sexta-feira, 29 de novembro de 2024

O poder e o papel das mães

 

O 35.º aniversário do falecimento de minha mãe, Anunciação Louro, a 29 de novembro de 1989, convocou-me para uma reflexão de saudade, apoiada em leituras recentes, eivadas de forte componente antropológica e cristã católica, como era típico da minha mãe e do meu pai, do que procurei nunca me afastar, embora tenha mudado de estado de vida e de mister.

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Sustenta Wilson Aquino, jornalista brasileiro e professor e cristão, que “a influência maternal é a maior influência em potencial, para o bem ou para o mal, na vida humana”, comprovando estudos científicos que o caráter, a personalidade, o verdadeiro ‘eu’ do indivíduo se formam, “não durante o período (todo) da infância como se pensava, mas apenas até aos três primeiros anos de vida”.

Por isso, a mãe tem um papel fundamental e, mesmo vital, nesse processo de formação.

A sua imagem é a primeira que fica gravada na mente da criança, pois dela recebe os primeiros carinhos, alimentos, afagos, palavras e gestos de amor e de carinho. É a mãe que socorre o/a filho/a, quando tem fome, está molhado/a, incomodado/a e quando tem dor.

Quando acha amparo em todas as suas necessidades, num ambiente saudável, um lar alicerçado na harmonia, no bom relacionamento de seus membros à sua volta (pai, mãe, irmãos, tios, tias...), todos envoltos em amor e alegria, torna-se o berço ideal para a formação pessoal e social do indivíduo, regra geral, de boa índole, de bom caráter – um futuro bom cidadão.

Ao invés, as condições adversas formam, em geral, maus cidadãos. Não que não possam, por si e/ou influenciados pela sociedade, levar uma vida reta, exemplar, vivendo bem em sociedade, formando família e sendo felizes. Todavia, um ambiente inadequado tende a formar cidadãos com maiores dificuldades para vencerem na vida. Poderão ter problemas de insegurança, de medo, de raiva, de ira, de revolta, de indignação, de incapacidade, por subestimarem a própria força e a capacidade de aprenderem e de fazerem qualquer coisa que desejem a sério.

Estudos científicos comprovam que a mãe (especialmente ela), o pai, a família influenciam muito a formação do indivíduo na primeira infância. E há quem vá mais além, sustentando que, no útero, ele já pode ouvir os conselhos e orientações dos pais, interagir com boas e saudáveis músicas e conversas, pois tem a capacidade de sentir o amor e a harmonia exterior.

Caberia aí uma grande campanha, envolvendo toda sociedade organizada, na divulgação deste ideário, pois está em jogo o futuro da própria sociedade. Efetivamente, o controlo da violência no futuro da sociedade está em jogo, agora, no presente, na boa educação e na formação do indivíduo nos primeiros três anos de vida. E, obviamente, esse mesmo ambiente deve prevalecer sempre no seio de uma família, célula-mater da sociedade.

Por outro lado, a mãe precisa de ter consciência da sua grandeza e do seu poder, para exercer, plenamente, esse mister com muita sabedoria e, consequentemente, para obter maior êxito na educação e formação dos/as filhos/as, procurando envolver todos os que estão à volta da criança para que, todos juntos, criem o ambiente ideal para a formação de um futuro cidadão de bem, com o selo de garantia de um futuro seguro e promissor. É, pois, necessário reinar, de facto, nos lares, a paz, o amor, a alegria, a harmonia, sem gritarias, desavenças ou brigas, para que esse estado ideal seja constante. Para isso, na perspetiva cristã, é indispensável a presença de Deus no lar.

Somente pela força do homem um lar jamais será estável e duradouro em paz, alegria, harmonia e prosperidade. Afinal, o inimigo está à solta e luta contra o sucesso da família. Todo o cidadão, todo o lar, precisa da presença de Deus para dar rumo à verdadeira, única e duradoura felicidade que se pode atingir nesta vida. Cabe à mãe, ao pai, convidá-Lo para moradia na casa, para que Ele possa abençoar e auxiliar na educação do pequeno ser e na formação do seu caráter como cidadão de bem do amanhã.

As Escrituras Sagradas ensinam, há séculos, sobre a educação infantil, como está escrito em Provérbios (22,6): “Educa a criança no caminho em que se deve andar; e, até quando envelhecer, não se desviará dele.”

Também são inúmeras as Escrituras que enaltecem o sagrado sacerdócio de mãe: “Levantam-se os seus filhos e chamam-na bem-aventurada; o seu marido também a louva. Muitas filhas têm procedido virtualmente, mas tu (mãe) és, de todas a mais excelente” (Provérbios 31,28-29).

Mãe também é aquela que não gerou, mas que cuida tão bem de um filho especial de Deus, dadas as circunstâncias da vida que a levaram à educação de crianças que não conhecem a mãe.

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Educar os filhos é a grande missão que Deus confiou aos pais. Por causa da importância dessa tarefa, Ele deu o mandamento: “Honrar pai e mãe”. Sem a educação dos pais, os filhos perdem-se: as cadeias podem encher-se, a droga consome muitos e alguns vagueiam pelo mundo do crime.

Nada é tão grande como construir um ser humano. As máquinas acabarão, mas o filho jamais.

É pela educação que o ser humano conquista e desenvolve as suas faculdades. A Natureza dispôs que isso fosse feito, antes de tudo, pelos pais e, de modo especial, pela mãe. Hoje, muitas mães são obrigadas a criar, sozinhas, os filhos. Assim, a sua missão torna-se mais árdua. Nesse caso, o papel materno tem a sua importância multiplicada. Ela (mãe), muitas vezes, tem de desempenhar o papel do pai e o dela.

Gandhi, líder pacifista indiano, dizia que “a verdadeira educação consiste em pôr a descoberto o melhor de uma pessoa”. Para isso, é preciso cultivar a arte de educar, a mais difícil e bela de todas.

Um dia, Michelangelo viu um bloco de pedra e disse aos seus discípulos: “Aí dentro, há um anjo, vou tirá-lo para fora!”. Depois de algum tempo, com a genialidade de escultor, fez o belo trabalho. Então, os discípulos perguntaram-lhe como conseguira a proeza. Ele respondeu: “O anjo já estava lá, apenas tirei os excessos que sobravam”. Ora, educar é ir tirando, com paciência e perícia, os maus hábitos e descobrindo as virtudes, até que apareça o “anjo”.

Michel Quoist afirma “que não é para si que os homens educam os filhos, mas para os outros e para Deus”. Educar, nessa perspetiva, é colaborar com Deus; e é na educação dos filhos que se revelam as virtudes dos pais.

Educar é promover o crescimento e o amadurecimento da pessoa humana em todas as suas dimensões: material, intelectual, moral e religiosa. A educação não se recebe só na escola (esta dá-nos o que a família não consegue dar: formação mais avançada), mas, principalmente, em casa. De vez em quando, ouve-se alguém dizer: “Ele é analfabeto, mas é muito educado.”

Não adianta ter adquirido formação académica superior e não saber tratar os outros como gente, não saber honrar a palavra dada, não se comportar bem, trair a esposa e os filhos, não ser gentil, não ser afável, etc. Sem dúvida, a educação é a melhor herança que os pais devem deixar aos filhos. Essa ninguém lha pode roubar, nem destruir. O livro do Eclesiástico, capítulo 30, versículo 1, ensina aos progenitores: “Aquele que ama o seu filho corrige-o com frequência, para que se alegre com isso, mais tarde.”

