quarta-feira, 20 de novembro de 2024

“Dilexit nos” (“amou-nos”), a nova carta-encíclica do Papa Francisco

 

A Santa Sé publicou, a 24 de Outro, a nova carta-encíclica do Papa Francisco, sobre o Coração de Jesus. Sob o título “Dilexit nos”, que significa “Ele amou-nos”, o documento aborda o amor humano e divino de Jesus.

O texto, organizado em 220 númenos, consta de uma pequena introdução (n.º 1), cinco capítulos (do n.º 2 ao n.º 217) e uma pequena conclusão (n.os 218 a 220).

A introdução, que ocupa o n.º 1, reza: “ ‘Amou-nos’, diz São Paulo referindo-se a Cristo (Rm 8,37), para nos ajudar a descobrir que nada ‘será capaz de separar-nos’ desse amor (Rm 8,39). Paulo afirmava-o com firme certeza, porque o próprio Cristo tinha garantido aos seus discípulos: ‘Eu vos amei’ (Jo 15,9.12). Disse também: ‘Chamei-vos amigos’ (Jo 15,15). O seu coração aberto precede-nos e espera-nos incondicionalmente, sem exigir qualquer pré-requisito para nos amar e oferecer a sua amizade: Ele amou-nos primeiro (cf 1Jo 4,10). Graças a Jesus, ‘conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele’.” É a sinalização do tom de todo o documento.

Os capítulos são: I – A importância do coração (n.os 2 a 31); II – Gestos, palavras e amor (n.os 32 a 47); III – Este é o coração que tanto amou (n.os 48 a 91); IV – Amor que dá de beber (n.os 92 a 163); V – Amor por amor (n.os 164 a 217).

A conclusão (n.os 217 a 220) faz a ligação do teor desta encíclica com o da Laudato si’ e com o da Fratelli tutti, pois, bebendo do amor de Cristo, “tornamo-nos capazes de tecer laços fraternos, de reconhecer a dignidade de cada ser humano e de cuidar juntos da nossa casa comum”.

O amor de Cristo liberta-nos da febre de que tudo se compra e se paga, não havendo lugar para o amor gratuito. E a Igreja precisa deste amor, “para não substituir o amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género que acabam por ocupar o lugar do amor gratuito de Deus que liberta, vivifica, alegra o coração e alimenta as comunidades”. Por fim, o Papa deseja que, para todos, do Coração do Senhor Jesus Cristo “brotem rios de água viva para curar as feridas que nos infligem, para reforçar a nossa capacidade de amar e servir, para nos impulsionar a aprender a caminhar juntos em direção a um Mundo justo, solidário e fraterno” – até que celebremos, com alegria, unidos, o banquete do Reino, onde Cristo ressuscitado harmonizará “todas as nossas diferenças com a luz que brota incessantemente do seu Coração aberto”. E exclama: “Bendito seja!”

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O coração é o cerne da pessoa humana e o Mundo perdeu o seu coração. Parece óbvio, mas o Papa sustenta que precisamos de ouvir: neste período da civilizacional, estamos sob séria ameaça de perder o coração ou já o perdemos e precisamos de o recuperar. O coração revela quem somos (n.º 6), pois é “a morada do amor em todas as suas dimensões espirituais, psíquicas e até físicas” (n.º 21), “um núcleo que se esconde por trás de todas as aparências exteriores, mesmo por trás dos pensamentos superficiais que nos podem desviar” (n.º 4). No grego clássico profano, o termo kardía designa a parte mais íntima do ser humano, do animal e da planta. Em Homero, indica o centro corpóreo e a alma, o centro espiritual do ser humano. Na Ilíada, o pensamento e o sentimento, muito próximos um do outro, pertencem ao coração. O coração aparece como o centro do desejo e o lugar onde são forjadas as decisões importantes duma pessoa. Em Platão, o coração assume, de certa forma, uma função “sintetizante” do que é racional e das tendências de cada pessoa, pois tanto o comando das faculdades superiores como as paixões se transmitem através das veias que convergem no coração. Assim, desde a Antiguidade, advertimos a importância de considerar o ser humano não como soma de diferentes capacidades, mas como um complexo anímico-corpóreo com um centro unificador que dá a tudo o que a pessoa experimenta um substrato de sentido e orientação.

As nossas perguntas existenciais mais profundas podem ter resposta numa única e fundamental pergunta: “Eu tenho um coração?” (n.º 23). As questões que nos ocupam profundamente e nos permitem dar sentido à vida são ponderadas e mantidas no coração, tal como Maria que, segundo São Lucas, prezava e ponderava todas as coisas em seu coração (n.º 19).

