Jéssica
Sousa, no artigo “‘Bónus’” de mandatos
ao partido vencedor das legislativas é a solução para um governo estável?”, publicado no ECO online, a 1 de novembro, dá-nos conta da sugestão da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO)
no sentido de serem atribuídos ao partido
(ou coligação) que apoia o governo mandatos extra, de modo a obter uma maioria
estável na Assembleia da República (AR), assim como no sentido de os partidos
mais pequenos só poderem ter assento parlamentar, se conseguirem 3% dos votos,
em eleições legislativas.
Deste modo,
na ótica da UTAO, evitar-se-ia o stresse político das negociações para que o
programa de um governo apresentado à AR – no quadro de eleições legislativas
sem a obtenção de maioria absoluta – não fosse rejeitado por uma maioria
parlamentar adversa. O mesmo se diga para a aprovação do Orçamento do Estado
(OE) para cada ano económico.
Se, em eleições legislativas, o partido (ou coligação)
mais votado, embora sem maioria absoluta, ganhasse, automaticamente, um score
de deputados extra, para alcançar uma maioria estável que apoiasse o governo –
nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos políticos com assento
parlamentar e tendo em conta os resultados eleitorais –, esta seria, segundo os
politólogos da nossa praça, uma solução
minimizadora dos cenários de instabilidade política. Contudo, os politólogos
consultados pela UTAO “admitem alguma resistência dos partidos,
especialmente dos mais pequenos”.
A sugestão foi deixada, no âmbito da discussão sobre o
Orçamento do Estado para 2025 (OE 2025) – quando a proposta do governo passou à
fase de debate na especialidade, após ter sido aprovada na generalidade pela AR
– pela UTAO, “unidade especializada que funciona sob orientação da comissão
parlamentar permanente com competência em matéria orçamental e financeira” – a
5.ª Comissão (Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública) –, “prestando-lhe
apoio pela elaboração de estudos e documentos de trabalho técnico sobre a
gestão orçamental e financeira pública”, tal como definido na Lei de Organização
e Funcionamento dos Serviços da Assembleia da República (Lei n.º 77/88, de 1 de
julho, na redação que lhe foi dada pela Lei
n.º 13/2010, de 19 de julho).
Vinda da UTAO, a proposta pretende gerar um equilíbrio
político, económico e também nas finanças públicas. A instabilidade política motiva instabilidade
económica e social, pelo que “a UTAO quer tentar assegurar uma democracia
estável e um governo que tenha o seu tempo de longevidade normal”, de acordo
com as declarações ao ECO de Paula Espírito
Santo, politóloga e investigadora do Instituto de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP)
da Universidade de Lisboa.
Assim, a equipa de economistas, segundo a politóloga e
investigadora, “deixa à consideração pública” a “criação de um mecanismo que reforce
a probabilidade de haver no Parlamento uma maioria de deputados que apoie o governo
em funções”. A proposta tenta combinar o sistema de representação
proporcional com a introdução de uma expressão aritmética que atribua determinado número de mandatos adicionais ao partido (ou
coligação) mais votado nas eleições legislativas, em caso de vitória sem
maioria absoluta de deputados. Para tanto, apela à transposição da metodologia
adotada pela Grécia, a partir de 2023.
Nestes termos, o partido que ganhasse as
eleições legislativas teria atribuídos mandatos adicionais para reforçar a sua
posição parlamentar, garantindo, assim, uma maioria estável e um apoio mais
seguro ao governo.
Nas eleições gregas de 2023, a regra foi: se o partido ou coligação pré-eleitoral tiver tido, pelo menos,
25% dos votos nas urnas, ganha um bónus de 20 lugares e ser-lhe-á
atribuído um lugar adicional por cada 0,5 pontos percentuais que tiver obtido
nas urnas, depois dos 25% dos votos, até perfazer um máximo de 50 mandatos
extra. Na Grécia, ainda há uma outra regra em vigor, há mais tempo: só entram para o Parlamento (composto por 300 deputados) os
partidos que tiverem obtido o mínimo de 3% dos votos nas eleições legislativas.
