domingo, 28 de maio de 2023

O Espírito Santo é a plenitude do dom de Deus

 

A Solenidade do Pentecostes celebra a efusão do Espírito Santo sobre a Igreja, oferecendo-lhe a plenitude do dom de Deus. Não pode mais a Igreja colocar-se a jeito, a ponto de Jesus a interpelar: “Se conhecesses o dom de Deus e quem é Aquele que te diz: ‘Dá-me de beber’…”.    

Podemos, numa linha de distração, pensar que o Espírito Santo desceu sobre os doze apóstolos e sobre Maria, a mãe de Jesus e a rainha dos apóstolos, esquecendo que a Igreja nascente, a que se refere o livro dos Atos dos Apóstolos, estava reunida em oração no Cenáculo, que o corpo apostólico estava restabelecido com a eleição de Matias para a vaga deixada por Judas Iscariotes, que estavam a participar outras mulheres e outros discípulos. Só que as línguas de fogo apenas de visualizaram em Maria e nos Doze. Não obstante, Pedro, no seu discurso alarga o fenómeno a todos os filhos e filhas de Deus, em conformidade com a profecia de Joel.

Razão tinha, por isso, o sacerdote que, neste dia, na Igreja da Misericórdia de Santa Maria da Feira, clamava que o Espírito Santo não é propriedade do Papa, dos Bispos ou dos sacerdotes e que ninguém pode ter a veleidade de fechar a portas do coração ao Espírito de Deus.

Efetivamente, o Pentecostes é a confirmação da Páscoa, é o selo de Deus sobre a paixão glorificadora do Filho, é a confirmação de toda a caminhada da aprendizagem pascal por parte dos novos discípulos, que somos todos nós. Sobre todos os discípulos derramam-se os sete dons do Espírito Santo (sapiência, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus), a terceira Pessoa da Santíssima Trindade, que nos santifica – que mais não são do que a plenitude (“plêroma”) ou a totalidade do dom de Deus – todo e em todos os crentes.           

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O Evangelho, neste Ano A (Jo 20,19-23), apresenta-nos a comunidade cristã, reunida à volta do Ressuscitado. Esta comunidade, de pusilânime e tímida, passa a ser comunidade viva, recriada, nova, a partir do dom do Espírito, que leva superar o medo e as limitações e a dar testemunho, no Mundo, do amor que Jesus viveu até às últimas consequências.

O trecho em referência, já proclamado no segundo domingo da Páscoa situa-nos no cenáculo, no dia da ressurreição. A comunidade ainda não se tinha encontrado com Cristo ressuscitado e não tomara consciência das implicações da ressurreição. Era comunidade fechada, insegura. Precisava de fazer a experiência do Espírito, para, depois, assumir a sua missão no Mundo e dar testemunho do plano libertador de Deus, em Jesus.

Enquanto Lucas, nos Atos dos Apóstolos, narra a descida do Espírito sobre os discípulos no dia do Pentecostes, 50 dias após a Páscoa (por razões teológicas e a fazer coincidir a descida do Espírito com a festa judaica do dom da Lei e da constituição do Povo de Deus), João situa-nos no fim da tarde da Páscoa, para contemplarmos a receção do Espírito pelos discípulos, ainda sem reflexos no exterior. No Pentecostes, a Igreja sai para a praça! Põe-se em marcha!  

João releva a situação da comunidade. O “anoitecer”, as “portas fechadas”, o “medo” são o quadro que espelha a situação da comunidade desamparada em ambiente hostil e, portanto, desorientada. É uma comunidade que perdeu as suas referências e a sua identidade e que não sabe, agora, a que se agarrar. Porém, Jesus aparece “no meio deles”.

Os discípulos, experienciando o encontro com Jesus ressuscitado, redescobrem o seu centro, a coordenada fundamental à volta do qual a comunidade se constrói e toma consciência da sua identidade, pois a comunidade cristã só existe, se está centrada em Jesus ressuscitado. Jesus saúda-os, desejando-lhes a paz (“shalom”, em hebraico), um dom messiânico. E, aqui significa a transmissão da serenidade e da confiança que permitem aos discípulos vencer a insegurança.

Em seguida, Jesus “mostrou-lhes as mãos e o lado”, sinais que evocam a entrega de Jesus, o amor total expresso na cruz. É nestes sinais que os discípulos reconhecem Jesus, o mesmo de sempre. O facto de esses sinais permanecerem no Ressuscitado, indica que Jesus é, de forma permanente, o Messias cujo amor se derrama sobre os discípulos e cuja entrega alimenta a comunidade.