A educação visa colocar o homem no caminho do bem e da virtude, do qual ele sempre tende a desviar-se. É aos pais que cabe, sobretudo, dar início a essa tarefa na vida dos filhos. A este respeito, a Igreja Católica ensina: “Pela graça do sacramento do matrimónio, os pais receberam a responsabilidade e o privilégio de evangelizar os seus filhos. Por isso, eles iniciá-los-ão, desde a tenra idade, nos mistérios da fé, da qual são para os filhos os ‘primeiros arautos’ (LG,11). Associá-los-ão desde a primeira infância à vida da Igreja” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2225).

A tarefa de educar, como dizia Dom Bosco, “é obra do coração”, é obra do amor, por isso tem muito a ver com a mãe. Sem o carinho e a atenção dessa figura, a criança, certamente, crescerá carente de afeto e desorientada para a vida. O povo diz que, atrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher, mas é preciso não esquecer que essa mulher, mais do que a esposa, é a mãe.

É no colo da mãe que a criança pode aprender o que é a vida e a fé, pode aprender a rezar e a amar Deus e as pessoas. É aí que o homem de amanhã deve aprender o que é a retidão, o caráter, a honestidade, a bondade, a pureza de coração. É aí que a criança aprende a respeitar as pessoas, a ser gentil com os mais velhos, a ser humilde, simples e a não desprezar ninguém. É aí que o filho aprende os valores universais, a ética, a justiça, a caridade, a vida pura da castidade, o domínio de todas as paixões desordenadas e a rejeição de todos os vícios.

É a mãe, com seu jeito suave e doce, que retira da sua plantinha o que de mal tem crescido: a erva daninha da preguiça, da desobediência, da má-criação, dos gestos e das palavras inconvenientes. É ela que vai ensinando a perdoar, a superar os momentos de raiva, sem retaliar, a não ter inveja dos outros que têm mais bens, mas dinheiro e mais sorte. É a mãe que, nas primeiras tarefas do lar, ensina ao filho o caminho redentor do trabalho e da responsabilidade.

Até o Filho de Deus quis precisar de uma mãe para cumprir a Sua missão de salvar a Humanidade. Ele fez o seu primeiro milagre nas Bodas de Caná, porque Ela Lhe pediu. Por isso, cada mãe é um sinal de Maria, que ensina o seu filho a viver de acordo com a vontade de Deus.

Em nossas casas, tem penetrado, sorrateiramente, uma sistemática pregação de antivalores por algumas TV e, mais do que nunca, é necessária a mãe atenta para combater tudo o que prejudica a educação dos filhos. Mais do que nunca, precisa de saber conquistá-los, não pelo que lhes dá, mas pelo que é para eles: amiga de todas as horas, consoladora, sabendo corrigir o filho, mas sem grosseria, sem gritos e sem humilhações; e nunca na frente dos outros.

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A mãe é uma figura de extrema importância na vida dos filhos. E, quando o assunto é a educação das crianças, o seu papel é muito relevante. Os pedagogos e os terapeutas de família, listam alguns pontos de atenção que a mãe precisa de ter em relação aos filhos, sejam eles crianças ou adolescentes: acompanhar as atividades diárias das crianças e interessar-se por elas; saber quais são as necessidades e vontades de cada filho/a; estar por dentro do que acontece dentro e fora de casa; apoiar e intervir na hora certa; ir às reuniões de escola; e estar atenta à relação da criança com as outras pessoas: crianças, adolescentes e adultos.

O mais importante de tudo – e, muitas vezes, o mais difícil – é ter tempo de qualidade com os filhos. Muitas mulheres trabalham fora de casa e têm mil coisas para resolver durante o dia, mas é importante que encontrem um tempo para dedicar somente às crianças.

Não vale subestimar o pai, figura tão importante com a mãe nessa construção. O casal nem sempre concorda com tudo, entretanto, quando o tema é a educação dos filhos, as falas do pai e da mãe precisam de ter unidade e consonância. Se isso não acontece, a criança pode ser prejudicada. “Não posso proibir o meu filho de dançar em cima da mesa, se o pai permite. A criança fica confusa e isso é-lhe prejudicial”, considera um terapeuta. Conversar, negociar e saber ceder são palavras-chave para o casal encontrar unidade familiar que favoreça a educação das crianças.

Educar é uma das tarefas mais difíceis. Quem é pai e mãe sabe-o bem. Vale a pena repensar os métodos, rever atitudes. Não existe uma certeza única. Se a mãe descobre que o caminho que escolheu não trouxe o resultado que esperava e de precisava, deve estar recetiva a novos caminhos e ser flexível. Tudo isso, sem abandonar as suas crenças, os seus princípios e valores e o que ela crê ser melhor para seus filhos.

O papel da mãe é de extrema importância para o fluir da vida em todas as instâncias. Ela exerce papel fundamental na história de cada um/a. Dizem alguns especialistas da genética que o/a filho/a transporta por toda a vida células estaminais da mãe. Por isso, ela é extremamente sensível à vida, às atitudes e aos comportamentos da prole, ansiosa pela sorte dos filhos, temorosa pelo futuro deles, pressente o perigo e alegra-se com os sucessos!

2024-11.29 – Louro de Carvalho

Especialista diz que Rússia sabota cabos submarinos da Europa

 

Shona Murray, em artigo intitulado “A Rússia está a sabotar os cabos submarinos da Europa – especialista em ciberespaço da NATO”, publicado pela Euronews, a 28 de novembro, dá-nos conta de que, segundo o que referiu, ao Europe Conversation da Euronews, James Appathurai, especialista sénior da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) em ameaças cibernéticas e híbridas, a Rússia está a levar a cabo ataques persistentes a cabos submarinos em toda a Europa, com uma organização de estilo “paramilitar”, que representa “a ameaça mais ativa” para as infraestruturas ocidentais.

James Appathurai, secretário-geral adjunto em exercício para a Inovação Híbrida e Cibernética, sustenta que os recentes ataques aos cabos de comunicação atribuídos pela aliança à Rússia fazem parte de um crescimento significativo das interferências cibernéticas, híbridas e outras, na Europa. Efetivamente, no início de novembro, foram cortados dois cabos no Mar Báltico, entre a Suécia e a Lituânia, e outro, entre a Alemanha e a Finlândia, o que alarmou a NATO e os estados-membros da União Europeia (UE), preocupados com a possibilidade de sabotagem.

A Appathurai foi mais explícito e claro, ao pormenorizar que “os Russos estão a levar a cabo um programa que têm, há décadas” – o “Programa Russo de Investigação Submarina”, eufemismo para “uma estrutura paramilitar, muito bem financiada, que está a mapear todos os nossos cabos e condutas de energia” – e precisou: “Têm os chamados navios de investigação. Têm pequenos submarinos por baixo. Têm veículos não tripulados, operados remotamente, mergulhadores e explosivos.” 

Os governos da Alemanha e da Finlândia vieram logo a terreiro culpar os potenciais sabotadores pelos aparentes ataques aos cabos. “Ninguém acredita que os cabos tenham sido danificados acidentalmente. Também não quero acreditar que as âncoras dos navios tenham causado os danos por acidente”, considerou Boris Pistorious, ministro alemão da Defesa.  

Por sua vez, Antti Häkkänen, ministro da Defesa finlandês, afirmou que a NATO precisa de fazer muito mais para defender as infraestruturas críticas do Ocidente. 

A Suécia informou que está a decorrer uma investigação sobre os cabos. E uma declaração conjunta dos ministros dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, da França, da Polónia, da Itália, da Espanha e do Reino Unido sustenta que “a Rússia está a atacar sistematicamente a arquitetura de segurança europeia” e que “a escalada das atividades híbridas de Moscovo contra os países da NATO e da UE também não tem precedentes na sua variedade e escala, criando riscos de segurança significativos”. 

