domingo, 10 de novembro de 2024

O verdadeiro culto, o culto do coração, o culto que agrada a Deus

 
Em vez da hipocrisia e da jactância, é preciso oferecer a Deus o culto do coração, o culto da sinceridade, mostrando-nos como somos, sem a camada de cera que pretende larvar os nossos erros e defeitos.   
Assim a liturgia do 32.º domingo do Tempo Comum no Ano B fala-nos do verdadeiro culto, do que agrada a Deus. Mais do que rituais litúrgicos solenes e majestosos, Deus espera a permanente atitude de entrega nas suas mãos, de disponibilidade para o seu desígnio, de escuta atenta das suas indicações, de generosidade, de partilha, de solidariedade para com os irmãos.
primeira leitura (1Rs 17,10-16) dá-nos o exemplo da viúva pobre de Sarepta que, apesar da pobreza e da necessidade, ouviu o apelo de Deus e repartiu os poucos alimentos que lhe restavam com o profeta. A história dessa mulher garante-nos que a generosidade, a partilha e a solidariedade não empobrecem, mas geram vida abundante.
Encontram-se, de forma intermitente, nos Livros dos Reis, tradições ligadas à vida e à ação do profeta Elias, figura fundamental do profetismo bíblico.
Elias (cujo nome significa “o meu Deus é o Senhor” – o que, por si só, constitui um programa de vida) atua no Reino do Norte (Israel) no século IX a.C., quando a fé javista é posta em causa pela preponderância dos deuses estrangeiros (especialmente Baal) na cultura religiosa de Israel. Os reis de Israel, apostados em promover o intercâmbio cultural e comercial com as nações da zona, facilitaram a entrada de outros deuses no país, o que não foi aceite pelos círculos religiosos de Israel. E Elias, dando voz aos “fiéis a Javé” que contestam a política religiosa dos reis de Israel, assume-se como o grande defensor da fidelidade a Javé.
Chegado a Sarepta, dirige-se, por ordem de Deus, a casa de uma viúva que residia na cidade, a pedir-lhe água, para beber, e um pedaço de pão, para comer. Porém, a viúva – que, vivendo de esmolas, estava desprovida de quaisquer meios de subsistência, devido ao tempo de seca extrema – só tinha em casa um punhado de farinha e um pouco de azeite. Preparava-se, quando Elias a abordou, para comer com o filho esses parcos alimentos, para depois se deitar e esperar a morte. Porém, o profeta não desiste. Pede-lhe que, antes de preparar a comida que tem em casa para ela e para o filho, lhe traga um pequeno pão, feito com a farinha que resta, e garante-lhe, em nome de Deus, que a farinha não se acabará, nem o azeite faltará, até que a chuva volte a cair sobre a terra. E, por ação de Deus, durante todo o tempo que Elias permaneceu em casa da viúva, nem a farinha se acabou na panela, nem o azeite faltou na almotolia.
É uma expressiva história, de cariz popular, que serviu aos autores deuteronomistas para comporem importantes ensinamentos catequéticos. Antes de mais, garante aos Israelitas, tentados pela adesão a Baal, que o trigo, o azeite e todos os outros alimentos que vêm da terra e que servem de alimento aos homens são dom de Javé, não de Baal. Javé, o Deus de Israel, é infinitamente mais poderoso do que Baal, pois o seu poder atua até em casa de Baal e nos súbditos de Baal (o deus mais popular entre as gentes da Fenícia, a região onde se situava Sarepta). E os catequistas de Israel pretendem chamar a atenção para a predileção de Deus pelos fracos, pelos pequenos, pelos pobres, pelos desprezados. No caso concreto, os beneficiários da ação de Deus são a viúva e o órfão, exemplos bíblicos dos débeis, dos desfavorecidos, dos sem vez e sem voz, dos que não têm quem os defenda e salve. Deus está ao lado desses, manifestando-lhes a sua misericórdia e o seu cuidado de Pai e oferecendo-lhes a sua salvação.
