sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Solenidade de Todos os Santos, a força da esperança cristã

 

Em dia de todos os santos e santas de Deus, os crentes em Jesus Cristo deixam-se eivar da esperança cristã na vida do Mundo que há de vir, mas sem deixarem de pousar os pés na Terra em que são peregrinos do Infinito. Com efeito, o ser humano, marcado pelo limite, pelo finito, é peregrino, testemunha e arauto do Infinito.

As primeiras perseguições aos discípulos de Cristo tinham infligido golpes mortais e cruéis destruições nas ainda jovens comunidades cristãs. Neste contexto, levantava-se a questão se estas comunidades, acabadas de fundar, iriam desaparecer. Provavelmente, à mistura com os resistentes, havia os desanimados, os pusilânimes, que tinham mais amor a esta vida finita do que à vida imarcescível prometida pelo Senhor da História.   

Também hoje, o que vemos são as guerras, com as mortes, com os desalojados, com os feridos e doentes, com as destruições de património natural e edificado, a par do crime organizado e do vandalismo motivado por situações de desprezo humano e por questões ideológicas, assim como as epidemias ou as degradadas situações de droga, de dependências do jogo, das diversas formas de escravatura e de violência (doméstica, étnica, de rua, no namoro, etc.), de atropelo aos direitos humanos, por via da ambição exagerada.

Por isso, tal como nos primeiros tempos do Cristianismo, é pertinente, hoje, a reflexão sobre as visões do profeta cristão (sobretudo Ap 7,2-4.9-14), que trazem uma mensagem de esperança na provação. É uma linguagem codificada, que evoca Roma, perseguidora dos cristãos, sem a nomear, aplicando-lhe o qualificativo de Babilónia.

A revelação proclamada é a vitória do Cordeiro de Deus, que tira o pecado do Mundo. Paradoxalmente, o Cordeiro imolado é o Cordeiro da Páscoa definitiva, o Ressuscitado, Aquele que transformou a via de morte em caminho de vida para todos aqueles que O seguem (e são numerosos), em particular pelo martírio. Por isso, doravante participam no triunfo glorioso do Senhor, na festa que não terá fim. Na verdade, são a grande multidão incontável dos “que vieram da grande tribulação, dos que lavaram as suas túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro”.

Outra razão para termos a capacidade de aguardar em jubilosa esperança a última vinda do Senhor é que, pelo admirável amor que o Pai nos consagrou, de facto, “somos filhos de Deus” (ver 1Jo 3,1-3). E, “se o Mundo não nos conhece, é porque O não conheceu a Ele”.

É certo que “ainda não se manifestou o que havemos de ser”. Porém, “sabemos que, na altura em que se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porque O veremos tal como Ele é”. E “todo aquele que tem n’Ele esta esperança purifica-se a si mesmo, para ser puro, como Ele é puro”.

Esta mensagem de esperança responde às nossas interrogações sobre o destino dos defuntos. Como sabê-lo, se desapareceram dos nossos olhos? E nós próprios, o que viremos a ser? A resposta é: se Deus, no seu imenso amor, faz de nós seus filhos, não nos pode abandonar. Ora, em Cristo, vemos o futuro que nos dá a pertença à família divina: seremos semelhantes a Ele. Portanto, é pertinente o convite do Senhor: “Vinde a Mim, vós todos os que andais cansados e oprimidos e Eu vos aliviarei (Mt 11,28).

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No Evangelho da solenidade (Mt 5,1-12), ressalta o Código das Bem-aventuranças ou da Realização da Esperança, a felicidade em devir, com parâmetros assentes em critérios diferentes dos do Mundo:

Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus; os humildes, porque possuirão a terra; os que choram, porque serão consolados; os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados; os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia; os puros de coração, porque verão a Deus; os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus; os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos Céus; e os discípulos, quando, por causa de Cristo, os insultarem, os perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra eles.
E o brado de Jesus é: “Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa!”