Cerca de 90% dos dados de comunicações digitais do Mundo passam pelos cabos submarinos. E passam diariamente cerca de 10 biliões de euros em transações financeiras. Para além dos cabos, as infraestruturas submarinas críticas incluem conetores de eletricidade e condutas que fornecem petróleo e gás.  

Por outro lado, Appathurai afirmou que os ciberataques, a desinformação e a interferência política também estão a aumentar.  “São a base. E tudo isto é em maior escala do que era anteriormente. O que há de novo é um novo apetite russo e uma campanha de sabotagem”, vincou, sustentando que esta campanha inclui “fogo posto, descarrilamento de comboios, ataques a propriedades de políticos, tentativas de assassinato, por exemplo, o chefe da Rheinmetal”, o maior fabricante alemão de armas, que fornece à Ucrânia importantes cartuchos de artilharia de 155 mm. 

Por fim, o colunista refere que os serviços secretos norte-americanos frustraram o plano de assassinato, em julho passado, que fazia, provavelmente, parte de um plano mais vasto para atingir os líderes da indústria de defesa que abastecem a Ucrânia.

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A sabotagem e a contrainformação sempre foram instrumentos relevantes na condução da guerra. Obviamente, nos tempos que correm, ganham novos contornos, podendo o furto ou a rutura de cabos submarinos ou subterrâneos parar meio mundo.

O agora apontado por James Appathurai foi antecipado, a 16 de novembro, pelo almirante Gouveia e Melo, chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), cujas afirmações foram veiculadas por vários órgãos de comunicação social.   

Segundo o CEMA – que afirmou haver um “trânsito cada vez mais intenso” (“de Norte para Sul e de Sul para Norte”) de navios russos na costa de Portugal, tendo cruzado, recentemente, águas portuguesas uma embarcação dedicada à espionagem –, num período muito curto, passaram em águas portuguesas três navios de guerra (duas fragatas e uma corveta), três de pesquisa científica, dois reabastecedores e um navio espião (que faz, normalmente espionagem eletrónica).

O almirante relevou que a Marinha acompanha este fluxo de navios russos com apertada vigilância. “A nossa resposta a isso é segui-los, controlá-los, mantê-los sob pressão constante com a nossa presença também constante”, afirmou aos jornalistas.

As declarações Gouveia e Melo foram proferidas, ente os jornalistas, na Base Naval de Lisboa, no Alfeite, por ocasião da chegada do navio D. Francisco de Almeida, fragata que participou numa missão da NATO com uma guarnição de 167 militares.

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A 19 de novembro, dia em que o presidente russo assinou o decreto que alarga a possibilidade de utilização de armas nucleares, o CEMA, advertindo que Portugal deve preparar-se para uma escalada da guerra (os militares levam isto a sério, como disse), sugeriu que Portugal siga o exemplo dos países nórdicos – que já começaram a preparar as suas populações, para “se a crise ou guerra vier”. Em declarações à SIC Notícias, dizia que, neste momento, a Rússia é a principal ameaça à segurança euro-atlântica e que o risco da escalada do conflito parece cada vez maior.

“Acho que a população deve estar informada. Essa discussão, em termos de um regime democrático, deve ser aberta e de forma esclarecida e esclarecedora. Não se devem criar preocupações exageradas, mas também não se deve minimizar, ao ponto de isso não ser sequer uma preocupação”, considerou.

Vladimir Putin assinou, no dia 19, o decreto que alarga a possibilidade de utilização de armas nucleares, dois dias depois de os Estados Unidos da América (EUA) terem autorizado a Ucrânia a atacar solo russo com mísseis de longo alcance, de fabrico e oferta norte-americana.

Numa conferência com os chefes dos três ramos das Forças Armadas, o CEMA aplaudiu o passo dos EUA. “Por que não? O que é que impede? É o medo da reação?”, questionou Gouveia e Melo. “Se é o medo da reação que impede, o melhor é baixarmos os braços e entregarmos, desde já, a vitória ao opositor [a Rússia] que usa isso de forma psicológica contra nós”, atirou.

Apesar da decisão de Putin, o CEMA acredita que um ataque nuclear não é opção para Putin. “Um conflito nuclear traria tantas desvantagens para todos os atores, que não me parece que esteja no horizonte de ninguém”, declarou à SIC, mas avisando que está em curso uma nova era de confrontação global com o alinhamento estratégico do “quarteto do caos”, como lhe chamou – composto pela Rússia, China, Irão e Coreia do Norteque pode colocar em risco a segurança de uma Europa a duas vozes.

O almirante, lamentando que Portugal não tenha capacidade de defesa adequada, criticou: “A nossa atual lei de progresso militar está em de cerca de quatro mil milhões de euros para o reforço das capacidades das Forças Armadas. Israel, numa noite, na defesa do Iron Dome, gastou dois mil milhões de euros… [longa pausa] Eu julgo que não preciso de dizer mais nada sobre a nossa capacidade de defesa aérea.”

O CEMA saúda a autorização concedida pelos EUA à Ucrânia para usar armas de longo alcance e insiste em dizer que Portugal deve estar pronto para possível escalada da guerra e que a população portuguesa deve estar informada sobre os riscos e consequências da escalada da guerra.

A Rússia, lembra Gouveia e Melo, é a principal ameaça à segurança euro-atlântica e o risco da escalada do conflito é cada vez maior, pelo que chegou a hora de o Estado seguir os exemplos que vêm de da Suécia, da Noruega e da Finlândia e informar a população sobre o que pode acontecer e como se preparar para uma possível guerra mundial.

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Estão a ser construídos no Norte de Portugal, abrigos subterrâneos resistentes a um desastre natural ou a um ataque nuclear. A ideia foi lançada por um antigo emigrante em França que cobra um mínimo de 150 mil euros pelos equipamentos mais pequenos. Pelos vistos, o anfitrião não quis ser identificado, mas abriu a porta à SIC, para revelar o abrigo que edificou a oito metros de profundidade. O refúgio secreto fica na região do Minho. Começou a ser pensado no início da pandemia e ganhou forma depois que a guerra voltou à Europa.

Refere a SIC que a edificação demorou quatro meses, custou cerca de 200 mil euros e será capaz de resistir a qualquer tipo de ataque ou de desastre. O abrigo tem cerca de 20 metros quadrados e foi concebido para funcionar em bolha. Tem fontes de água e energia independentes, assim como capacidade de regeneração de ar. Foi preparado para albergar quatro pessoas e tem autonomia de pelo menos um mês. A fortaleza que se diz ser inviolável foi projetada pela empresa de Rui Ribeiro, antigo emigrante em França, que apostou, há dois anos, numa ideia que diz ser muito mais do que um negócio. A guerra na Ucrânia pôs, na sua ótica, o Mundo à beira de um novo desastre nuclear. Além das ameaças do Kremlin, as centrais nucleares de Zaporijia e Kursk na Rússia arriscam tornar-se uma repetição do sucedido em 1986, quando Chernobyl atirou partículas radioativas, para distâncias superiores a três mil quilómetros.

O empresário diz que o Mundo está, há muito, a enviar sinais preocupantes, mas são poucos os que apostam na prevenção. Desde a Guerra Fria, a Suíça exige, pelo menos, um abrigo subterrâneo para cada nova construção. Hoje tem uma rede de quase 400 mil bunkers e está entre os países com maior taxa de cobertura. Em Portugal, o tema ainda faz parte do desconhecido.

Rui Ribeiro, garantindo trabalhar com material militar, diz seguir as normas que a Suíça aplica à construção de abrigos como os que está a vender em Portugal.