Depois, os catequistas de Israel procuram mostrar que a partilha não empobrece, nem prejudica. O pão e o azeite que a mulher partilha com o profeta multiplicam-se durante todo o tempo da carestia. Quando alguém é capaz de sair do egoísmo e se torna disponível para partilhar com os irmãos os dons recebidos de Deus, esses dons chegam para todos e sobram. A generosidade, a partilha e a solidariedade são sempre geradoras de vida e vida em abundância.
Finalmente, os catequistas de Israel garantem, com esta saga “de salvação” que beneficia uma mulher fenícia, que a graça de Deus é universal e se destina a todos os povos, sem distinção.
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Evangelho (Mc 12,38-44) convida-nos a ver, pelos olhos de Jesus, duas formas diferentes de prestar culto a Deus. Os escribas são homens-modelo da religião solene e formal, mas vazia, hipócrita, teatral, fomentadora da exploração dos mais pobres, usada para fins egoístas de promoção pessoal. Ao invés, uma viúva, pobre e humilde, tem um coração generoso, confia plenamente em Deus e aceita viver num despojamento total de si própria, para dar tudo a Deus. E é ela que Jesus propõe aos discípulos, que estão com Ele no átrio do templo, como modelo do culto que devem prestar a Deus.
Jesus entrara em Jerusalém, havia três dias. No final de cada dia saía da cidade e ia até Betânia, aldeia situada no lado oriental do Monte das Oliveiras, onde passava a noite. Porém, todas as manhãs, descia o monte, acompanhado dos discípulos, passava pelo vale do Cedron, reentrava em Jerusalém e dirigia-se ao Templo. Aí, nos átrios do templo, ensinava, conversava, respondia a perguntas, discutia com todos os que vinham ao seu encontro.
Num primeiro momento, Jesus faz incidir a atenção dos discípulos sobre os numerosos escribas que circulavam pelo espaço do templo. Geralmente do partido dos fariseus, os escribas eram os especialistas da Lei (escrita e oral), estudavam e memorizavam as Escrituras e ensinavam aos seus discípulos as regras – “halakot” – que deviam dirigir cada passo da vida dos fiéis israelitas. Eram eles que julgavam, nos tribunais religiosos, os acusados de não cumprirem a Lei. O Povo estimava-os, admirava-os, adulava-os, tinha-os em alto conceito e respeitava o que eles diziam.
Todavia, Jesus tinha opinião diferente. O olhar de Jesus não se detinha nas aparências, mas chegava à verdade que existe no coração de cada pessoa. Criticava, antes de mais, o exibicionismo dos escribas, que gostavam de usar roupas que os distinguissem e que revelassem, aos olhos do povo, o seu alto estatuto religioso e social. Criavam à sua volta uma aura de importância, que só revelava vaidade. Jesus também não apreciava a apetência dos escribas pelos lugares de honra, em ambientes religiosos (como as sinagogas) ou em ambientes civis (como os banquetes, onde o lugar definia o estatuto do convidado). Para eles, era crucial verem reconhecida a sua categoria e a importância. Jesus criticava-os também, por se aproveitarem da boa-fé das pessoas para as explorarem. Indignava-se, especialmente, quando os escribas, aproveitando-se da sua posição proeminente e da confiança que inspiravam, enquanto intérpretes autorizados da Lei de Deus, exploravam os pobres e os que especialmente vulneráveis. Com efeito, extorquiam esmolas e outros donativos, faziam-se pagar bem pelos seus serviços, exploravam e roubavam as viúvas que lhes confiavam a administração dos seus bens. Finalmente, Jesus criticava-os por se exibirem em solenes práticas religiosas (faziam “longas orações”), que não resultavam de piedade sincera, mas que se destinavam a vender a imagem de proximidade com Deus, que, alegadamente, os ajudava a imporem-se às pessoas simples do Povo.