Depois de dizer quem é Jesus e de definir a sua missão, Mateus apresenta a concretização dessa missão: com palavras e com gestos, Jesus propõe aos discípulos e às multidões o Reino.

Uma caraterística marcante do Evangelho de Mateus é a importância dada aos ditos de Jesus. Ao longo do texto mateano, aparecem cinco longos discursos, em que se juntam ditos e ensinamentos provavelmente proferidos por Jesus em várias ocasiões e contextos. O autor do primeiro Evangelho terá visto, nesses discursos, a nova Lei, a substituir a antiga, dada ao Povo por meio de Moisés e escrita no Pentateuco (cinco livros).

O primeiro discurso – de que o trecho em causa é a primeira parte – é conhecido como o “sermão da montanha”. Agrupa um conjunto de palavras de Jesus, que Mateus colecionou, a fim de proporcionar à sua comunidade uma série de ensinamentos básicos para a vida cristã, o novo código ético, a nova Lei, que supera a antiga, que guiava o Povo de Deus. E Mateus situa a intervenção de Jesus no cimo de um monte, indicação geográfica que nos transporta à montanha da Lei (Sinai), onde Deus Se revelou e deu ao Povo a Lei. Agora, é Jesus, que, na montanha, oferece ao novo Povo de Deus a nova Lei, que guia todos os interessados em aderir ao Reino.

As bem-aventuranças que Mateus põe na boca de Jesus, são diferentes das de Lucas. Mateus tem nove, enquanto Lucas só tem quatro; e Lucas prossegue com quatro “maldições”, que estão ausentes do texto mateano. Outra caraterística da versão de Mateus é a espiritualização (os “pobres” de Lucas são, para Mateus, os “pobres em espírito”), tal como a aplicação dos ditos originais de Jesus à vida da comunidade e ao comportamento dos cristãos. Provavelmente, o texto de Lucas será mais fiel à tradição original, tendo o texto de Mateus sido mais trabalhado.

As bem-aventuranças são fórmulas relativamente frequentes na tradição bíblica e judaica. Aparecem, nos anúncios proféticos de alegria futura, nas ações de graças pela alegria presente, e nas exortações à vida sábia, refletida e prudente. Contudo, definem sempre a alegria oferecida por Deus. Devem ser entendidas no contexto da pregação sobre o Reino. Jesus proclama “bem-aventurados” os que estão numa situação de debilidade, de pobreza, porque Deus está prestes a instaurar o Reino e a situação destes pobres vai mudar radicalmente. São felizes, porque, na fragilidade, na debilidade e na dependência, estão de espírito aberto e de coração disponível, para acolher a salvação e a libertação que Deus lhes oferece em Jesus (o Reino).

As quatro primeiras bem-aventuranças de Mateus são conexas entre si. Dirigem-se aos pobres (as segunda, terceira e quarta são desenvolvimentos da primeira, que proclama: “felizes os pobres em espírito”). Saúdam a felicidade dos que se entregam nas mãos de Deus e procuram fazer sempre a sua vontade; dos que, de modo consciente, deixam de pôr a confiança e a esperança nos bens, no poder, no êxito, nos homens, para esperar e confiar em Deus; dos que renunciam ao egoísmo, se despojam de si próprios e estão disponíveis para Deus e para os outros.

Os pobres em espírito são os que renunciam, livremente, aos bens, ao orgulho e à autossuficiência, para se colocarem nas mãos de Deus, para servirem os irmãos e para partilharem tudo com eles. Os mansos não são os fracos, os que suportam passivamente as injustiças, os que se conformam com a violência orquestrada pelos poderosos, mas os que recusam a violência, que são tolerantes e pacíficos, embora sejam vítimas dos abusos e prepotências dos injustos. A sua atitude pacífica e tolerante torná-los-á membros de pleno direito do Reino. Os que choram são os que vivem na aflição, na dor, no sofrimento, provocados pela injustiça, pela miséria, pelo egoísmo, mas a chegada do Reino faz com que a sua triste situação se mude em consolação e alegria. E a quarta bem-aventurança proclama felizes “os que têm fome e sede de justiça”. Esta justiça deve entender-se em sentido bíblico, isto é, da fidelidade total aos compromissos para com Deus e para com os irmãos. Jesus dá-lhes a esperança de verem a sede de fidelidade saciada, no Reino que vai chegar.