Além do aval da autarquia, a construção implica o estudo geológico do terreno. Só isso permitirá que as maquetes ganhem vida. A empresa oferece dois modelos de abrigo: o mais caro é construído no local em betão armado, enquanto o mais barato é feito a partir de contentores com três tamanhos possíveis. Vai gastar cerca de 150 mil euros na esperança de transformar este contentor num seguro de vida.

Em Portugal o mercado, a dar os primeiros passos, já divide opiniões. Há quem fale em segurança e em prevenção, como há quem fale em capricho e obsessão. E quem acredita estar a garantir a própria sobrevivência espera, acima de tudo, que esta porta fique sempre fechada.

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O Estado Português tem manifestado insistente apoio à Ucrânia, em termos financeiros e logísticos, mas não se tem metido no campo de batalha. Porém, como referia, a 28 de novembro, Região de Leiria, um jornal online, uma empresa das Caldas da Rainha que fornece drones à Ucrânia angaria 70 milhões para continuar a crescer. E Ricardo Mendes, CEO da Tekever, reafirmou “o compromisso de apoiar as forças ucranianas na sua luta pela soberania”.

A Tekever conseguiu um financiamento de 70 milhões de euros, proveniente de diversos investidores, entre os quais o Fundo de Inovação da NATO, na semana em que se cumpriram mil dias de guerra na Ucrânia, país ao qual a empresa tem fornecido equipamento. Outros dos apoiantes da ronda de financiamento O Fundo de Investimento Estratégico de Segurança Nacional do Reino Unido e a Crescent Cove Advisors LP, uma empresa de investimentos de Silicon Valley com experiência em defesa.

O investimento, anunciado no dia 20, destina-se “a apoiar o crescimento sustentável e facilitar a expansão geográfica para mercados prioritários [como os EUA], a inovação contínua de produtos e o aumento da capacidade de produção”, explicou, em comunicado, a Tekever, que tem o centro de engenharia – o coração do fabrico de drones – nas Caldas da Rainha.

“Como parte do seu plano de crescimento”, a empresa, que “já é rentável, irá acelerar os investimentos em investigação e desenvolvimento para apoiar a inovação, melhorar” os drones “existentes e desenvolver novas linhas de produtos”. O seu objetivo “é garantir que a sua tecnologia continue a liderar num cenário técnico em rápida evolução”, pelo que “irá também expandir a sua capacidade global de produção, entrega e suporte, de modo a responder à crescente procura pelos seus produtos e serviços”.

Patrick Schneider-Sikorsky, representante do Fundo de Inovação da NATO, referiu que “as tecnologias de sistemas aéreos não tripulados são essenciais para o avanço da defesa, para a segurança e para a resiliência”, adiantando que “a tecnologia da Tekever está a revolucionar os sectores de defesa, inteligência comercial, vigilância e reconhecimento”.

Passados mais de mil dias da invasão da Ucrânia pela Rússia, o CEO da Tekever reafirmou “o compromisso de apoiar as forças ucranianas na sua luta pela soberania”, frisando que a empresa “tem orgulho de colaborar”, fornecendo drones para “missões críticas de reconhecimento e vigilância de longo alcance”, desde a primavera de 2022.

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Enfim, particulares antecipam-se, na prevenção e na luta no terreno, a um governo que se refugia na retórica do apoio, mas que não quer ou não pode entrar na guerra, porque as suas forças armadas são exíguas em meios. Resta a alma e a solidariedade!

2024.11.28 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Nova Comissão Europeia tem luz verde Parlamento Europeu

 

A 27 de novembro, como era esperado, o Plenário do Parlamento Europeu (PE) procedeu, em Estrasburgo, à aprovação final da nova Comissão Europeia (doravante Comissão), permitindo que o executivo entre em funções a 1 de dezembro e inicie o novo ciclo de cinco anos.

O colégio proposto obteve 370 votos a favor, 282 contra e 36 abstenções dos legisladores, o suficiente para ser aprovado. Porém, o resultado foi visivelmente inferior aos 401 votos de Ursula von der Leyen no PE, quando se candidatou à reeleição em julho, refletindo uma maioria cada vez mais reduzida, apoiada por menos progressistas e por mais forças de direita. Tal mudança aritmética dever-se-á às disputas partidárias que assolaram as audiências de confirmação dos novos comissários.

O Partido Popular Europeu (PPE), apoiado pelo Partido Popular (PP) de Espanha, lançou feroz campanha contra Teresa Ribera (Transição Limpa, Justa e Competitiva), vendo-a como responsável pela falta de resposta às inundações de Valência, pois, integrando o gabinete do primeiro-ministro, Pedro Sánchez, aduzia que a gestão das catástrofes naturais é, antes de mais, tarefa do governo regional, que está, em Valência, sob o controlo do PP.

Os Socialistas e Democratas (S&D) e os liberais do Renew Europe (RE) criticaram a nomeação de Raffaele Fitto (Coesão e Reformas) como um dos vice-presidentes executivos, alertando para a equivalência dos seus laços com a italiana Giorgia Meloni e com o grupo Conservadores e Reformistas Europeus (CRE) a perigosa normalização da política de extrema-direita. E opuseram-se, vigorosamente, a Olivér Várhelyi (Saúde e Bem-Estar Animal), devido à ligação com o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán e ao longo historial de controvérsias, incluindo o infame episódio em que foi apanhado em microfone aberto a referir os eurodeputados como “idiotas”.

O confronto desencadeou intensos dias de negociações à porta fechada que culminaram com um acordo para desbloquear as candidaturas pendentes. As pastas de Ribera e Fitto permaneceram inalteradas, enquanto Várhelyi foi destituído das suas responsabilidades conexas com os direitos reprodutivos e a preparação para a saúde. O PPE, o S&D e o RE tentaram colmatar as suas diferenças com a declaração de nove pontos para reforçar a coligação centrista. Os S&D e os RE estão preocupados com a chamada “maioria venezuelana”, que reúne o PPE e todos os deputados à direita, incluindo os associados a Giorgia Meloni, a Marine Le Pen e a Viktor Orbán.

As consequências destas negociações difíceis eram ainda visíveis no dia 27. Os principais grupos não garantiram a disciplina de voto, pois as delegações nacionais romperam as fileiras e votaram contra a Comissão. “Não aceitamos que joguem dos dois lados”, disse Iratxe García, líder dos S&D, ao PPE, frisando que “é imoral construir a Europa” com os que “tentam suprimir os direitos fundamentais”, os que “negam as alterações climáticas” e os que “recuam na justiça social”.

Valérie Hayer, líder dos liberais, denunciou a “maioria venezuelana” por ser “contra a Europa” e disse que a “única maioria viável”, no PE, era a coligação pró-europeia composta pelo PPE, pelo S&D e pelo RE. Tanto García como Hayer se dirigiram, diretamente, a Manfred Weber, líder do PPE, que muitos consideram o cérebro por detrás das duas maiorias, mas que tentou recuperar as credenciais centristas e acusou Le Pen, Orbán e a Alternativa para a Alemanha (AfD) de serem os seus “inimigos políticos”, o que suscitou vaias das fileiras da extrema-direita. “Temos ideias diferentes, lutamos pelas nossas convicções, mas todos queremos encontrar compromissos e servir todos os europeus”, disse aos socialistas e liberais.

Os Verdes, excluídos do acordo, apesar de terem apoiado a reeleição de Ursula von der Leyen, em julho, e de partilharem muitas das suas orientações políticas, dividiram-se, agora, com alguns a votarem contra, devido à inclusão de Fitto e de Várhelyi. Contudo, o grupo estendeu o ramo de oliveira à nova Comissão: “Seremos, simultaneamente, críticos e construtivos”, afirmou a colíder dos Verdes, Terry Reintke.

