De acordo com o artigo intitulado “Países
da UE em conflito com a OMS sobre direitos dos transexuais e acesso aos
cuidados de saúde”, de Marta Iraola Iribarren, publicado pela Euronews, a 1 de novembro, quase metade dos países da
União Europeia (UE) – ou seja 12 dos seus estados-membros – “considera no ‘transexualismo’
um diagnóstico psiquiátrico necessário” para as pessoas transgénero poderem
aceder a cuidados de saúde específicos, ao invés do que determinam as
diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Efetivamente,
em 2019, a OMS concordou em alterar a sua classificação para eliminar as
identidades trans da categoria de
perturbação mental. Todavia, esses 12 estados-membros não seguem as diretrizes
da OMS para o reconhecimento das identidades trans, segundo com o novo mapa de saúde publicado pela Transgender Europe (TGEU), uma
organização sem fins lucrativos que defende os direitos e o bem-estar das
pessoas trans.
A TGEU é, com efeito,
uma rede de diferentes organizações que trabalham para combater a discriminação
contra pessoas trans e apoiar os direitos das pessoas trans.
Foi
estabelecida no 1.º Conselho Transgénero Europeu, em Viena, na Áustria, em
novembro de 2005, e registada formalmente como organização beneficente
austríaca, 14 meses depois. Foi administrada como organização voluntária
durante anos. Em 2008, o adquiriu o seu primeiro financiamento independente
baseado em projeto. Porém, levou até 2009 para contratar a primeira equipa de
projeto, para implementar o projeto Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT). Em 2012, a Assembleia Geral,
realizada em Dublin, na Irlanda, decidiu mudar a sede para Berlim,
na Alemanha, um processo finalizado com o encerramento da associação austríaca, na
Assembleia Geral, realizada em Budapeste, na Hungria, em 2014.
Em 2016, a
Política de Trabalho Sexual da TGEU foi entusiasticamente aclamada e adotada
pela Assembleia Geral no Conselho Europeu Transgénero, em Bolonha, na Itália,
mercê dos esforços dos ativistas trans
na Ásia Central. E a Assembleia Geral votou a ampliação do mandato da TGEU para
incluir a Ásia Central no Conselho Europeu Transgénero de 2018, em Antuérpia, na
Bélgica.
A partir de
2021, a TGEU tem um escritório em Berlim, na Alemanha, bem como uma equipa de
dez membros e um conselho. Com mais de 150 organizações em quase 50 países
diferentes, continua a combinar o trabalho de advocacy, na Europa e na Ásia Central, com o trabalho comunitário,
em parceria com grupos e membros.
A
atualização feita pela OMS redefiniu a saúde relacionada com a identidade de
género, substituindo “categorias de diagnóstico desatualizadas” como
“transexualismo” e “perturbação da identidade de género em crianças” por “incongruência
de género na adolescência e na idade adulta” e “incongruência de género na
infância”, respetivamente, com o objetivo de garantir que os indivíduos
transexuais tenham acesso a cuidados de saúde de afirmação do género e a
seguros de saúde adequados.
Porém, os
mapas da TGEU mostram que 12 países da UE (a Alemanha, a Áustria, a Chéquia, a Croácia,
a Eslováquia, a Estónia, a França, a Grécia, a Hungria, a Lituânia, a Polónia e
a Suécia) utilizam o diagnóstico formal de “transexualismo”, ao abrigo da
classificação anterior. Cinco países (a Bélgica, a Irlanda, a Itália, os Países
Baixos e Portugal) utilizam a “disforia de género”. A Eslovénia, a Finlândia e
a Roménia utilizam ambas as classificações. E apenas a Dinamarca, Malta e oito
regiões de Espanha – para as quais existem dados disponíveis – não exigem
diagnóstico psiquiátrico como condição de acesso a cuidados de saúde
específicos.
A TGEU
alerta para o facto de este requisito contribuir para aumentar o estigma e para
dificultar o acesso a cuidados de saúde específicos por pessoas trans. “A lenta implementação da
despatologização implica que os cuidados de saúde específicos para pessoas trans não se baseiem no consentimento
informado e na tomada de decisões individuais, mas dependam inteiramente de um
diagnóstico”, adverte.
