Em
dia de todos os santos e santas de Deus, os crentes em Jesus Cristo deixam-se
eivar da esperança cristã na vida do Mundo que há de vir, mas sem deixarem de
pousar os pés na Terra em que são peregrinos do Infinito. Com efeito, o ser
humano, marcado pelo limite, pelo finito, é peregrino, testemunha e arauto do Infinito.
As primeiras perseguições aos discípulos de Cristo tinham
infligido golpes mortais e cruéis destruições nas ainda jovens comunidades
cristãs. Neste contexto, levantava-se a questão se estas comunidades, acabadas
de fundar, iriam desaparecer. Provavelmente, à mistura com os resistentes, havia
os desanimados, os pusilânimes, que tinham mais amor a esta vida finita do que
à vida imarcescível prometida pelo Senhor da História.
Também hoje, o que vemos são as guerras, com as mortes, com os
desalojados, com os feridos e doentes, com as destruições de património natural
e edificado, a par do crime organizado e do vandalismo motivado por situações de
desprezo humano e por questões ideológicas, assim como as epidemias ou as
degradadas situações de droga, de dependências do jogo, das diversas formas de escravatura
e de violência (doméstica, étnica, de rua, no namoro, etc.), de atropelo aos
direitos humanos, por via da ambição exagerada.
Por isso, tal como nos primeiros tempos do Cristianismo, é
pertinente, hoje, a reflexão sobre as visões do profeta cristão (sobretudo Ap 7,2-4.9-14), que trazem uma
mensagem de esperança na provação. É uma linguagem codificada, que evoca Roma,
perseguidora dos cristãos, sem a nomear, aplicando-lhe o qualificativo de
Babilónia.
A revelação proclamada é a vitória do Cordeiro de Deus, que
tira o pecado do Mundo. Paradoxalmente, o Cordeiro imolado é o Cordeiro da
Páscoa definitiva, o Ressuscitado, Aquele que transformou a via de morte em
caminho de vida para todos aqueles que O seguem (e são numerosos), em particular
pelo martírio. Por isso, doravante participam no triunfo glorioso do Senhor, na
festa que não terá fim.
Na verdade, são a grande multidão incontável dos “que
vieram da grande tribulação, dos que lavaram as suas túnicas e as
branquearam no sangue do Cordeiro”.
Outra
razão para termos a capacidade de aguardar em jubilosa esperança a última vinda
do Senhor é que, pelo admirável amor que o Pai nos consagrou, de facto, “somos
filhos de Deus” (ver 1Jo 3,1-3). E, “se
o Mundo não nos conhece, é porque O não conheceu a Ele”.
É
certo que “ainda não se manifestou o que havemos de ser”. Porém, “sabemos que,
na altura em que se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porque O veremos
tal como Ele é”. E “todo aquele que tem n’Ele esta esperança purifica-se a si
mesmo, para ser puro, como Ele é puro”.
Esta mensagem de esperança responde às nossas interrogações
sobre o destino dos defuntos. Como sabê-lo, se desapareceram dos nossos olhos?
E nós próprios, o que viremos a ser? A resposta é: se Deus, no seu imenso amor,
faz de nós seus filhos, não nos pode abandonar. Ora, em Cristo, vemos o futuro que
nos dá a pertença à família divina: seremos semelhantes a Ele. Portanto, é pertinente
o convite do Senhor: “Vinde a Mim, vós todos os que andais cansados e oprimidos
e Eu vos aliviarei (Mt 11,28).
***
No Evangelho da solenidade (Mt 5,1-12), ressalta o Código das Bem-aventuranças ou da Realização
da Esperança, a felicidade em devir, com parâmetros assentes em critérios
diferentes dos do Mundo:
Depois de dizer quem é Jesus e de definir a sua missão,
Mateus apresenta a concretização dessa missão: com palavras e com gestos, Jesus
propõe aos discípulos e às multidões o Reino.