No seu discurso de apresentação, a presidente da Comissão reconheceu as tensões no hemiciclo e encorajou os partidos pró-europeus a avançar e a trabalhar em conjunto. “Ultrapassar as divisões e chegar a compromissos é a marca de qualquer democracia viva. E a minha mensagem de hoje é que queremos trabalhar convosco nesse espírito”, afirmou, assegurando: “Trabalharemos com todas as forças democráticas pró-europeias nesta Assembleia. E, tal como fiz no meu primeiro mandato, trabalharei sempre a partir do centro. Porque todos nós queremos o melhor para a Europa e o melhor para os Europeus. Por isso, agora, é altura de nos unirmos.”

E, em termos programáticos, prometeu um executivo centrado no relançamento da economia estagnada da UE, no aumento da competitividade, na redução da burocracia, no desbloqueamento do investimento e na redução do fosso em matéria de inovação, relativamente aos Estados Unidos da América (EUA) e à China, bem como no apoio à Ucrânia, na defesa, na gestão dos fluxos migratórios, no alargamento, na ação climática, na reforma orçamental e no Estado de direito. “A nossa luta pela liberdade pode ser diferente da das gerações passadas. Mas o que está em jogo é igualmente elevado”, disse, vincando: “Estas liberdades não virão de graça. Significa fazer escolhas difíceis. Significará um investimento maciço na nossa segurança e prosperidade. E, acima de tudo, significa mantermo-nos unidos e fiéis aos nossos valores.”

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No primeiro mandato de Ursula von der Leyen, a União Europeia (UE) sofreu crises dolorosas de dimensão sem precedentes, que obrigaram o executivo a apresentar, muitas vezes, à pressa, propostas transformadoras que, de outro modo, seriam impensáveis. A abordagem prática da presidente da Comissão melhorou-lhe, consideravelmente, o perfil político, granjeando-lhe admiradores e detratores. Desta vez, a sua direção na Comissão está preparada para lidar com as ondas de choque das mesmas crises e para enfrentar os novos desafios.

A guerra definiu a primeira presidência de Ursula von der Leyen e definirá segunda. Este mandato inicia-se num momento crítico para a Ucrânia, com a Rússia a obter ganhos substanciais no terreno e com cerca de 11 mil soldados norte-coreanos a juntarem-se à luta em Kursk, região que Kiev ocupou parcialmente. Entretanto, a China, continuando a ignorar os apelos da UE, fornece a Moscovo a tecnologia avançada que as sanções ocidentais restringiram fortemente.

Ursula von der Leyen, que prometeu estar ao lado da Ucrânia, “durante o tempo que for preciso”, tem de garantir que a ajuda militar, financeira e humanitária ao país continue a fluir ininterrupta, após o regresso de Donald Trump. E o endurecimento das sanções contra o Kremlin e o colmatar de lacunas estarão no topo da sua lista de tarefas.

No início do ano, os estados-membros adotaram a proposta da Comissão para estabelecer um plano de 50 mil milhões de euros, para assistência financeira à Ucrânia, até 2027. Em outubro, aprovaram um plano inovador que permite aos aliados do G7 conceder um empréstimo de 45 mil milhões de euros, utilizando os ativos congelados da Rússia como garantia.

Tais meios podem revelar-se insuficientes, se a guerra piorar e os problemas orçamentais da Ucrânia se agravarem. A destruição de centrais elétricas e de infraestruturas civis por parte da Rússia está a aumentar a fatura. O presidente Volodymyr Zelenskyy manifestou a esperança de que a guerra termine em 2025, “através de meios diplomáticos”, processo em que Ursula von der Leyen desempenhará papel proeminente, dado o estatuto da Ucrânia de candidato à UE. Porém, as conversações de adesão entrarão em território desconhecido, se a Rússia mantiver os territórios ocupados no Leste.

Um dos princípios ideológicos de Ursula von der Leyen é a crença na aliança transatlântica. Os laços estreitos com o presidente dos EUA, Joe Biden, são testemunho disso. Porém, tal crença ficará sob pressão, quando Donald Trump, com ardente aversão ao sistema multilateral, regressar à Casa Branca e concretizar a ameaça de impor tarifas a todos os produtos estrangeiros. Os EUA são o maior parceiro comercial da UE: em 2023, a UE exportou bens no valor de 502 mil milhões de euros e importou 344 mil milhões de euros – um excedente de 158 mil milhões de euros. Trump ressente-se do desequilíbrio e diz que a UE deve pagar um grande preço.

Para a UE, os direitos aduaneiros viriam na pior altura: fraca procura, elevados preços da energia, política monetária restritiva, escassez de mão-de-obra e investimento insuficiente em novas tecnologias – o que leva o bloco para uma espiral de declínio industrial. As exportações são uma das poucas opções das empresas para amortecerem o golpe e para manterem as suas operações à tona. Se o mercado americano for subitamente afetado por restrições comerciais, o impacto será devastador. Os líderes da UE lançaram a ideia de um acordo com Trump, apelando ao seu instinto de homem de negócios.

Os direitos aduaneiros de Trump coincidiriam com o agravamento das tensões comerciais com Pequim, que reagiu duro aos direitos adicionais da UE sobre os veículos elétricos chineses. As exportações europeias, por isso, estão no fogo cruzado da China.

No primeiro mandato de Ursula von der Leyen, a Comissão muniu-se de novos instrumentos jurídicos para proteger os seus interesses económicos, que serão úteis no segundo mandato. E há que lidar com dois parceiros comerciais, os EUA e a China, que estão a praticar os seus métodos. Trump vai impor algumas tarifas. E, na China, vê-se uma certa hegemonia no atinente à política industrial, com muitos subsídios ilegais.

Pouco depois da sua chegada, em 2019, Ursula von der Leyen dirigiu-se à imprensa para apresentar a primeira proposta de referência: o Pacto Ecológico Europeu, que saudou como o momento do “Homem na Lua” da Europa. Seguiram-se propostas ambiciosas e de grande alcance para levar a UE à neutralidade climática, até 2050. Todavia, este impulso provocou forte reação da direita, de que os protestos dos agricultores foram a maior expressão. Desde então, a Comissão vem alterando a sua narrativa para se adaptar à nova corrente. As diretrizes para o segundo mandato eclipsam o Acordo Verde e privilegiam o “Acordo Industrial Limpo”. Além disso, ressalta o diálogo estratégico sobre o futuro da indústria automóvel europeia, que, estando em crise profunda, reduz milhares de postos de trabalho.

Nenhuma das pastas do novo colégio de comissários tem a palavra “verde” no título, apesar de a presidente da Comissão salientar que todos os compromissos climáticos têm de ser respeitados.

Outro instrumento a preparar pela Comissão é o Novo Acordo Europeu para a Competitividade, que os dirigentes aprovaram para curar a estagnação económica da UE, descrita por Mario Draghi como uma “lenta agonia”. O acordo inclui compromissos para libertar o “pleno potencial” dos mercados únicos, para desencadear a “revolução de simplificação”, para desenvolver “tecnologias disruptivas”, para promover a “soberania energética estratégica” e para construir uma economia “eficiente em termos de recursos”, entre outros.