Os escribas corporizam uma religião hipócrita, mentirosa, interesseira, vazia de conteúdos, que não aproximava o homem de Deus, nem mudava os corações. Eram o rosto de religião que usava Deus e a santidade de Deus para satisfazer os interesses egoístas da classe que estava muito afastada de Deus. Deus não podia aprovar essa religião de fachada. Ao exortar os discípulos a que se acautelassem dos escribas, Jesus deixa claro que esse não é o comportamento que agrada a Deus, não é essa a religião que Deus espera dos seus filhos. Em absoluto contraste com o quadro dos escribas, Jesus aponta aos discípulos a figura da mulher que se aproxima de um dos 13 recipientes situados no átrio do Templo, onde se depositavam as ofertas para o tesouro do santuário. Não sabemos o nome a mulher, nem conhecemos o seu rosto; sabemos que era viúva e pobre. A mulher deposita duas simples moedas (dois “leptá”, diz o texto grego; o “leptá” era uma moeda de cobre, a mais pequena e insignificante das moedas judaicas). Contudo, aquela quantia insignificante era tudo o que a mulher possuía, que é discreta e não dá nas vistas. A sua oferta humilde passa despercebida a quase todos. Porém, Jesus – que lê os factos com os olhos de Deus e vê além das aparências – percebe, nas duas insignificantes moedas oferecidas, a marca do dom total, do completo despojamento, da entrega radical e sem medida.
Dantes, enquanto caminhava para Jerusalém, Jesus encontrara um homem rico interessado em alcançar a vida eterna e que cumpria todos os mandamentos, mas que não quis vender os seus bens, repartir o seu dinheiro com os pobres e tornar-se discípulo; agora, Jesus tem à sua frente a viúva pobre, sem meios de subsistência, que, sem ninguém lhe pedir nada, dá “tudo o que tem”. Não dá o que tem a mais, o supérfluo; dá aquilo de que necessita para viver. Fica sem nada. Com o seu dom, a mulher manifesta a generosidade, o desprendimento e a confiança em Deus. O dom total da viúva anuncia, de alguma forma, o dom total que Jesus se prepara para fazer da sua vida.
O gesto desta mulher tem a marca da religião autêntica.
O encontro com Deus, o culto que Deus quer passa por gestos simples e humildes, que talvez ninguém note, mas que são sinceros, verdadeiros, expressando a entrega generosa e o compromisso total. O verdadeiro crente não é o que cultiva gestos teatrais, que impressionam as multidões e que são aplaudidos pelos homens; é o que se despoja de tudo, prescinde dos seus interesses e projetos pessoais, para se entregar, completa e gratuitamente, nas mãos de Deus, com humildade, generosidade, total confiança, amor verdadeiro. É este o culto verdadeiro que se deve prestar a Deus.
Disse o Papa Francisco, antes da recitação do Angelus, com os peregrinos reunidos na Praça de São Pedro, em Roma, que este passo evangélico nos fala de Jesus, “que, no templo de Jerusalém, denuncia a atitude hipócrita de alguns escribas perante o povo”. A estes foi confiado papel importante na comunidade de Israel: “liam, transcreviam e interpretavam as Escrituras”, pelo que “eram tidos em alta estima e as pessoas lhes prestavam reverência”.
Porém, o seu comportamento não correspondia ao que ensinavam. Não eram consistentes. Alguns, graças ao prestígio e ao poder de que gozavam, desprezavam os outros – ora, é muito mau, desprezar o outro –, faziam pose e, escondendo-se atrás da fachada da respeitabilidade e do legalismo, “arrogavam-se para si mesmos privilégios e até chegaram ao ponto de cometer roubos, em detrimento dos mais fracos, como as viúvas”. E, “em vez de usarem o papel que lhes foi atribuído para servir os outros, transformaram-no em instrumento de arrogância e manipulação”, diz o Pontífice, recordando: “Aconteceu que até a oração, para eles, corria o risco de não ser mais o momento de encontro com o Senhor, mas uma oportunidade de ostentação de respeitabilidade e falsa piedade, útil para atrair a atenção das pessoas e obter consensos.”