Em termos práticos e transpondo diretamente a regra
para Portugal, como explica Jéssica Sousa, num cenário em que este sistema
eleitoral vigorasse, a Aliança Democrática (AD), que obteve 28,83%
dos votos e elegeu 78 deputados do Partido Social Democrata (PSD) e dois do partido
do Centro Democrático Social / Partido Popular (CDS/PP), nas últimas eleições
legislativas de 10 de março, teria direito a mais 20 deputados. E,
considerando que a AR é composta por 230 deputados, o acréscimo seria de 27,
perfazendo um total de 105 deputados. Neste
cenário, a proximidade dos 78 deputados do Partido Socialista (PS) deixaria de
existir. E, sendo aplicada a regra dos 3%, como na Grécia, o partido
Pessoas-Animais-Natureza “deixaria de ter representação parlamentar, por
ter conquistado apenas 1,95% dos votos”.
André Azevedo Alves, professor do Instituto de Estudos
Políticos da Universidade Católica Portuguesa (UCP), entende que “o nosso sistema atual com as listas proporcionais por distrito, já
incorpora, implicitamente, um bónus para partidos mais votados, permitindo a
formação de maiorias”. O politólogo explicita que “não se trata de um
bónus explícito como no sistema grego”, mas que “há um conjunto de votos
desperdiçados nos partidos mais pequenos e, em especial nos círculos que elegem
menos deputados”. E, aludindo ao método d’Hondt, sistema
que distribui os assentos parlamentares em proporção ao número de votos obtidos
por cada partido, diz que “o efeito dos votos desperdiçados é, na
prática, um bónus para os partidos maiores”.
Efetivamente, nas eleições de 10 março deste ano de
2024, quase 1,2 milhões de votos não serviram para eleger deputados, saindo
prejudicados deste método de distribuição de assentos parlamentares, sobretudo,
os partidos mais pequenos. Ora, com base no sistema sugerido pela UTAO, o “bónus” deixaria de ser implícito e seria atribuído ao partido
com mais votos, permitindo alcançar uma maioria estável.
***
Permito-me discordar da sugestão, em razão da entidade
de que provém e pela eventual distorção do nosso sistema constitucional.
Não me parece adequado que a UTAO, entidade de
natureza técnica, possa ou deva gerar factos de natureza política. Na verdade,
foi
criada pela Resolução
da Assembleia da República n.º 53/2006,
de 7 de agosto, que previa a sua avaliação ao fim de três anos. A Resolução
da AR n.º 57/2010, de 23 de junho,
tornou-a numa unidade parlamentar permanente, fixou limites mínimo e máximo
para o número de analistas e alargou-lhe as competências, abrangendo todos os
subsetores na monitorização periódica da dívida pública e especificou variáveis
a incluir no acompanhamento da execução orçamental.
Em 2014, as suas competências foram, novamente, reforçadas
pela Resolução
da AR n.º 60/2014, de 30 de junho, que lhe
aditou competências referentes à avaliação e ao acompanhamento de Parcerias
Público-Privadas.
Em
2018, a Resolução da AR n.º 74/2018, de 20
de março, procedeu à 6.ª alteração à Resolução da AR n.º 20/2004, de 16 de
fevereiro, revendo a estrutura e as competências dos serviços da AR, passando a
UTAO a ser uma unidade orgânica integrada na Direção de Apoio Parlamentar
(DAP), embora mantendo o reporte direto à referida comissão parlamentar, sendo
o seu responsável Coordenador do serviço. O leque de competências foi
consolidado.