Quando a UE concluiu, em maio, a reforma para gerir a chegada de requerentes de asilo, Bruxelas pensou, erradamente, que seria suficiente para baixar a tensão e concentrar-se na sua concretização. Pouco depois de a reforma ter sido aprovada, um grupo crescente de estados-membros exigiu soluções inovadoras para travar a migração irregular. As linhas convergem em planos não testados e não pormenorizados para transferir parte dos procedimentos de asilo de dentro para fora do território da UE (externalização). E Ursula von der Leyen, abriu a porta para – ao menos, explorar – a ideia de construir campos de detenção em países terceiros, para transferir os requerentes de asilo cujos pedidos sejam rejeitados. As ONG criticaram o projeto, alertando que alimentaria violações desenfreadas dos direitos humanos.

Por seu turno, a presidente da Comissão prometeu legislação para acelerar as deportações, para rever o conceito de “países terceiros seguros”, para combater a migração instrumentalizada e para assinar mais acordos financiados pela UE com países vizinhos, seguindo o modelo da Tunísia. Contudo, nada na legislação da UE, permite aos estados-membros externalizar a gestão das fronteiras da UE, quanto a fluxos migratórios ou a pedidos de asilo, antes, pelo contrário.

Apoiar a reconstrução da Ucrânia, reforçar as capacidades de defesa, substituir os combustíveis fósseis por energias renováveis, promover tecnologias de ponta, fazer face a retaliação comercial, construir campos de detenção em países longínquos – tudo isto custa muito dinheiro. Caberá a Ursula von der Leyen encontrá-lo, quando apresentar a sua proposta para o próximo orçamento de longo prazo (2028-2034), que deverá surgir antes das férias de verão. O orçamento terá cobrir os envelopes tradicionais, como a Política Agrícola Comum (PAC) e os fundos de coesão); os investimentos estratégicos, como o clima, a inovação, a investigação e a defesa; e os fatores externos impossíveis de calcular, como a guerra na Ucrânia, as crises humanitárias, as catástrofes naturais, os fluxos migratórios e as alterações demográficas.

O longo rol de despesas ressuscitará o debate sobre a dívida conjunta, que Mario Draghi considera “indispensável”. Todavia, a presidente da Comissão, que aceitou a contração de empréstimos comuns para criar o fundo de recuperação da covid-19, no valor de 750 mil milhões de euros, tem sido cautelosa, temendo a repreensão de países frugais, como a Alemanha e os Países Baixos. Não obstante, se persistir o declínio industrial da UE e/ou o expansionismo russo e se a crise climática entrar em espiral, terá de entrar no debate e agir conforme os resultados.

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Não há bela sem senão. E à presidente da Comissão, a quem foram apontadas irregularidades na aquisição das vacinas contra a covid-19, é apontada, agora, com “falha estrutural nas regras de ética da UE, pela provedora de Justiça Europeia, Emily O'Reilly, por ter passado férias, em 2023, na casa do primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, em Creta, matéria que a Comissão deverá tratar, pois o código de conduta da UE impede os comissários de aceitarem hospitalidade, exceto de acordo com o protocolo diplomático e de cortesia, mas esclarece como lidar com as áreas cinzentas da ética, quando a presidente, árbitro de tais questões, está na linha de fogo.

Enfim, espera-se que o caso – um segundo aviso – não condicione a gestão dos negócios da UE.

2024.11.27 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Acordado um cessar-fogo de 60 dias entre Israel e o Líbano

 

No decurso da cimeira, de 25 e 26 de novembro, dos Ministros dos Negócios Estrangeiros do G7 (grupo que inclui as sete nações mais industrializadas do Mundo), em Fiuggi, a cerca de 80 quilómetros a Sudeste de Roma, na Itália, rodeada de apertada segurança, pairou no ar a possibilidade de, em breve, se alcançar um cessar-fogo entre Israel e o Hezbollah. “Talvez estejamos perto de um cessar-fogo no Líbano. […] Esperemos que seja verdade e que não haja recuos à última da hora, disse Antonio Tajani, ministro italiano dos Negócios Estrangeiros e anfitrião do encontro, vincando a disponibilidade de a Itália assumir papel mais interventivo nos esforços de manutenção de paz e na supervisão de qualquer acordo de cessar-fogo.

Também o embaixador de Israel nos Estados Unidos da América (EUA), Mike Herzog, disse à Rádio do Exército de Israel, no dia 25, que poderia ser alcançado, dentro de dias, um acordo de cessar-fogo para acabar com os combates entre Israel e o Hezbollah, com sede no Líbano.

O Médio Oriente, a par da situação na Ucrânia, foi um dos temas prioritários da cimeira, estando os líderes a enfrentar uma pressão crescente para o fim do conflito, quer no Líbano, quer na Faixa de Gaza. Tão premente é esta temática que foi a primeira vez que aos ministros do G7 se juntaram os seus homólogos da Arábia Saudita, do Egito, da Jordânia, dos Emirados Árabes Unidos e do Catar – o “Quinteto Árabe” –, bem como o secretário-geral da Liga Árabe.

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Na verdade, foi com grado que se ouviu, no dia 26, o presidente norte-americano, Joe Biden, a anunciar que, nos próximos 60 dias, Israel irá retirar, gradualmente, as suas forças do Sul do Líbano. Porém, frisava que Israel tem direito à autodefesa se o Hezbollah violar o acordo, em conformidade com o direito internacional.

O acordo de cessar-fogo entre Israel o grupo xiita Hezbollah, sediado no Líbano, entrou em vigor no dia 27, às 4h00 locais (duas horas em Lisboa).

A trégua, aprovada pelo governo israelita, durará 60 dias, segundo o presidente do país (os EUA) que mediou as conversações, foi desenhada para ser permanente.

Num discurso a partir do no Jardim das Rosas, da Casa Branca, em Washington D.C., Joe Biden afirmou que os governos de Israel e do Líbano aceitaram a proposta dos EUA para pôr fim a um conflito “devastador”. Por conseguinte, os civis de ambos os lados poderão, em breve, regressar em segurança às suas comunidades e começar a reconstruir as suas vidas.

Horas antes, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, já tinha anunciado o acordo de cessar-fogo, que abre espaço para pôr termo a quase 14 meses de combates, iniciados após a resposta israelita ao ataque do Hamas, a 7 de outubro de 2023.

Numa comunicação ao país, Benjamin Netanyahu começou por se dirigir aos residentes do Norte de Israel, dizendo-se orgulhoso da sua perseverança e resistência e vincando que a guerra não terminará, enquanto os habitantes do Norte de Israel não puderem regressar a casa em segurança. Depois, afirmando que o Hezbollah sofreu forte revés na sequência da campanha militar israelita, disse que “já não é o mesmo Hezbollah” e que Israel fez o grupo recuar “décadas”. Com efeito, Hassan Nasrallah, qualificado como “a cabeça da serpente”, foi morto, assim como “todos os líderes” do Hezbollah. “Destruímos a maior parte dos rockets e mísseis. Matámos milhares de terroristas e destruímos as infraestruturas subterrâneas perto das nossas fronteiras”, adiantou Netanyahu, garantindo que, se o Hezbollah violar o acordo de cessar-fogo, rearmando-se e atacando, Israel, que se manterá unidos até à vitória, reagirá de forma “enérgica”.

Todavia, Israel não desiste das hostilidades. Ao invés, o fim do conflito com o Hezbollah, na ótica de Netanyahu, permite a Israel “atualizar” e “rearmar” as suas tropas, sublinha, tendo as forças israelitas, em breve, à disposição mais armamento, armamento sofisticado.

Outro dos objetivos do acordo de cessar-fogo, como refere Netanyahu, é isolar o Hamas. “O Hamas estava a contar com o Hezbollah a lutar em conjunto e, uma vez eliminado o Hezbollah, o Hamas fica sozinho”, sustenta, garantindo: “A nossa pressão sobre o Hamas será cada vez mais forte e isso vai ajudar-nos a recuperar os nossos reféns.”