Uma caraterística marcante do Evangelho de Mateus é a
importância dada aos ditos de Jesus. Ao longo do texto mateano, aparecem cinco
longos discursos, em que se juntam ditos e ensinamentos provavelmente
proferidos por Jesus em várias ocasiões e contextos. O autor do primeiro
Evangelho terá visto, nesses discursos, a nova Lei, a substituir a antiga, dada
ao Povo por meio de Moisés e escrita no Pentateuco (cinco livros).
O primeiro discurso – de que o trecho em causa é a primeira
parte – é conhecido como o “sermão da montanha”. Agrupa um conjunto de palavras
de Jesus, que Mateus colecionou, a fim de proporcionar à sua comunidade uma
série de ensinamentos básicos para a vida cristã, o novo código ético, a nova
Lei, que supera a antiga, que guiava o Povo de Deus. E Mateus situa a
intervenção de Jesus no cimo de um monte, indicação geográfica que nos
transporta à montanha da Lei (Sinai), onde Deus Se revelou e deu ao Povo a Lei.
Agora, é Jesus, que, na montanha, oferece ao novo Povo de Deus a nova Lei, que
guia todos os interessados em aderir ao Reino.
As bem-aventuranças que Mateus põe na boca de Jesus, são diferentes
das de Lucas. Mateus tem nove, enquanto Lucas só tem quatro; e Lucas prossegue
com quatro “maldições”, que estão ausentes do texto mateano. Outra caraterística
da versão de Mateus é a espiritualização (os “pobres” de Lucas são, para Mateus,
os “pobres em espírito”), tal como a aplicação dos ditos originais de Jesus à
vida da comunidade e ao comportamento dos cristãos. Provavelmente, o texto de
Lucas será mais fiel à tradição original, tendo o texto de Mateus sido mais
trabalhado.
As bem-aventuranças são
fórmulas relativamente frequentes na tradição bíblica e judaica. Aparecem, nos
anúncios proféticos de alegria futura, nas ações de graças pela alegria
presente, e nas exortações à vida sábia, refletida e prudente. Contudo, definem
sempre a alegria oferecida por Deus. Devem ser entendidas no contexto da
pregação sobre o Reino. Jesus proclama “bem-aventurados” os que estão numa
situação de debilidade, de pobreza, porque Deus está prestes a instaurar o
Reino e a situação destes pobres vai mudar radicalmente. São felizes, porque,
na fragilidade, na debilidade e na dependência, estão de espírito aberto e de coração
disponível, para acolher a salvação e a libertação que Deus lhes oferece em
Jesus (o Reino).
As quatro primeiras bem-aventuranças de Mateus são conexas
entre si. Dirigem-se aos pobres (as segunda, terceira e quarta são
desenvolvimentos da primeira, que proclama: “felizes os pobres em espírito”).
Saúdam a felicidade dos que se entregam nas mãos de Deus e procuram fazer
sempre a sua vontade; dos que, de modo consciente, deixam de pôr a confiança e
a esperança nos bens, no poder, no êxito, nos homens, para esperar e confiar em
Deus; dos que renunciam ao egoísmo, se despojam de si próprios e estão
disponíveis para Deus e para os outros.
Os pobres em espírito são os que renunciam, livremente, aos
bens, ao orgulho e à autossuficiência, para se colocarem nas mãos de Deus, para
servirem os irmãos e para partilharem tudo com eles. Os mansos não são os
fracos, os que suportam passivamente as injustiças, os que se conformam com a
violência orquestrada pelos poderosos, mas os que recusam a violência, que são
tolerantes e pacíficos, embora sejam vítimas dos abusos e prepotências dos
injustos. A sua atitude pacífica e tolerante torná-los-á membros de pleno
direito do Reino. Os que choram são os que vivem na aflição, na dor, no
sofrimento, provocados pela injustiça, pela miséria, pelo egoísmo, mas a
chegada do Reino faz com que a sua triste situação se mude em consolação e
alegria. E a quarta bem-aventurança proclama felizes “os que têm fome e sede de
justiça”. Esta justiça deve entender-se em sentido bíblico, isto é, da
fidelidade total aos compromissos para com Deus e para com os irmãos. Jesus dá-lhes
a esperança de verem a sede de fidelidade saciada, no Reino que vai chegar.
