sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Países da UE em conflito com a OMS sobre direitos dos transexuais

 

De acordo com o artigo intitulado “Países da UE em conflito com a OMS sobre direitos dos transexuais e acesso aos cuidados de saúde”, de Marta Iraola Iribarren, publicado pela Euronews, a 1 de novembro, quase metade dos países da União Europeia (UE) – ou seja 12 dos seus estados-membros – “considera no ‘transexualismo’ um diagnóstico psiquiátrico necessário” para as pessoas transgénero poderem aceder a cuidados de saúde específicos, ao invés do que determinam as diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Efetivamente, em 2019, a OMS concordou em alterar a sua classificação para eliminar as identidades trans da categoria de perturbação mental. Todavia, esses 12 estados-membros não seguem as diretrizes da OMS para o reconhecimento das identidades trans, segundo com o novo mapa de saúde publicado pela Transgender Europe (TGEU), uma organização sem fins lucrativos que defende os direitos e o bem-estar das pessoas trans.

A TGEU é, com efeito, uma rede de diferentes organizações que trabalham para combater a discriminação contra pessoas trans e apoiar os direitos das pessoas trans.

Foi estabelecida no 1.º Conselho Transgénero Europeu, em Viena, na Áustria, em novembro de 2005, e registada formalmente como organização beneficente austríaca, 14 meses depois. Foi administrada como organização voluntária durante anos. Em 2008, o adquiriu o seu primeiro financiamento independente baseado em projeto. Porém, levou até 2009 para contratar a primeira equipa de projeto, para implementar o projeto Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT). Em 2012, a Assembleia Geral, realizada em Dublin, na  Irlanda, decidiu mudar a sede para Berlim, na Alemanha, um processo finalizado com o encerramento da associação austríaca, na Assembleia Geral, realizada em Budapeste, na Hungria, em 2014.

Em 2016, a Política de Trabalho Sexual da TGEU foi entusiasticamente aclamada e adotada pela Assembleia Geral no Conselho Europeu Transgénero, em Bolonha, na Itália, mercê dos esforços dos ativistas trans na Ásia Central. E a Assembleia Geral votou a ampliação do mandato da TGEU para incluir a Ásia Central no Conselho Europeu Transgénero de 2018, em Antuérpia, na Bélgica. 

A partir de 2021, a TGEU tem um escritório em Berlim, na Alemanha, bem como uma equipa de dez membros e um conselho. Com mais de 150 organizações em quase 50 países diferentes, continua a combinar o trabalho de advocacy, na Europa e na Ásia Central, com o trabalho comunitário, em parceria com grupos e membros.

A atualização feita pela OMS redefiniu a saúde relacionada com a identidade de género, substituindo “categorias de diagnóstico desatualizadas” como “transexualismo” e “perturbação da identidade de género em crianças” por “incongruência de género na adolescência e na idade adulta” e “incongruência de género na infância”, respetivamente, com o objetivo de garantir que os indivíduos transexuais tenham acesso a cuidados de saúde de afirmação do género e a seguros de saúde adequados.

Porém, os mapas da TGEU mostram que 12 países da UE (a Alemanha, a Áustria, a Chéquia, a Croácia, a Eslováquia, a Estónia, a França, a Grécia, a Hungria, a Lituânia, a Polónia e a Suécia) utilizam o diagnóstico formal de “transexualismo”, ao abrigo da classificação anterior. Cinco países (a Bélgica, a Irlanda, a Itália, os Países Baixos e Portugal) utilizam a “disforia de género”. A Eslovénia, a Finlândia e a Roménia utilizam ambas as classificações. E apenas a Dinamarca, Malta e oito regiões de Espanha – para as quais existem dados disponíveis – não exigem diagnóstico psiquiátrico como condição de acesso a cuidados de saúde específicos.

A TGEU alerta para o facto de este requisito contribuir para aumentar o estigma e para dificultar o acesso a cuidados de saúde específicos por pessoas trans. “A lenta implementação da despatologização implica que os cuidados de saúde específicos para pessoas trans não se baseiem no consentimento informado e na tomada de decisões individuais, mas dependam inteiramente de um diagnóstico”, adverte.