O gesto de Jesus de soprar sobre os discípulos reproduz o gesto de Deus ao comunicar a vida ao homem de argila (João utiliza o mesmo verbo do texto grego de Gn 2,7). Com o sopro de Deus, o homem tornou-se um ser vivente; com este sopro, os discípulos adquirem a vida nova e nascem como homens novos. Possuindo a vida em plenitude, estão capacitados – como Jesus – para fazerem da vida dom de amor aos homens. Assim, de discípulos Jesus faz apóstolos: “Como o Pai Me enviou, assim Eu vos envio.” E, animados pelo Espírito (“pneûma”), formam a nova comunidade da aliança e são chamados a testemunhar, em gestos e em palavras, o amor de Jesus.

Por fim, Jesus explicita a missão dos discípulos: a eliminação do pecado. As palavras de Jesus não significam que os discípulos possam ou não – conforme os seus interesses ou a sua disposição – perdoar os pecados, mas são chamados a testemunhar no mundo a vida que o Pai oferece a todos os homens. O perdão dos pecados é o objetivo de Jesus, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do Mundo, como será o objetivo da Igreja, que deve semear o perdão e não anatematizar.

Paz, serenidade, vida nova, Espírito Santo, apostolado, perdão são cambiantes do dom ou fruto da Páscoa em Jesus e no Espírito Santo (“pneuma hágion”). Quem aceitar este dom será integrado na comunidade de Jesus; quem não o aceitar, continuará em rotas de egoísmo e de morte. A comunidade, animada pelo Espírito, será a mediadora (não a dona) desta oferta de salvação.

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A 1.ª leitura (At 2,1-11) sugere que o Espírito é a lei nova que orienta a caminhada dos crentes, que gera o novo Povo de Deus e faz com que os homens sejam capazes de ultrapassar as diferenças e de comunicar, unindo os povos de todas as etnias e culturas na comunidade de amor.

A apresentar a sua catequese, Lucas recorre às imagens, aos símbolos, à linguagem poética das metáforas, que é preciso descodificar para chegarmos à interpelação essencial do que esta catequese nos deixa. Uma interpretação literal desta narrativa far-nos-ia reparar na roupagem exterior e ignorar o fundamental. Ora, o interesse fundamental de Lucas é apresentar a Igreja como a comunidade que nasce de Jesus, que é assistida pelo Espírito e chamada a testemunhar aos homens o projeto libertador.

Lucas situa a experiência do Espírito no dia de Pentecostes, festa judaica celebrada 50 dias após a Páscoa. Originariamente, era a festa agrícola em que se agradecia a Deus a colheita da cevada e do trigo; mas, no século I, tornou-se a festa histórica que celebrava a aliança, o dom da Lei no Sinai e a constituição do Povo de Deus. Ao situar neste dia o dom do Espírito, Lucas sugere que o Espírito é a lei da nova aliança – pois Ele, no tempo da Igreja, dinamiza a vida dos crentes – e que, por Ele, se constitui a nova comunidade do Povo de Deus, a comunidade messiânica, que viverá da lei inscrita, pelo Espírito, no coração de cada discípulo (cf Ez 36,26-28).

Na narrativa da manifestação do Espírito, o Espírito Santo é apresentado como “a força de Deus”, através de dois símbolos: o vento de tempestade e o fogo – símbolos da revelação de Deus no Sinai, quando Deus deu ao Povo a Lei e constituiu Israel como Povo de Deus. Estes símbolos evocam a força irresistível de Deus, que vem ao encontro do homem, comunica com o homem e que, dando ao homem o Espírito, constitui a comunidade de Deus.

A força de Deus é apresentada como língua de fogo. A língua é a expressão da identidade cultural de um grupo humano e a sua maneira de comunicar, estabelecendo laços duradouros entre as pessoas, criando comunidade. Temos, aqui, o reverso de Babel (cf Gn 11,1-9): lá, os homens escolheram a ambição desmedida que gerou a dispersão e o desentendimento; aqui, regressa-se à unidade, à relação, à construção da comunidade capaz do diálogo. Surge a Humanidade unida pela partilha da mesma experiência, fonte de liberdade, de comunhão. A comunidade messiânica é a comunidade onde a ação de Deus, pelo Espírito, transforma as relações humanas, levando à partilha, à relação, ao amor.