O segundo grupo de bem-aventuranças está orientado para o comportamento
cristão. Enquanto, no primeiro, se verificam situações, neste, propõem-se atitudes
a assumir pelos discípulos.
Os misericordiosos são os que têm o coração capaz de se compadecer,
de amar sem limites, que se deixam tocar pelos sofrimentos e pelas alegrias dos
outros homens e mulheres, que são capazes de ir ao encontro dos irmãos e de
lhes estender a mão, mesmo quando eles falharam. Os puros de coração são os que
têm coração honesto e leal, que não pactua com a duplicidade e com o engano. Os
que constroem a paz são os que se recusam a aceitar que a violência e a lei do
mais forte rejam a relação humana e os que procuram ser, com o risco da vida,
instrumentos de reconciliação entre os homens. Os perseguidos por causa da
justiça são os que lutam pela instauração do Reino e são desautorizados,
humilhados, agredidos, marginalizados por parte dos que praticam a injustiça,
que fomentam a opressão, que constroem a morte. Jesus garante-lhes que o mal
não os poderá vencer e, que, no final do caminho, os espera o triunfo, a vida
plena.
A última bem-aventurança é uma exortação aos membros da sua
comunidade que têm a experiência da perseguição por causa de Jesus e o convite
a resistirem ao sofrimento e à adversidade. Esta exortação é aplicação prática
da oitava bem-aventurança.
No seu conjunto, as bem-aventuranças deixam uma mensagem de
esperança e de alento para os pobres e débeis. Anunciam que Deus os ama e que
está do lado deles; confirmam que a libertação está a chegar e que a sua
situação vai mudar; asseguram que eles vivem já na dinâmica desse Reino, pelo
que encontrarão a felicidade e a vida plena.
As Bem-aventuranças revelam a realidade misteriosa da vida em
Deus, iniciada no Batismo. Aos olhos do Mundo, o que os servidores de Deus
sofrem são formas de morte: ser pobre, suportar as provas (os que choram) ou as
privações (ter fome e sede) de justiça, ser perseguido, ser partidário da paz,
da reconciliação e da misericórdia, num Mundo de violência e de lucro, tudo
isso aparece como não rentável, votado ao fracasso, consequentemente, à morte.
Ao invés, Cristo proclama felizes todos os amigos que o Mundo despreza e
considera como mortos, consola-os, alimenta-os, chama-os filhos de Deus,
introdu-los no Reino e na Terra Prometida.
A Solenidade de Todos os Santos abre-nos, assim, o espírito e
o coração às consequências da Ressurreição. O que se passou em Jesus
realizou-se nos seus bem-amados, os nossos antepassados na fé, e diz-nos
respeito: sob as folhas mortas, sob a pedra do túmulo, a vida continua,
misteriosa, para se revelar no Grande Dia, o do fim dos tempos. Para Jesus, foi
o terceiro dia; para os seus amigos, isso, na plenitude, será mais tarde, mas
são ressuscitados com Cristo.
Os membros de uma mesma família
têm traços do rosto comuns. Também as pessoas que partilham toda uma vida
juntas acabam por se parecerem. Esta festa de Todos os Santos reúne inúmeros
rostos que trazem em si a imagem e a semelhança de Deus, um rosto de humanidade
transfigurada. Enquanto vivos, os santos não se consideravam como tais. Não
esculpiam a sua efígie num fundo de autossatisfação. E, ao invés do que aparece
nas imagens piedosas e nas biografias embelezadas, não foram perfeitos, nem à
primeira, nem totalmente, nem sem esforço. Tinham fraquezas e defeitos contra
os quais se bateram toda a vida (li, em tempos, o livro “Os defeitos dos Santos”).