O segundo grupo de bem-aventuranças está orientado para o comportamento cristão. Enquanto, no primeiro, se verificam situações, neste, propõem-se atitudes a assumir pelos discípulos.

Os misericordiosos são os que têm o coração capaz de se compadecer, de amar sem limites, que se deixam tocar pelos sofrimentos e pelas alegrias dos outros homens e mulheres, que são capazes de ir ao encontro dos irmãos e de lhes estender a mão, mesmo quando eles falharam. Os puros de coração são os que têm coração honesto e leal, que não pactua com a duplicidade e com o engano. Os que constroem a paz são os que se recusam a aceitar que a violência e a lei do mais forte rejam a relação humana e os que procuram ser, com o risco da vida, instrumentos de reconciliação entre os homens. Os perseguidos por causa da justiça são os que lutam pela instauração do Reino e são desautorizados, humilhados, agredidos, marginalizados por parte dos que praticam a injustiça, que fomentam a opressão, que constroem a morte. Jesus garante-lhes que o mal não os poderá vencer e, que, no final do caminho, os espera o triunfo, a vida plena.

A última bem-aventurança é uma exortação aos membros da sua comunidade que têm a experiência da perseguição por causa de Jesus e o convite a resistirem ao sofrimento e à adversidade. Esta exortação é aplicação prática da oitava bem-aventurança.

No seu conjunto, as bem-aventuranças deixam uma mensagem de esperança e de alento para os pobres e débeis. Anunciam que Deus os ama e que está do lado deles; confirmam que a libertação está a chegar e que a sua situação vai mudar; asseguram que eles vivem já na dinâmica desse Reino, pelo que encontrarão a felicidade e a vida plena.

As Bem-aventuranças revelam a realidade misteriosa da vida em Deus, iniciada no Batismo. Aos olhos do Mundo, o que os servidores de Deus sofrem são formas de morte: ser pobre, suportar as provas (os que choram) ou as privações (ter fome e sede) de justiça, ser perseguido, ser partidário da paz, da reconciliação e da misericórdia, num Mundo de violência e de lucro, tudo isso aparece como não rentável, votado ao fracasso, consequentemente, à morte. Ao invés, Cristo proclama felizes todos os amigos que o Mundo despreza e considera como mortos, consola-os, alimenta-os, chama-os filhos de Deus, introdu-los no Reino e na Terra Prometida.

A Solenidade de Todos os Santos abre-nos, assim, o espírito e o coração às consequências da Ressurreição. O que se passou em Jesus realizou-se nos seus bem-amados, os nossos antepassados na fé, e diz-nos respeito: sob as folhas mortas, sob a pedra do túmulo, a vida continua, misteriosa, para se revelar no Grande Dia, o do fim dos tempos. Para Jesus, foi o terceiro dia; para os seus amigos, isso, na plenitude, será mais tarde, mas são ressuscitados com Cristo.

Os membros de uma mesma família têm traços do rosto comuns. Também as pessoas que partilham toda uma vida juntas acabam por se parecerem. Esta festa de Todos os Santos reúne inúmeros rostos que trazem em si a imagem e a semelhança de Deus, um rosto de humanidade transfigurada. Enquanto vivos, os santos não se consideravam como tais. Não esculpiam a sua efígie num fundo de autossatisfação. E, ao invés do que aparece nas imagens piedosas e nas biografias embelezadas, não foram perfeitos, nem à primeira, nem totalmente, nem sem esforço. Tinham fraquezas e defeitos contra os quais se bateram toda a vida (li, em tempos, o livro “Os defeitos dos Santos”). Alguns, como S. Agostinho, vieram de longe, transfigurados pelo amor de Deus que acolheram na sua existência. Quanto mais se aproximaram da luz de Deus, tanto mais viram e reconheceram as sombras da sua existência.