O coração, além da sede da “profunda emoção” (n. 16), onde descobrimos quem somos, é também o lugar onde nasce o amor: o amor incondicional de Deus por nós, de que flui a nossa capacidade de amar os outros. No nosso coração, descobrimos o fogo ardente dessa capacidade, permitindo-nos “tornar-nos, de forma completa e luminosa, as pessoas que devemos ser, pois todo o ser humano é criado, acima de tudo, para o amor: fomos feitos para amar e ser amados” (n.º 21). E é nesta descoberta do amor de Deus por nós, na profundidade e unidade do nosso ser, que aprendemos a amar os outros, que é a essência do seguimento de Cristo. O conhecimento de que Jesus morreu por nós “torna-se afeição, amor” (n.º 27). E Francisco está convicto de que este é o coração que precisamos de recuperar, se quisermos curar o nosso próprio coração. “O amor de Cristo pode dar um coração ao nosso Mundo e reavivar o amor onde quer que pensemos que a capacidade de amar foi definitivamente perdida” (n.º 218).

A importância do afeto, não apenas do intelecto. Na abertura da encíclica, Francisco põe em contraste a complexa riqueza do coração com “o domínio mais facilmente controlável da inteligência e da vontade”. Embora muitos possam retirar-se para espaços aparentemente mais seguros, isso resulta em “atrofiamento da ideia de um centro pessoal, no qual o amor, no fim, é a única realidade que pode unificar todas as outras” (n.º 10).

Francisco critica a mentalidade excessivamente racionalista ou tecnocrática, atitude que tem sido marca do seu pontificado. E adverte que os nossos pensamentos e vontades, distintos dos nossos corações, são “facilmente previsíveis e, portanto, capazes de serem manipulados”, inclusive por algoritmos digitais que nos alimentam com informações personalizadas (n.º 14).

Para corrigir a dependência excessiva da clareza conceitual que pode parecer transmitir a verdade sem resultar em conversão profunda, ou transformar-se num “moralismo autossuficiente” (n.º 27), o Papa vinca a atenção de Santo Inácio de Loyola à “afeição”, dizendo que a reforma da vida não se estriba em “conceitos intelectuais que precisam de ser colocados em prática na vida diária, como se a afetividade e a prática fossem meramente efeitos de – e dependentes de – dados do conhecimento” (n.º 24). O capítulo 2 é lido quase como um minirretiro, no estilo inaciano, visando a conversão e a ordenação da afetividade, fazendo eco do afloramento de Francisco, em Fratelli Tutti, à reflexão sobre a parábola do Bom Samaritano como princípio organizador duma encíclica. Citando 38 passagens bíblicas nos 16 parágrafos do capítulo, o Papa convida-nos a experimentar o desejo e o cuidado do coração de Jesus, perguntando, em referência ao encontro de Jesus com o jovem rico em Mc 10,21: “Consegues imaginar o momento, o encontro entre os seus olhos e os de Jesus?” (n.º 39).

Mais do que reformar as estruturas a Igreja precisa de aprofundar o amor. Desde o início do seu pontificado, o Santo Padre tem alertado contra a tendência de a Igreja voltar o seu olhar para si mesma ou de cair no “mundanismo espiritual” e na autorreferência. Em “Dilexit nos”, continua o tema, dizendo que “o coração de Cristo também nos liberta de outro tipo de dualismo encontrado em comunidades e em pastores excessivamente envolvidos em atividades externas, em reformas estruturais que pouco evangélicas, em planos de reorganização obsessivos, em projetos mundanos, em modos seculares de pensar e em programas obrigatórios” (n.º 88). Vindo isto numa encíclica publicada durante a segunda sessão do Sínodo da sinodalidade, em que tópicos associados à mudança estrutural e organizacional foram transferidos para grupos de estudo, tal crítica impressiona. A esperança de Francisco é que, ao refletir sobre o coração de Cristo, “síntese encarnada do Evangelho”, a Igreja seja movida menos pela análise crítica de questões teológicas e sociais, mas muito mais por um poderoso amor afetivo por Cristo (n.º 90).

Francisco parece implorar aos que se deixam levar pelos próprios planos e visões para a Igreja, seja por meio de rigorosa adesão às estruturas atuais, seja por uma reforma radical delas, que se reorientem para a necessidade dum amor reavivado. Em vez de estruturas e preocupações ultrapassadas, de apego excessivo às próprias ideias e opiniões e de fanatismo em qualquer número de formas, a Igreja precisa “do amor gratuito de Deus que liberta, anima, traz alegria ao coração e constrói comunidades” (n.º 219).