Com efeito,
as pessoas trans enfrentam desafios
significativos para receberem cuidados de saúde transespecíficos que sejam
acessíveis, económicos, respeitosos e de alta qualidade, de acordo com um relatório publicado
pelo Conselho da Europa, no início deste mês de novembro, que estima que, pelo
menos, 27% das pessoas trans, na
Europa, não acedem a cuidados de saúde específicos.
Espera-se que
a OMS publique novas diretrizes sobre cuidados de saúde específicos para
pessoas trans, em 2025, com o
objetivo de fornecer recomendações aos estados-membros sobre a forma de abordar
a questão.
***
O predito
relatório do Conselho da Europa sobre a assistência médica transespecífica (TSHC
– Trans-specific
healthcare) nos estados-membros da UE, feito
pela TGEU, em 2023, e publicado em 2024, concluiu que apenas oito estados-membros
da UE têm legislação nacional que se refere, especificamente, a TSHC (a Chéquia,
a Eslovénia, a Espanha, a Hungria, a Itália, o Luxemburgo, Portugal e a Suécia),
variando em objetivo e em conteúdo entre os estados-membros, sete dos quais não
tinham base jurídica para a TSHC (a Bulgária, Chipre, a França, a Grécia, a Letónia,
a Polónia e Roménia).
O relatório
concluiu que a legislação nacional sobre a TSHC está desatualizada, pelo que é extremamente
necessária uma revisão abrangente. A legislação nacional da Espanha (Lei para a
igualdade real e efetiva das pessoas trans
e para a
garantia dos direitos das pessoas LGBTI) (Lei n.º 4/2023) “é um exemplo de legislação
que se alinhe com os princípios da TSHC baseada nos direitos humanos: i) não patologização; ii) autonomia; iii) consentimento informado; iv)
não discriminação; v) atenção
integral; vi) qualidade; vii) especialização; viii) proximidade e não segregação; ix) privacidade e confidencialidade; x) evitando todos os desnecessários exames
desprovidos de finalidade terapêutica ou diagnóstica”.
O relatório TGEU também concluiu
que “apenas nove estados membros da UE (a Áustria, a Croácia, a Dinamarca, a Eslováquia,
a Finlândia, a Irlanda, a Lituânia, os Países Baixos e a Suécia) têm políticas
a nível nacional, incluindo diretrizes e protocolos que informam o fornecimento
de TSHC”. Também aqui, “há uma grande variação entre estas políticas, em termos
de âmbito e de conteúdo”. O documento regista que apenas três estados membros
da UE têm leis e políticas nacionais que regulamentam o acesso à TSHC: a Alemanha
a Estónia e Malta. Como foi discutido na reunião de outubro de 2023, na mesa
redonda sobre a TSHC, a existência de regulamentos, de políticas e de diretrizes
não garante o acesso à TSHC, devido à falta de implementação na prática, incluindo
a despatologização das identidades trans,
em conformidade com a CID-11.
Em 2016, Malta despatologizou as
identidades trans, através da Lei n.º
LVI, de 2016, que alterou a identidade
de género, expressão de género e caraterísticas de sexo. A legislação garante
que a despatologização não
inibe o acesso à TSHC.
Os estados-membros
devem consultar as orientações da TGEU que podem ser utilizadas para apoiar a criação de legislação e de protocolos de TSHC que sejam
compatíveis com os direitos humanos. Os Departamentos da
Organização Mundial da Saúde (OMS) de Género, Direitos e Equidade – Diversidade,
Equidade e Inclusão (GRE-DEI), também estão a desenvolver uma diretriz
(prevista ainda para 2024) sobre a saúde de pessoas de géneros diversos, que
fornecerão evidências e orientações de implementação sobre intervenções no setor
da saúde destinadas a aumentar o acesso e a utilização de serviços de saúde,
respeitosos e de qualidade, por parte de pessoas trans e com diversidade de género.
Uma secção do relatório, com o
objetivo de apresentar exemplos de práticas promissoras que podem ser
transferidos para diferentes países, destaca alguns exemplos de práticas conexas:
i) serviços TSHC; ii) formação para profissionais de
saúde; e iii) informações e recursos.