É neste enquadramento que devemos entender os efeitos da manifestação do Espírito: todos “os ouviam proclamar, na sua própria língua, as maravilhas de Deus”. O elenco dos povos convocados e unidos pelo Espírito atinge representantes de todo o mundo antigo. A todos deve chegar a proposta de Jesus, que faz de todos os povos uma comunidade de amor e de partilha.

Ouvir na própria língua as maravilhas de Deus outra coisa não é do que a comunicação do Evangelho, que gera a comunidade universal. Sem deixarem a sua cultura e as suas diferenças, todos os povos escutarão Jesus e podem integrar a comunidade da salvação, onde se fala a mesma língua e onde todos podem experimentar o amor e a comunhão, que tornam irmãos povos tão diferentes. O essencial é a experiência do amor que, no respeito pela liberdade e pelas diferenças, deve unir todas as nações da terra.

O Pentecostes dos Atos dos Apóstolos é a página programática da Igreja e anuncia o que será o resultado da ação das testemunhas de Jesus: a humanidade nova, a antiBabel, nascida da ação do Espírito, onde todos serão capazes de comunicar e de se relacionar como irmãos, porque o Espírito reside no coração de todos como lei suprema e fonte de amor e de liberdade.

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Na segunda leitura (1Cor 12,3b-7.12-13), Paulo avisa que é o Espírito, a fonte de onde brota a vida da comunidade cristã, quem concede os dons que a enriquecem a comunidade e fomenta a unidade de todos os membros.

Por isso, os dons não podem ser usados para benefício pessoal, mas postos ao serviço de todos.

A comunidade cristã de Corinto era viva, mas não exemplar no atinente à vivência do amor e da fraternidade: as divisões, as contendas e as rivalidades, perturbadoras da comunhão, constituíam contratestemunho. A polémica dos carismas (dons concedidos pelo Espírito a algumas pessoas ou grupos para proveito de todos) agudizava-se: os supostos detentores desses dons consideravam-se os eleitos de Deus, apresentavam-se como iluminados e assumiam atitudes de autoritarismo, que prejudicavam a fraternidade e a liberdade; e os que não tinham sido dotados destes dons eram desprezados e considerados como cristãos de segunda.

Na Primeira Carta aos Coríntios, Paulo corrige, admoesta, dá conselhos e mostra a incoerência destes comportamentos, incompatíveis com o Evangelho.

No trecho em referência, acha que é preciso saber ajuizar da validade dos dons carismáticos, para que não se fale em carismas a propósito de comportamentos que pretendem garantir os privilégios de certas figuras. O verdadeiro carisma é o que leva a confessar que “Jesus é o Senhor” (não há oposição entre Cristo e o Espírito) e que é útil para o bem da comunidade. Com efeito, é o Espírito quem nos move a rezar e a dizer: “Jesus é o Senhor”. E é preciso que os membros da comunidade tenham consciência de que, apesar da diversidade de dons, é o mesmo Espírito que atua em todos; apesar da diversidade de funções, é o mesmo Senhor Jesus que está presente em todos; apesar da diversidade de ações, é o mesmo Deus que age em todos. É o Espírito Santo, que habita em nós, quem edifica a unidade do corpo na diversidade de membros, de dons, de funções e de ações.

Não há cristãos de primeira e de segunda. O que é importa é que os dons resultem no bem de todos e sejam usados, não para melhorar a própria posição, mas para o bem de toda a comunidade.

E Paulo compara a comunidade cristã a um corpo com muitos membros. Apesar da diversidade de membros e de funções, o corpo é um só. Em todos os membros circula a mesma vida, pois todos foram batizados num só Espírito e “beberam” um único Espírito (alusão à agua viva que Jesus prometeu à Samaritana e que disponibilizou para todos os que acreditassem)

O Espírito é, pois, apresentado como Aquele que dá vida ao “corpo” de Cristo e o alimenta. E, assim, fomenta a coesão, dinamiza a fraternidade e é o responsável pela unidade desses diversos membros que formam a comunidade. Além disso, é Ele que, ao longo do tempo, inspira novas formas de oração, novos modos de pregação e novos movimentos na Igreja e até novos modos do ser e do agir da Igreja. Há que fazer sempre o côngruo discernimento, antes de uma rejeição.

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Este, sem deixar de ser o tempo do Pai e do Filho, é, por excelência o tempo do Espírito Santo, com o qual a Igreja deve viver em parceria, na referência ativa ao Senhor Jesus.  

Mais do que encerrar o Tempo Pascal, o Pentecostes leva a Páscoa ao quotidiano da vida!

2023.05.28 – Louro de Carvalho

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