Alguns, como S. Agostinho, vieram de longe, transfigurados pelo amor de Deus que
acolheram na sua existência. Quanto mais se aproximaram da luz de Deus, tanto
mais viram e reconheceram as sombras da sua existência.
Peregrinos do quotidiano, a maior parte não realizou feitos
heróicos, nem fez prodígios. Alguns têm à sua conta realizações espetaculares,
no plano humanitário, no plano espiritual ou na História da Igreja. Porém, a
maioria é de santos da simplicidade e do quotidiano. Canonizam-se muito pouco
estas pessoas do quotidiano, de ao pé da porta.
Encontramos em cada um dos santos e das santas um mesmo perfil,
mas não podemos desenhar o seu retrato-robô comum. Por muito frequentar Cristo,
deixaram-se modelar pelos seus traços.
Como Jesus, tiveram de viver, muitas vezes, em sentido contrário às ideias
recebidas e aos comportamentos do seu tempo. Não é evidente e atraente viver as
Bem-aventuranças: ser pobre de coração num Mundo que glorifica o poder e o ter;
ser doce num Mundo duro e violento; ter o coração puro, face à corrupção; fazer
a paz, quando outros declaram a guerra…
Os santos foram pessoas em marcha (na tradução hebraizante de
“bem-aventurado”), pessoas ativas, apaixonadas pelo Evangelho. Foram homens e
mulheres de coragem, capazes de reagir e de afirmar, a todo o custo, o que os
fazia viver. Mostram-nos a via da verdade e da liberdade.
“A Igreja tem necessidade sobretudo de grandes correntes, movimentos e
testemunhos de santidade entre os fiéis, porque é da santidade que nasce toda a
autêntica renovação da Igreja, todo o enriquecimento da fé e do seguimento
cristão, uma reactualização vital e fecunda do cristianismo com as necessidades
dos homens, uma renovada forma de presença no coração da existência humana e da
cultura das nações.” (cf Bento XVI, Discurso
aos Bispos em Fátima, 13 de Maio de 2010).
***
“Peregrinos
de esperança” é o lema do Jubileu do ano 2025. E a Liturgia da Palavra, na Solenidade de
Todos os Santos, mostra-nos a meta gloriosa deste caminho de
esperança, estreito, difícil, em direção contrária aos ventos do Mundo, mas não
na direção do abismo, do nada e do vazio. É um caminho de subida, com saída para a vida, em direção à plena comunhão de vida
e de amor com o Senhor. Percorremo-lo, juntos, com Jesus à frente, não como
corredores solitários, nem às cegas. Somos peregrinos de esperança, guiados e acompanhados, por uma multidão de
testemunhas, de homens santos e de santas mulheres, que souberam
caminhar em contra
corrente, marcar a diferença e suportar a oposição. Agora,
ressuscitados, glorificados, louvam a Deus, diante do Cordeiro. E junto d’Ele,
são para nós um exemplo e auxílio na fragilidade.
Peregrinos de esperança, vivemos a alegria de celebrar a Cidade Santa, a nossa Mãe,
a Jerusalém celeste, onde a Assembleia dos Santos, nossos irmãos, glorifica
eternamente o Senhor. Peregrinos da cidade santa, caminhamos para ela, na fé e na alegria, ao vermos
glorificados os ilustres filhos da Igreja, exemplo e auxílio para a nossa
fragilidade. Não estamos sós, como Povo peregrino. Acompanham-nos, na via da
eterna bem-aventurança, homens santos e santas mulheres, que intercedem por nós
junto de Deus. Sem estes homens e mulheres, que puseram a sua confiança no
Senhor, o Mundo não teria testemunhas desta esperança.
Recebamos do
Senhor o dom da esperança de sermos santos.
2024.11.01 – Louro de Carvalho
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