Por seu turno, o Tribunal Europeu
dos Direitos Humanos (TEDH) e o Comité dos Direitos Sociais (CEDS) consideraram
incompatíveis com os direitos humanos o requisito de esterilização ou de tratamentos
suscetíveis de resultarem em esterilidade. No entanto, 10 estados-membros do Conselho da Europa ainda exigiam, em 2022, a esterilização
como medida prévia a procedimentos legais de reconhecimento de género ou não
tinham, claramente, excluído este requisito: Andorra, a Bósnia e Herzegovina, a
Chéquia, o Chipre, a Eslováquia, a Letónia, o Montenegro, a Roménia, a Sérvia e
a Turquia. Ora, este requisito afeta diretamente os direitos das pessoas trans, em relação à TSHC, pois, não
raro, determina como é configurada e reembolsada a TSHC.
Os requisitos do reconhecimento legal
de género (LGR) têm impacto na capacidade das pessoas de fornecerem
consentimento livre e informado para intervenções médicas, dada a pressão para
se submeterem a procedimentos, com vista a poderem aceder aos documentos necessários
para participarem na vida diária, o que interfere na oportunidade de decidir se
os procedimentos são necessários ou se o tratamento específico é o adequado para
a pessoa em causa. Quando o tratamento médico é condição de acesso ao LGR, o prestador
de serviços de saúde assume o duplo papel de prestador e de árbitro legal com
impacto na relação de confiança que deve sustentar o relacionamento entre a
pessoa que acede aos cuidados de saúde e o respetivo prestador.
***
A
este respeito, merece relevo a opinião de Giovanna Tavares, exposta no Público online, a 29 de outubro, sob o
título “Tratamento para pessoas transexuais avança em Portugal”.
Salienta
a colunista que “Portugal tem mostrado um progresso notável” no atinente “ao
acesso à saúde para pessoas trans”, através
de uma “rede de apoio cada vez mais inclusiva e eficiente”. Na verdade, o país
implementou melhorias no sistema de saúde, garantindo que pessoas trans acedam “a cuidados especializados,
como terapias hormonais e acompanhamento psicológico”, o que reflete “uma maior
sensibilidade dos profissionais de saúde” e “um reconhecimento da importância
da saúde mental e física, no processo de transição de género”.
Sustenta
Giovanna Tavares que “a terapia hormonal de afirmação de género é um passo
crucial para muitas pessoas trans, no
processo de autoidentificação e bem-estar”. Começa com a consulta de avaliação
do quadro clínico da pessoa e de eventuais patologias suscetíveis de interferir
com o tratamento hormonal. Depois, vem o ajustamento da dose da hormonoterapia
e a monitorização de possíveis efeitos colaterais. Este acompanhamento “é vital
para garantir a segurança e a eficácia do tratamento”.
No
dizer da colunista, o nosso sistema de saúde “demonstrou uma enorme competência
e respeito no tratamento de pessoas trans”,
tratando-as “com dignidade e [com] sensibilidade”. Por outro lado, merece
destaque a “facilidade de acesso ao tratamento”, bem como “o ambiente de
compreensão e [de] profissionalismo”.
Por
conseguinte, emerge a recomendação a todas as pessoas trans que sintam a necessidade de iniciar o processo “a procurarem
o tratamento”, pois contribui “para o alinhamento entre o corpo e a identidade
de género” e “pode ser fundamental para o autoconhecimento e para a construção
de uma vida mais plena e autêntica”.
Segundo
Giovanna Tavares, este avanço no nosso sistema de saúde, “aliado ao respeito crescente
pela diversidade de género, representa um passo crucial para a inclusão e [para]
o bem-estar das pessoas trans”. E “este
modelo de atendimento é um exemplo a ser seguido, uma vez que promove “uma
sociedade mais inclusiva e respeitadora das diferentes formas de ser e de
existir”.
***
É
exemplo de justo apreço pelo esforço de melhoria do sistema de saúde. Porém, as
mentalidades precisam de avançar muito, em tolerância e na aceitação de quem
sofre por se sentir diferente e excluído. E a orientação sexual ainda é um dos
itens de grave incompreensão.
2024.11.08 –
Louro de Carvalho
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