Com efeito, as pessoas trans enfrentam desafios significativos para receberem cuidados de saúde transespecíficos que sejam acessíveis, económicos, respeitosos e de alta qualidade, de acordo com um relatório publicado pelo Conselho da Europa, no início deste mês de novembro, que estima que, pelo menos, 27% das pessoas trans, na Europa, não acedem a cuidados de saúde específicos.

Espera-se que a OMS publique novas diretrizes sobre cuidados de saúde específicos para pessoas trans, em 2025, com o objetivo de fornecer recomendações aos estados-membros sobre a forma de abordar a questão.

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O predito relatório do Conselho da Europa sobre a assistência médica transespecífica (TSHC – Trans-specific healthcare) nos estados-membros da UE, feito pela TGEU, em 2023, e publicado em 2024, concluiu que apenas oito estados-membros da UE têm legislação nacional que se refere, especificamente, a TSHC (a Chéquia, a Eslovénia, a Espanha, a Hungria, a Itália, o Luxemburgo, Portugal e a Suécia), variando em objetivo e em conteúdo entre os estados-membros, sete dos quais não tinham base jurídica para a TSHC (a Bulgária, Chipre, a França, a Grécia, a Letónia, a Polónia e Roménia).

O relatório concluiu que a legislação nacional sobre a TSHC está desatualizada, pelo que é extremamente necessária uma revisão abrangente. A legislação nacional da Espanha (Lei para a igualdade real e efetiva das pessoas trans e para a garantia dos direitos das pessoas LGBTI) (Lei n.º 4/2023) “é um exemplo de legislação que se alinhe com os princípios da TSHC baseada nos direitos humanos: i) não patologização; ii) autonomia; iii) consentimento informado; iv) não discriminação; v) atenção integral; vi) qualidade; vii) especialização; viii) proximidade e não segregação; ix) privacidade e confidencialidade; x) evitando todos os desnecessários exames desprovidos de finalidade terapêutica ou diagnóstica”.

O relatório TGEU também concluiu que “apenas nove estados membros da UE (a Áustria, a Croácia, a Dinamarca, a Eslováquia, a Finlândia, a Irlanda, a Lituânia, os Países Baixos e a Suécia) têm políticas a nível nacional, incluindo diretrizes e protocolos que informam o fornecimento de TSHC”. Também aqui, “há uma grande variação entre estas políticas, em termos de âmbito e de conteúdo”. O documento regista que apenas três estados membros da UE têm leis e políticas nacionais que regulamentam o acesso à TSHC: a Alemanha a Estónia e Malta. Como foi discutido na reunião de outubro de 2023, na mesa redonda sobre a TSHC, a existência de regulamentos, de políticas e de diretrizes não garante o acesso à TSHC, devido à falta de implementação na prática, incluindo a despatologização das identidades trans, em conformidade com a CID-11.

Em 2016, Malta despatologizou as identidades trans, através da Lei n.º LVI, de 2016, que alterou a identidade de género, expressão de género e caraterísticas de sexo. A legislação garante que a despatologização não inibe o acesso à TSHC.

Os estados-membros devem consultar as orientações da TGEU que podem ser utilizadas para apoiar a criação de legislação e de protocolos de TSHC que sejam compatíveis com os direitos humanos. Os Departamentos da Organização Mundial da Saúde (OMS) de Género, Direitos e Equidade – Diversidade, Equidade e Inclusão (GRE-DEI), também estão a desenvolver uma diretriz (prevista ainda para 2024) sobre a saúde de pessoas de géneros diversos, que fornecerão evidências e orientações de implementação sobre intervenções no setor da saúde destinadas a aumentar o acesso e a utilização de serviços de saúde, respeitosos e de qualidade, por parte de pessoas trans e com diversidade de género.

Uma secção do relatório, com o objetivo de apresentar exemplos de práticas promissoras que podem ser transferidos para diferentes países, destaca alguns exemplos de práticas conexas: i) serviços TSHC; ii) formação para profissionais de saúde; e iii) informações e recursos.