A importância da piedade popular. Francisco exprime a sua consciência de que o Sagrado Coração e imagens devocionais conexas podem ser descartadas como kitsch, mas adverte contra o descarte da devoção como um todo. Certas representações podem, “parecer-nos de mau gosto e não particularmente propícias à afeição ou à oração, mas isso é de pouca importância, pois são apenas convites à oração” (n.º 57). Ele leva um passo adiante, criticando, como frequentemente faz, quem descarta tais expressões de piedade popular, como sendo demasiado emocionais ou carentes de profundidade. E escreve: “Pio XII descreveu como ‘falso misticismo’ a atitude elitista dos grupos que viam Deus como tão sublime, separado e distante que julgavam expressões afetivas de piedade popular como perigosas e necessitadas de supervisão eclesiástica” (n.º 86).

Falando da piedosa tradição dos católicos que procuram consolar Jesus no seu sofrimento, pede “que ninguém menospreze a fervorosa devoção do santo povo fiel de Deus”, acrescentando: “Encorajo todos a considerarem se pode haver maior razoabilidade, verdade e sabedoria em certas demonstrações de amor no consolo ao Senhor do que nos atos de amor frios, distantes, calculados e nominais praticados pelos que dizem ter fé mais reflexiva, sofisticada e madura” (n.º 160).

O Sagrado Coração pede reparação em ações e palavras de amor, não ao choro de autopiedade. Uma parte da devoção ao Sagrado Coração envolve “reparações” ao coração de Jesus pelos próprios pecados e pelos pecados do Mundo, que trouxeram e continuam a trazer-lhe tristeza. Porém, o foco excessivo na reparação pode levantar preocupações sobre duvidar da suficiência da redenção de Cristo, mas Francisco acredita que o impulso devocional para consolar o coração de Jesus é puro. “Pode parecer a alguns que este aspeto da devoção ao Sagrado Coração carece de base teológica firme, mas o coração tem as suas razões. Aqui o sensus fidelium percebe algo misterioso, além da lógica humana, e percebe que a paixão de Cristo não é mero evento do passado, mas “um evento do qual podemos compartilhar pela fé” (n.º 154).

Enfim, Francisco encoraja um enquadramento adequado das reparações. Convoca Santa Teresa de Lisieux para fornecer um contexto histórico e espiritual. “Teresa estava ciente de que, em certos setores, se havia desenvolvido uma forma extrema de reparação baseada na disposição de se oferecer em sacrifício pelos outros e de se tornar, em certo sentido, um ‘para-raios’ para os castigos da justiça divina” (n.º 195). Tanto Teresa como o Papa têm visão sombria dessa forma de devoção. Uma ênfase tão grande na justiça de Deus pode levar à noção de que “o sacrifício de Cristo foi, de alguma forma, incompleto ou apenas parcialmente eficaz, ou que a sua misericórdia não foi suficientemente poderosa” (n.º 195).

Somente Jesus salva e redime. Contudo, Francisco propõe uma estrutura de reparações que vê como “participação livremente aceite no seu amor redentor”. Isso faz-se amando o nosso próximo.

“Agradaria ao coração que tanto nos amou que nos deleitássemos numa experiência religiosa privada ignorando as suas implicações para a sociedade em que vivemos?” (n.º 205). O Papa conclui que não, pois somos chamados a reconciliar-nos com amigos, com familiares e com estranhos a quem prejudicamos e que nos prejudicaram. Somos chamados a construir sociedades de justiça, de paz e de fraternidade. Mas essa ação é animada por um amor intenso e também está conectada, de acordo com Francisco, tanto com a evangelização, seu foco na Evangelii Gaudium como com as suas encíclicas sociais Laudato si' e Fratelli Tutti (n.º 217). “Ao contemplarmos o Sagrado Coração, a missão torna-se uma questão de amor”, pois “o maior perigo na missão é que, no meio de todas as coisas que dizemos e fazemos, deixamos de promover um encontro alegre com o amor de Cristo que nos abraça e nos salva” (n.º 208).

A compunção pelos pecados que trespassaram o Coração de Cristo deve levar-nos à tristeza que nos mova, não à autopiedade ou ao perfecionismo, mas a amor maior a Deus e ao próximo.

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Em suma, uma encíclica que reflete o ser e o estilo do Papa argentino!

2024.11.19 – Louro de Carvalho

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