Do lado libanês, o primeiro-ministro interino, Najib Mikati, afirma que a comunidade internacional deve “atuar rapidamente”, para travar a ofensiva israelita e para “aplicar um cessar-fogo imediato”. E sublinha que o povo de Beirute “suportou muito hoje, como sempre suportou o maior fardo para todo o Líbano.

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No dia 26, o Gabinete de Segurança de Israel aprovou o acordo de cessar-fogo no Líbano numa votação de 10-1, logo após a recomendação do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu.

O acordo pretende uma pausa de 60 dias no conflito, mas Joe Biden, para quem a decisão de Israel é uma boa notícia, assegura que a perspetiva é a da “cessação permanente das hostilidades”.

Nos próximos 60 dias, o exército libanês e as forças de segurança do Estado serão mobilizados e assumirão o controlo do seu território. As infraestruturas do Hezbollah no Sul do Líbano não podem ser reconstruídas. Israel retirará, gradualmente, as forças que lhe restam, nos próximos 60 dias. E os civis de ambos os lados poderão regressar em segurança às suas comunidades.

Os EUA têm dado firme apoio a Israel, apoio que Joe Biden reiterou, desta vez, afirmando que, se “o Hezbollah ou qualquer outra pessoa quebrar o acordo e representar uma ameaça direta a Israel, então o país mantém o direito à autodefesa”. Neste ponto, alinha com a declaração de Benjamin Netanyahu, após a sua recomendação ao Conselho de Ministros, onde avisou que “a duração do cessar-fogo depende do que vai acontecer no Líbano”.

O primeiro-ministro israelita frisou que, no entendimento com os EUA, Israel ficou a manter total liberdade de ação militar, de modo que, se o Hezbollah violar o acordo e tentar armar-se ou se tentar renovar as infraestruturas terroristas perto da fronteira, Israel atacará.

Biden agradeceu ao presidente francês, Emmanuel Macron, pela sua parceria na obtenção do acordo e disse que os EUA trabalhariam em conjunto com França e com outros países para fornecer a assistência necessária a uma bem-sucedida implementação do acordo.

Numa videomensagem de vídeo, o presidente francês saudou o acordo de cessar-fogo e afirmou que este marcava uma “nova página” para o Líbano. “É importante que este cessar-fogo seja respeitado, que dure para restaurar a segurança dos Libaneses, a segurança dos Israelitas, para permitir o regresso dos deslocados de ambos os países às suas casas e para permitir a restauração da soberania do Líbano”, disse Macron, sublinhando que a restauração da soberania do Líbano exige a eleição de um novo presidente “capaz de unir o povo libanês através da formação, também, de um governo forte e representativo e da adoção das reformas necessárias para a recuperação económica e financeira do país”.

Outros líderes mundiais também manifestaram o seu apoio ao acordo, na plataforma das redes sociais X. Isaac Herzog, presidente de Israel, julga a decisão “correta e importante” e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, considera-a “notícia muito encorajadora”. Ao invés, o líder da oposição israelita, Yair Lapid, criticou o acordo, dizendo que “Netanyahu não sabe como trazer segurança a Israel”, e apontou a urgência de acordo sobre os reféns.

O acordo não é um dado adquirido, mantém-se frágil e reversível. O anúncio de Joe Biden foi feito momentos antes de um ataque aéreo israelita ter abalado a capital libanesa. Nas horas que antecederam a reunião do Conselho de Ministros, Israel emitiu um número recorde de avisos de evacuação, e as autoridades locais afirmam que os ataques em todo o Líbano mataram, pelo menos, 24 pessoas, no dia 26. Na verdade, Israel tinha assinalado que continuaria os ataques até à aplicação do acordo de cessar-fogo às 4h00 da manhã, hora local. Por sua vez, o Hezbollah também disparou rockets, fazendo disparar as sirenes dos ataques aéreos no Norte de Israel.

Outra fragilidade do acordo é que a pausa nos combates entre Israel e o Hezbollah não abrange a guerra de Israel em Gaza. Mesmo assim, Joe Biden espera que o acordo de cessar-fogo seja um catalisador para se chegar a um acordo entre Israel e o Hamas. Por isso, os EUA irão trabalhar em conjunto com a Turquia, com o Egito, com o Qatar e com Israel, nos próximos dias, com vista a um acordo entre Israel e o grupo militante Hamas, pois, “tal como o povo libanês merece um futuro de segurança e de prosperidade, também o povo de Gaza merece”, na ótica de Biden.

O ainda ocupante da Casa Branca referiu que os EUA “continuam preparados para concluir um conjunto de acordos históricos com a Arábia Saudita, incluindo um pacto de segurança e de garantias económicas, juntamente com uma via credível para o estabelecimento de um Estado palestiniano e a normalização total das relações entre a Arábia Saudita e Israel”. E mostrou-se convicto de que a única via para um acordo inclui a libertação dos reféns. Porém, ainda recentemente, os EUA vetaram (pela quarta vez, neste ano) uma resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) a apelar a um cessar-fogo em Gaza, aduzindo que não colocava como condição a libertação dos reféns.

O presidente eleito Donald Trump, que tomará posse a 20 de janeiro, já disse que iria trazer a paz ao Médio Oriente, mas não explicitou como.

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Este acordo de cessar-fogo, frágil à nascença, como dissemos, mantém a geopolítica mundial numa espécie de limbo, à espera da chegada de Donald Trump à Casa Branca, a 20 de janeiro. A duração acordada é de 60 dias e pode haver interesses táticos, não saudáveis, de ambas as partes.

Mesmo assim, é a vitória diplomática que Biden que procurava para amenizar a saída penosa da presidência dos EUA – contraditória com a autorização de armas norte-americanas, em solo russo, pela Ucrânia. O grande objetivo será um cessar-fogo em Gaza, ansiado e não concretizado, mas já é alguma coisa. Dificilmente o presente acordo será um passo para um plano abrangente de paz no Médio Oriente.

“As pessoas de Gaza passaram por um inferno, o seu mundo está absolutamente destruído”, lamentou Joe Biden, considerando que a “única saída” para o Hamas é libertar os restantes reféns e pôr fim aos combates. Ao mesmo tempo, o presidente norte-americano falou de “acordos históricos”, a curto prazo, o que poderá incluir a normalização de relações entre Israel e a Arábia Saudita e o caminho para a criação de um Estado Palestiniano – ambição excessiva para o tempo de presidência que lhe resta (menos de dois meses).  

No entanto, este cessar-fogo, se for concretizado, dará vantagem a ambos os lados: o Hezbollah, reconstruindo-se, pode fazer regressar parte dos 1,3 milhões de pessoas deslocadas, especialmente no Sul (região, há muito dominada, pelo grupo xiita); e Israel pode rearmar-se e dar descanso às suas Forças Armadas, além de fazer regressar 60 mil deslocados ao Norte do país.

Além disso – e mais importante para Israel – é o governo de Telavive poder voltar a focar-se no Irão (que julga ser “a maior ameaça na região”), batalha para a qual Israel precisa de apoio internacional. Ora, Benjamin Netanyahu assumiu a diminuição no fornecimento de armas por parte dos EUA, pelo que estará à espera de um acordo com Donald Trump, que redunde no aumento dos fornecimentos.

O acordo de cessar-fogo prevê a retirada das forças israelitas do Líbano e das forças do Hezbollah da região a Sul do rio Litani, a 30 quilómetros da fronteira israelita. As Forças Armadas Libanesas e um comité de supervisão liderado pelos EUA monitorizarão o acordo, que alguns especialistas acreditam que será cumprido, o que não dou por garantido, em virtude das declarações no sentido da legítima defesa de Israel (por Biden e por Netanyahu). É fácil haver um incidente!