Peregrinos do quotidiano, a maior parte não realizou feitos heróicos, nem fez prodígios. Alguns têm à sua conta realizações espetaculares, no plano humanitário, no plano espiritual ou na História da Igreja. Porém, a maioria é de santos da simplicidade e do quotidiano. Canonizam-se muito pouco estas pessoas do quotidiano, de ao pé da porta.

Encontramos em cada um dos santos e das santas um mesmo perfil, mas não podemos desenhar o seu retrato-robô comum. Por muito frequentar Cristo, deixaram-se modelar pelos seus traços.
Como Jesus, tiveram de viver, muitas vezes, em sentido contrário às ideias recebidas e aos comportamentos do seu tempo. Não é evidente e atraente viver as Bem-aventuranças: ser pobre de coração num Mundo que glorifica o poder e o ter; ser doce num Mundo duro e violento; ter o coração puro, face à corrupção; fazer a paz, quando outros declaram a guerra…

Os santos foram pessoas em marcha (na tradução hebraizante de “bem-aventurado”), pessoas ativas, apaixonadas pelo Evangelho. Foram homens e mulheres de coragem, capazes de reagir e de afirmar, a todo o custo, o que os fazia viver. Mostram-nos a via da verdade e da liberdade.
“A Igreja tem necessidade sobretudo de grandes correntes, movimentos e testemunhos de santidade entre os fiéis, porque é da santidade que nasce toda a autêntica renovação da Igreja, todo o enriquecimento da fé e do seguimento cristão, uma reactualização vital e fecunda do cristianismo com as necessidades dos homens, uma renovada forma de presença no coração da existência humana e da cultura das nações.” (cf Bento XVI, Discurso aos Bispos em Fátima, 13 de Maio de 2010).

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“Peregrinos de esperançaé o lema do Jubileu do ano 2025. E a Liturgia da Palavra, na Solenidade de Todos os Santos, mostra-nos a meta gloriosa deste caminho de esperança, estreito, difícil, em direção contrária aos ventos do Mundo, mas não na direção do abismo, do nada e do vazio. É um caminho de subida, com saída para a vida, em direção à plena comunhão de vida e de amor com o Senhor. Percorremo-lo, juntos, com Jesus à frente, não como corredores solitários, nem às cegas. Somos peregrinos de esperança, guiados e acompanhados, por uma multidão de testemunhas, de homens santos e de santas mulheres, que souberam caminhar em contra corrente, marcar a diferença e suportar a oposição. Agora, ressuscitados, glorificados, louvam a Deus, diante do Cordeiro. E junto d’Ele, são para nós um exemplo e auxílio na fragilidade.

Peregrinos de esperança, vivemos a alegria de celebrar a Cidade Santa, a nossa Mãe, a Jerusalém celeste, onde a Assembleia dos Santos, nossos irmãos, glorifica eternamente o Senhor. Peregrinos da cidade santa, caminhamos para ela, na fé e na alegria, ao vermos glorificados os ilustres filhos da Igreja, exemplo e auxílio para a nossa fragilidade. Não estamos sós, como Povo peregrino. Acompanham-nos, na via da eterna bem-aventurança, homens santos e santas mulheres, que intercedem por nós junto de Deus. Sem estes homens e mulheres, que puseram a sua confiança no Senhor, o Mundo não teria testemunhas desta esperança.

Recebamos do Senhor o dom da esperança de sermos santos.

2024.11.01 – Louro de Carvalho

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