terça-feira, 5 de novembro de 2024

Violência contra as mulheres poderá tornar-se “crime europeu”

De acordo com Paula Soler & Marta Iraola Iribarren, em artigo intitulado “Novo comissário europeu da Justiça está disposto a tornar a violência contra as mulheres um “crime europeu’”, publicado pela Euronews, a 5 de novembro, Michael McGrath, comissário liberal irlandês indigitado para a Democracia, a Justiça e o Estado de Direito, na sua audição de confirmação no Parlamento Europeu (PE), “comprometeu-se a reforçar a proteção das mulheres e raparigas contra a violência baseada no género”, em toda a União Europeia (UE), e “está aberto à adoção de legislação comum para a criminalizar”.

A violação é um “crime abominável” e, segundo o comissário, a UE ainda tem trabalho a fazer no combate à violência contra as mulheres e as raparigas.

A violência contra as mulheres e as raparigas é uma das violações dos direitos humanos mais comuns e sistemáticas a nível mundial. Os países da UE não são exceção. Uma em cada três mulheres já foi vítima de violência física ou sexual, perpetrada, maioritariamente, por parceiros íntimos. E, durante a pandemia de covid-19, registou-se um aumento significativo da violência física e emocional contra as mulheres. Segundo as informações disponíveis, em alguns países houve cinco vezes mais chamadas telefónicas para as linhas de apoio à violência doméstica.

A violência online está, igualmente, a aumentar, e atinge, em especial, as mulheres jovens e as mulheres com exposição pública, como as jornalistas e as mulheres na política. As mulheres também são vítimas de violência no trabalho: cerca de um terço das mulheres vítimas de assédio sexual, na UE, sofreu este assédio no local de trabalho.

De acordo com o site do Conselho Europeu (https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/eu-measures-end-violence-against-women/), a UE e os seus estados-membros estão a trabalhar em várias frentes, para pôr termo à violência de género, para proteger as vítimas deste crime hediondo e para punir os infratores.

Até 2022, não existia legislação específica da UE relativa à violência contra as mulheres, nem à violência doméstica. No entanto, a questão era já abrangida por algumas diretivas e regulamentos da UE, em especial, nos domínios da cooperação judiciária, em matéria penal, da igualdade entre homens e mulheres e da política de asilo.

Por exemplo, a diretiva da UE que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção de todas as vítimas de todos os crimes assegura que os direitos das vítimas de violência de género sejam garantidos em todas as fases do processo penal.

Entretanto, a 8 de março de 2022, a Comissão Europeia propôs uma nova diretiva para o combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica, com vista a assegurar, em toda a UE, um nível mínimo de proteção contra este tipo de violência. As novas regras criminalizam uma série de infrações, incluindo a mutilação genital feminina e a ciberviolência.

A ciberviolência refere-se à partilha não consentida de imagens íntimas, à ciberperseguição, ao ciberassédio e ao ciberincitamento ao ódio ou à violência.

A diretiva assegurará igualmente que as vítimas têm acesso à justiça, o direito de reclamar uma indemnização e o acesso gratuito a linhas telefónicas de apoio e a centros de ajuda de emergência para vítimas de violação.

A 9 de junho de 2023, o Conselho Europeu definiu a sua posição sobre a proposta de diretiva para prevenir e combater a violência contra as mulheres e a violência doméstica.

A nova diretiva criminaliza os seguintes atos, em toda a UE: a mutilação genital feminina; o casamento forçado; a ciberperseguição; o ciberassédio; a partilha não consensual de imagens íntimas; e o incitamento à violência e ao ódio online.

A 6 de fevereiro de 2024, o Conselho Europeu e o PE chegaram a acordo sobre o primeiro ato legislativo da UE, em matéria de combate à violência contra as mulheres.

Em 7 de maio de 2024, o Conselho Europeu adotou o ato legislativo que harmonizará as sanções e os prazos de prescrição aplicáveis a essas infrações. Assim, por exemplo, a mutilação genital feminina deve agora ser punível em todos os estados-membros com uma pena máxima de, pelo menos, cinco anos de prisão.

