Os dados, por si só, não permitem concluir que o setor privado transgrida mais do que o público, neste âmbito, até porque a população escolar que frequenta o ensino privado (pago) é muito menos heterogénea do que a do estatal, onde não é possível a seleção de alunos.

Por outro lado, o relatório da DGEEC mostra como se atribuem as classificações disciplina a disciplina. No ensino público, Educação Física, Inglês, Aplicações Informáticas, Biologia e Psicologia são aquelas em que os alunos obtêm classificações mais altas. História A está no extremo oposto. As raparigas saem-se sistematicamente melhor do que os rapazes. E é nas disciplinas opcionais do 12.º ano, não sujeitas a exame nacional, que os valores disparam.

Nos colégios, a classificação máxima foi a que mais se repetiu em 11 disciplinas em cada um destes quatro anos letivos. Em 2020/21, mais de metade (52%) dos seus alunos teve classificação final de 20 valores a Aplicações Informáticas e 51% tiveram-na a Inglês. E 20 é o valor mais comum nas disciplinas sem exame nacional.

Pode dizer-se que disciplinas opcionais (sem exame) motivam mais os alunos, mas, na realidade, estando elas fora do controlo do exame, os alunos têm vantagem em que a sua alta classificação melhore a média do ensino secundário e facilite a classificação de ingresso no ensino superior.

Modus in rebus! Que as escolas proporcionem aprendizagens e secundarizem os exames!

2023.05.02 – Louro de Carvalho

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