Era a aparência de bondade a ocultar o falso perfil do escriba zeloso!
E Francisco faz a aproximação deste caso à oração do publicano e do fariseu (cf Lc 18,9-14), para vincar: “Eles – não todos – comportavam-se como corruptos, alimentando um sistema social e religioso em que era normal tirar vantagem dos outros, especialmente dos mais indefesos, cometendo injustiças e garantindo a impunidade.”
Sendo assim, no dizer do Papa, Jesus recomenda que fiquemos longe dessas pessoas, que tenhamos cuidado” e não as imitemos. Com efeito, com a sua palavra e o seu exemplo, Jesus ensina coisas diferentes sobre a autoridade. Fala dela em termos de abnegação e de serviço humilde, de ternura materna e paterna para com as pessoas, especialmente, para com os mais necessitados. “Convida os ‘afetados’ a olharem para os outros, a partir da sua própria posição de poder, não para os humilhar, mas para os elevar, dando-lhes esperança e ajuda”, sublinha.
Então, cada um pode interrogar-se sobre como se comporta nas suas áreas de responsabilidade; se age com humildade ou se se orgulha da sua posição; se é generoso e respeitoso com as pessoas ou se as trata de forma rude e autoritária; e se, com os mais frágeis, está perto deles, e sabe abaixar-se para os ajudar a levantarem-se.
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segunda leitura (Heb 9,24-28) oferece-nos o exemplo de Cristo, o sumo-sacerdote perfeito. Fiel ao desígnio do Pai, deu o que tinha de mais precioso: a própria vida. Mostrou-nos, com o seu sacrifício, qual é o dom perfeito que Deus quer e espera de cada um dos seus filhos: a entrega de nós próprios para que se concretize o seu projeto para o Mundo e para o homem.
No final da sua caminhada terrena com os homens, Cristo, o sacerdote perfeito, entrou no verdadeiro santuário, o céu – a realidade de Deus, a habitação de Deus. Vivendo na intimidade do Pai, em comunhão com o Pai, intercede continuamente pelos homens e dispõe o coração do Pai em favor dos homens. O sumo-sacerdote da antiga Aliança entrava no santuário todos os anos (no Dia da Expiação – o “Yom Kippur” – o único dia do ano em que o sumo-sacerdote entrava no “Santo dos Santos” do Templo de Jerusalém, para aspergir o “propiciatório” com o sangue de um animal imolado), a fim de obter o perdão de Deus para os pecados do Povo. Cristo, porém, depois de oferecer a vida em sacrifício por todos, entrou uma só vez no santuário perfeito, levando o seu próprio sangue, e obteve a redenção de toda a Humanidade – desde a criação do Mundo até ao final dos tempos. A entrega de Cristo, o seu sacrifício consumado no dom da vida, teve eficácia total e universal. Com ela, Cristo conseguiu a destruição da condição pecadora do homem. A Humanidade ficou, a partir desse instante, definitivamente salva.
Cristo há de manifestar-se, novamente, no final dos tempos (parusia). Então, a sua manifestação não será para oferecer novo sacrifício, nem para condenar o homem, mas para oferecer a salvação definitiva aos que Ele libertou do pecado, com o seu sacrifício único e perfeito.
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Enfim, como pediu o Papa, “que a Virgem Maria nos ajude a combater a tentação da hipocrisia dentro de nós mesmos – Jesus chama-os de ‘hipócritas’, a hipocrisia é uma grande tentação – e nos ajude a fazer o bem sem aparência e com simplicidade”.

2024.11.10 – Louro de Carvalho


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