Além disso, a UE está alinhada com os acordos internacionais. Desde logo, a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica – “Convenção de Istambul” – é a referência para as normas internacionais neste domínio. Com efeito, é o primeiro documento internacional que contém uma definição de género; criminaliza infrações como a mutilação genital feminina, o casamento forçado, a perseguição, o aborto forçado e a esterilização forçada; reconhece que a violência contra as mulheres constitui uma violação dos direitos humanos e uma forma de discriminação; e responsabiliza os Estados, se estes não responderem adequadamente a esta forma de violência.

A Convenção estabelece medidas jurídicas e estratégicas abrangentes para prevenir esse tipo de violência e para proteger as vítimas e para lhes prestar assistência, incluindo medidas relativas à recolha de dados, à sensibilização, à criminalização desse tipo de violência e à prestação de serviços de apoio. E aborda a dimensão da violência de género, em matéria de asilo e de migração.

A Convenção de Istambul entrou em vigor, em abril de 2014, e foi assinada pela UE, em 13 de junho de 2017. Em 21 de fevereiro de 2023, o Conselho Europeu solicitou a aprovação do PE para adotar a decisão relativa à celebração da Convenção pela UE. E, em 1 de junho de 2023, o Conselho Europeu adotou, em definitivo, a decisão relativa à adesão da UE à Convenção.

O direito das mulheres a viver sem violência é igualmente defendido por acordos internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979) e a Declaração da ONU [Organização das Nações Unidas] sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (1993).

Tendo em conta a força destes normativos e as suas insuficiências, o candidato liberal a comissário afirmou a importância de haver “uniformidade e coerência entre os estados-membros, em termos de trabalho nesta matéria”, e prometeu que, se forem necessárias mais medidas, após a implementação da primeira lei de combate à violência contra as mulheres, irá considerar uma proposta para acrescentar a violência baseada no género à lista de crimes europeus.

Efetivamente, os crimes europeus ou crimes da UE são as atividades criminosas com impacto em vários estados-membros ou que representam ameaça para os interesses financeiros e económicos da União, como o terrorismo, o tráfico de seres humanos ou o branqueamento de capitais.

No início deste ano, a UE aprovou uma diretiva para combater a violência contra as mulheres e a violência doméstica, que incluía novas penas para quem cometesse crimes contra figuras públicas, jornalistas e ativistas dos direitos humanos, bem como novas regras para proibir o casamento forçado e a mutilação genital feminina. Porém, as novas regras da UE, que os estados-membros devem implementar até 2027, omitiram a violação – definida como sexo sem consentimento – como um crime europeu, devido à falta de consenso entre os estados-membros.

Durante a audição, a eurodeputada Assita Kanko, do partido de extrema-direita Conservadores e Reformistas Europeus (Bélgica/CER), questionou McGrath sobre os seus planos para garantir que a violação fosse criminalizada, de forma igual, em todo o bloco europeu.

O candidato, que deve receber luz verde dos eurodeputados, disse que “a Comissão pode encorajar os estados-membros a introduzir o conceito de consentimento, quando transpuserem a diretiva para a legislação nacional”. As definições de violação baseadas no consentimento existem, atualmente, em países como a Bélgica, a Grécia, a Irlanda, a Espanha e a Suécia.

Como se afirmou acima, a Comissão Europeia propôs, pela primeira vez, a diretiva em 8 de março de 2022 para unificar as regras em todo o bloco que criminalizam uma série de crimes, incluindo a violência cibernética, a mutilação genital feminina e a violação. Esta última levou, rapidamente, a um confronto entre o PE e o Conselho Europeu. Enquanto os eurodeputados concordavam com a necessidade e com a possibilidade de incluir a criminalização do sexo não consentido na diretiva, as capitais da UE estavam divididas em relação a um parecer jurídico do Conselho Europeu, que argumentava que esta matéria não era da competência jurídica do bloco.

Apesar de meses de intensas negociações, o Conselho não tinha a maioria necessária para a proposta e, com base no facto de uma lei ser melhor do que nenhuma, o PE acabou por aceitar. “Ao avançarmos, recordemos este momento como um primeiro passo histórico para reforçar os direitos das mulheres e iluminar o caminho para um futuro em que todas as mulheres possam viver livres do medo e da opressão”, afirmou Evin Incir (Suécia/S&D), uma das principais eurodeputadas a trabalhar no dossiê, depois de o PE ter aprovado as novas regras.