Os trabalhos técnicos compreendem, nomeadamente:
análise técnica da proposta de lei de OE e suas alterações; avaliação
técnica sobre a Conta Geral do Estado; acompanhamento técnico da
execução orçamental em contabilidade pública e em contabilidade nacional;
análise técnica às revisões do Programa de Estabilidade (PE) ou documento
equivalente de programação orçamental de médio prazo; avaliação e
acompanhamento dos contratos de parceria público-privados, concessão e
reequilíbrio financeiro celebrados por qualquer entidade pública, nomeadamente,
os encargos decorrentes da sua celebração, do processo de negociações e
alterações contratuais e do seu cumprimento; estudo técnico sobre o
impacto orçamental das iniciativas legislativas que o presidente da AR lhe submeta,
por iniciativa própria ou por solicitação da comissão parlamentar competente;
acompanhamento técnico da dívida pública, do endividamento contraído e do
investimento realizado por entidades incluídas no sector das administrações
públicas; e trabalhos que lhe sejam determinados pela predita comissão ou
que a esta sejam submetidos pelo presidente da AR ou por outras comissões
parlamentares. Acrescem as competências atribuídas
à UTAO, nos termos dos n.os 2 a 5 do artigo 75.º-A da Lei de
Enquadramento Orçamental (lei n.º 151/2015, de 11 de setembro, na
redação que lhe foi dada pela Lei n.º 41/2020, de 18 de agosto), a realização
de estudos de previsão de impactos nas contas públicas de propostas de
alteração apresentadas por deputados em sede de discussão do OE, com potencial
impacto na receita ou na despesa, seguindo o procedimento e respeitados os
limites definidos por aquelas normas. (https://www.parlamento.pt/OrcamentoEstado/Paginas/utao-sobre.aspx)
Lidos os normativos mencionados, não parece que a AR
tenha concedido competências políticas à UTAO. Mesmo os pareceres prévios a aprovação
de diplomas legais têm em vista o impacto que possam ter na receita e na despesa,
nunca a alteração do sistema político-constitucional.
Depois, a sugestão distorce o sistema de representação
proporcional e o
método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos
(ver CRP – Constituição da República Portuguesa, artigo 149.º), por círculo eleitoral,
embora se admita que a lei estabeleça um círculo nacional de compensação.
Por outro lado, a CRP, sobretudo,
após a 1.ª Revisão, em 1982, reforçou o pendor parlamentar do sistema, tornando-se
a AR “a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses” (ver CRP,
artigo 147.º). Dantes, havia outros órgãos, como o Conselho da Revolução (CR) e
a assembleia do Movimento das Forças Armadas (MFA). Além disso, a sugestão, se
fosse levada à prática, empobreceria o pluralismo político institucional.
Veja-se o teor do artigo 3.º da CRP: “A República Portuguesa é um Estado de
direito democrático, baseado na soberania popular, no ‘pluralismo de expressão
e organização política democráticas’ [destaquei], no respeito e na garantia de efetivação
dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de
poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o
aprofundamento da democracia participativa.”
Também o artigo 10.º da CRP, n.º 2
estabelece que “os partidos políticos [não se excecionam os pequenos, ressalva
minha] concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular, no
respeito pelos princípios da independência nacional, da unidade do Estado e da
democracia políticos”.
Muitos países da Europa vivem bem
com as maiorias absolutas como com as maiorias relativas. Cabendo aos eleitos
aceitar os resultados eleitorais, no caso de um partido ou coligação não obter a
maioria absoluta dos votos, há que negociar governos de coligação, acordos de incidência
parlamentar ou governar, negociando medida a medida. A negociação implica cedências
e contrapartidas mútuas, mas não é lícito dar conforto a quem não quer negociar
ou a quem não sabe governar.
Aliás, o conforto decorrente da sugestão
da UTAO, estribada em pareceres de politólogos (estranhamente produzidos ante
uma dificuldade da AD, não em outras ocasiões), seria conseguido à custa de
partidos com significativa representação parlamentar. Com efeito, aonde iria a
AD buscar os 27 assentos parlamentares acima referidos? Ao PS, ao Chega, à Iniciativa
Liberal (IL), ao Bloco de Esquerda (BE), ao Livre, ao Partido Comunista Português
(PCP)?
Mal por mal deixem ficar a CRP
como está. Se querem aproveitar os votos que se perdem nos atuais círculos eleitorais,
formem um círculo nacional de compensação e determinem que em cada círculo haja
um mínimo de três deputados a eleger. Dá mais conforto a maioria absoluta, mas corre
um de dois riscos: tornar-se poder absoluto ou levar um “piparote” do chefe de
Estado, com base num escrutínio parcial da opinião pública publicada.
2024.11.02
– Louro de Carvalho
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