Por seu turno, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e o Comité dos Direitos Sociais (CEDS) consideraram incompatíveis com os direitos humanos o requisito de esterilização ou de tratamentos suscetíveis de resultarem em esterilidade. No entanto, 10 estados-membros do Conselho da Europa ainda exigiam, em 2022, a esterilização como medida prévia a procedimentos legais de reconhecimento de género ou não tinham, claramente, excluído este requisito: Andorra, a Bósnia e Herzegovina, a Chéquia, o Chipre, a Eslováquia, a Letónia, o Montenegro, a Roménia, a Sérvia e a Turquia. Ora, este requisito afeta diretamente os direitos das pessoas trans, em relação à TSHC, pois, não raro, determina como é configurada e reembolsada a TSHC.

Os requisitos do reconhecimento legal de género (LGR) têm impacto na capacidade das pessoas de fornecerem consentimento livre e informado para intervenções médicas, dada a pressão para se submeterem a procedimentos, com vista a poderem aceder aos documentos necessários para participarem na vida diária, o que interfere na oportunidade de decidir se os procedimentos são necessários ou se o tratamento específico é o adequado para a pessoa em causa. Quando o tratamento médico é condição de acesso ao LGR, o prestador de serviços de saúde assume o duplo papel de prestador e de árbitro legal com impacto na relação de confiança que deve sustentar o relacionamento entre a pessoa que acede aos cuidados de saúde e o respetivo prestador.

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A este respeito, merece relevo a opinião de Giovanna Tavares, exposta no Público online, a 29 de outubro, sob o título “Tratamento para pessoas transexuais avança em Portugal”.

Salienta a colunista que “Portugal tem mostrado um progresso notável” no atinente “ao acesso à saúde para pessoas trans”, através de uma “rede de apoio cada vez mais inclusiva e eficiente”. Na verdade, o país implementou melhorias no sistema de saúde, garantindo que pessoas trans acedam “a cuidados especializados, como terapias hormonais e acompanhamento psicológico”, o que reflete “uma maior sensibilidade dos profissionais de saúde” e “um reconhecimento da importância da saúde mental e física, no processo de transição de género”.

Sustenta Giovanna Tavares que “a terapia hormonal de afirmação de género é um passo crucial para muitas pessoas trans, no processo de autoidentificação e bem-estar”. Começa com a consulta de avaliação do quadro clínico da pessoa e de eventuais patologias suscetíveis de interferir com o tratamento hormonal. Depois, vem o ajustamento da dose da hormonoterapia e a monitorização de possíveis efeitos colaterais. Este acompanhamento “é vital para garantir a segurança e a eficácia do tratamento”.

No dizer da colunista, o nosso sistema de saúde “demonstrou uma enorme competência e respeito no tratamento de pessoas trans”, tratando-as “com dignidade e [com] sensibilidade”. Por outro lado, merece destaque a “facilidade de acesso ao tratamento”, bem como “o ambiente de compreensão e [de] profissionalismo”.

Por conseguinte, emerge a recomendação a todas as pessoas trans que sintam a necessidade de iniciar o processo “a procurarem o tratamento”, pois contribui “para o alinhamento entre o corpo e a identidade de género” e “pode ser fundamental para o autoconhecimento e para a construção de uma vida mais plena e autêntica”.

Segundo Giovanna Tavares, este avanço no nosso sistema de saúde, “aliado ao respeito crescente pela diversidade de género, representa um passo crucial para a inclusão e [para] o bem-estar das pessoas trans”. E “este modelo de atendimento é um exemplo a ser seguido, uma vez que promove “uma sociedade mais inclusiva e respeitadora das diferentes formas de ser e de existir”.

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É exemplo de justo apreço pelo esforço de melhoria do sistema de saúde. Porém, as mentalidades precisam de avançar muito, em tolerância e na aceitação de quem sofre por se sentir diferente e excluído. E a orientação sexual ainda é um dos itens de grave incompreensão.  

2024.11.08 – Louro de Carvalho

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