O PE e o Conselho Europeu concordaram que a Comissão Europeia deve apresentar um relatório de cinco em cinco anos, sobre a situação das mulheres e das raparigas, na UE, e sobre a necessidade de rever a diretiva.

Duas em cada dez mulheres, na UE, foram vítimas de violência física e/ou sexual por parte de um parceiro ou amigo. A violência baseada no género está também associada a um custo social anual estimado em 290 milhões de euros a nível da UE.

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Também a 2 de setembro, Paula Soler, com o contributo de Jack Schickler em artigo intitulado “Como pode o orçamento da UE ajudar os direitos das mulheres?”, publicado pela Euronews, referia que 11% das despesas da UE contribuíram, em 2023, para promover a igualdade de género.

O orçamento da UE ascende a cerca de 140 mil milhões de euros por ano. Ora, a despesa pública pode perpetuar, reduzir ou aumentar as desigualdades entre homens e mulheres. Com efeito, segundo um porta-voz da Comissão Europeia, a “orçamentação de género” visa “promover a equidade nas despesas, de modo a que o dinheiro dos contribuintes possa identificar e eliminar as barreiras que afetam negativamente as mulheres e as raparigas na UE”.

O orçamento da UE – que investe fundos significativos na agricultura, nas infraestruturas e na ciência – deverá ser revisto a partir de junho de 2025, parecendo os planos para os próximos sete anos suscetíveis de “reforçar a integração do género”.

A alteração ao Regulamento Financeiro da União Europeia exigirá que “os programas e atividades sejam implementados, tendo em conta o princípio da igualdade de género, e que todos os dados dos indicadores de desempenho recolhidos para os programas financeiros sejam desagregados por género, quando apropriado”. E esta abordagem deverá merecer o beneplácito do PE.

Os especialistas confirmam que as despesas da UE podem desempenhar um papel importante na promoção da igualdade. “Ao ter em conta o impacto das políticas fiscais no género, o orçamento sensível ao género pode corrigir desequilíbrios, como a desigualdade salarial, a sub-representação em cargos de decisão e o acesso limitado a serviços como os cuidados de saúde e a educação”, afirmou Mirta Baselovic, porta-voz do Lobby Europeu das Mulheres (LEM).

Por exemplo, um orçamento sensível ao género terá em conta aspetos como o trabalho de assistência não remunerado, o que quatro em cada cinco mulheres fazem diariamente na UE, em comparação com menos de metade dos homens. Isso afeta o emprego formal das mulheres no mercado de trabalho, as taxas de desemprego e o desempenho macroeconómico global. Ora, com a próxima Comissão Europeia a focar-se no reforço da competitividade, os peritos fazem questão de estabelecer a ligação com políticas económicas sólidas. “A orçamentação baseada no género é uma boa orçamentação. Faz sentido do ponto de vista económico e é uma ferramenta para garantir a igualdade de género a longo prazo”, sustenta Helena Morais, investigadora do Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE), vincando que a igualdade de género pode ajudar a aumentar o crescimento per capita até 9,6% e criar até 10,5 milhões de empregos adicionais, até 2050.

Há também um argumento jurídico: a UE é obrigada pelos tratados fundadores a eliminar as desigualdades, também as de género, em todos os domínios, incluindo através do financiamento.

O atual quadro orçamental, que se estende de 2021 a 2027, foi concebido para ser mais sensível a esta questão, mas a implementação plena da orçamentação com base no género em todos os instrumentos financeiros da UE é ainda “um trabalho em curso”, lamentou Baselovic.

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Um orçamento que atenda à igualdade de género tem de providenciar a que as vítimas da desigualdade criminosa por questões de género, nomeadamente, a violência contra as mulheres e as raparigas, sejam acolhidas, reparadas e integradas. Ora, a segurança das mesmas, o apoio jurídico, judiciário e económico custa dinheiro, mas o orçamento da UE tem de prover às necessidades de quem precisa.

2024.11.05 – Louro de Carvalho

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