Esta pausa pode não passar de uma ocorrência e a tensão continuar no Médio Oriente. Porém, é melhor do que nada.

2024.11.27 – Louro de Carvalho

Questões sobre eventual candidatura presidencial de Gouveia e Melo

 

É voz corrente que o chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), almirante Gouveia e Melo, não estará disponível para ser reconduzido no cargo, tendo-o já comunicado ao ministro da Defesa Nacional. Coisa diferente seria ter recusado o cargo, como referem alguns, o que o distinto militar não faria, contrariando o Estatuto dos Militares das Forças Armada (EMFAR). 

Por conseguinte, verificando haver sinais de apoio de alguns autarcas de Norte a Sul do país, irá entrar na corrida presidencial a Belém – o que se prevê ser anunciado em março, se vir que tem condições políticas para tanto –, pelo que deverá ficar a trabalhar num gabinete da Marinha, ao serviço do Ministério da Defesa e da Marinha, até ter todo o tempo necessário para a reserva.

O seu nome ganhou notoriedade na fase crítica do combate à pandemia de covid-19, pois sucedeu, a um desajeitado ex-secretário de Estado, na coordenação, com destacado grau de sucesso, do plano nacional de vacinação contra a covid-19. Na verdade, como as vacinas entravam em Portugal, um pouco a conta-gotas, havia condições para programar a distribuição sem grandes sobressaltos, selecionando os grupos prioritários, de acordo com as diretivas da Direcção-Geral da Saúde (DGS). O próprio Presidente da República chegou a “distanciar-se” da campanha da vacinação, estribado na memória do que ocorrera com a anterior vacinação contra a gripe.

Porém, o então vice-almirante deu notório sentido de missão à task-force que liderava, aparecendo de camuflado e surgindo onde entendia que a sua presença era necessária, bem como respondendo a varias solicitações de declarações públicas e, mesmo, de entrevistas, o que o seu sucessor, um coronel médico não conseguiu. E, quando deixou a task-force, interpelada a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, referiu que, provavelmente, teríamos de nos habituar à sua pessoa.  

Em setembro de 2023, uma sondagem SIC / Expresso apontava o almirante como o preferido dos eleitores para ser o próximo Presidente da República, pois era um dos mais populares entre o eleitorado de direita e à esquerda, sendo apenas ultrapassado por António Costa. Um ano depois, nova sondagem voltava a atribuir o favoritismo na corrida presidencial a Gouveia e Melo, com a vantagem de quase 6%, face a Pedro Passos Coelho.

Numa das primeiras declarações públicas sobre a hipótese de se candidatar à Presidência da República, o então vice-almirante considerou que “daria um péssimo político” e que se sentia “perfeitamente realizado enquanto militar”. Até alegava não estar preparado para isso e que “devemos separar o que é militar do que é político, porque são campos de atuação completamente diferentes”, segundo referiu em entrevista à agência Lusa, em setembro de 2021. Dois meses mais tarde, dizia-se focado na carreira militar, mas já não descartava a hipótese da candidatura presidencial. Antes, frisava que ambos os setores – político e militar – contribuem para a resolução dos problemas e deixava no ar a possibilidade de vir a estar do outro lado.

Em março de 2023, em entrevista à SIC, o CEMA falou da liderança que encontrou à frente do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e admitiu que a necessidade que sentia em tomar decisões rápidas colidia, por vezes, com outros objetivos de cariz político, tendo Graça Freitas admitido que a pressa do vice-almirante, às vezes, colidia com dados científicos. E, sobre uma eventual candidatura à Presidência da República, afirmou que a pergunta do jornalista não trazia dissabores, por ser “legítima”.

Nove meses depois, rejeitava, liminarmente, a possibilidade de avançar enquanto candidato presidencial e dizia-se “indiferente” às sondagens que o colocavam no topo das intenções de voto.

Volvido quase um ano, a questão da demanda presidencial de Gouveia e Melo virou 180 graus e, após meses de especulação sobre a continuidade como CEMA, o almirante parece ter o propósito de se candidatar a Belém, sendo de recordar uma das suas asserções no sentido de ser antidemocrático coartar a possibilidade de os militares intervirem politicamente.

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A 25 de novembro, o primeiro-ministro (PM), confrontado com a hipótese da candidatura presidencial do almirante, disse que ninguém deve estar excluído das presidenciais.

Foi no âmbito da conferência que assinala o terceiro ano da CNN Portugal, sobre “Portugal e o desafio da competitividade europeia”, num painel moderado pelo jornalista Anselmo Crespo, que o PM excluiu apresentar uma moção de confiança ao governo, considerando que o seu executivo não teve estado de graça. E, na fase final de uma entrevista de cerca de meia hora, ao ser questionado se considera preocupante a possibilidade de voltar a ter um militar na Presidência da República, em referência a notícias que dão conta de uma candidatura do atual CEMA, respondeu: “Não, por si só, não me parece que seja essa a questão. A questão que se vai colocar ao povo português é escolher a melhor personalidade para cumprir as competências constitucionais que estão determinadas para o exercício da mais alta magistratura do Estado, que é a Presidência da República, e ninguém deve estar excluído por ter determinada condição ou incluído por ter uma outra condição diferente.”

Luís Montenegro defendeu que quem concluir estar em condições de concorrer a Belém deve ter “perfeito conhecimento da realidade política, da realidade económica, da realidade social do país, do seu contexto a nível europeu e internacional” e reiterou que o Partido Social Democrata (PSD) deve aguardar por candidatos dentro do partido, como refere a moção de estratégia com que se recandidatou à liderança dos sociais-democratas.

Questionado se está escolhido o próximo CEMA, respondeu negativamente, mas sem confirmar ou desmentir se Gouveia e Melo se excluiu de eventual recondução, e negou ter ficado chocado por ter visto o ministro da Defesa reunir-se num bar com o almirante. “Esta semana, nós vamos lançar o processo tendente à decisão de nomeação, que deverá estar concluída até 27 de dezembro”, afirmou.

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Muitos políticos assustaram-se e alguns comentadores ficaram preocupados com a ascensão de um militar a Belém, cerca de 40 anos depois de Ramalho Eanes. Não é inédita a situação. Alguns militares na situação de reserva candidataram-se, embora sem êxito. A novidade está numa candidatura equacionada enquanto o militar ainda está no ativo, a aguardar pela idade legal ou pelo tempo de serviço necessário para passar à reserva. Ramalho Eanes também estava no ativo, quando se equacionou a sua candidatura, em 1976. Era um tenente-coronel graduado em general para exercer as funções de chefe do Estado-Maior do Exército (CEME). E foi daí, sem deixar o cargo, que se catapultou a candidato presidencial, ao passo que o almirante Pinheiro de Azevedo, deixou o cargo de PM nas mãos do comandante Vasco Fernando Leote Almeida e Costa (ministro da Administração Interna), para assumir a candidatura presidencial, que não vingou. Porém, Eanes percebeu, cedo, que o regime evoluía para a vertente civilista e, aquando da recandidatura, em 1980, já tinha passado à reserva.        

Os críticos do almirante apontam o risco de militarização da política, com maior controlo do governo pelas Forças Armadas (FA); a polarização e a instabilidade social, sobretudo se o militar tiver apoio das FA e não da maioria da população; maior potencial para desrespeito aos direitos humanos; o risco de autoritarismo, como restrição da liberdade de expressão, censura aos media, ou repressão de opositores e enfraquecimento das garantias constitucionais – em nome da ordem e da estabilidade; a criação de precedente, encorajando militares a envolverem-se na política; e a desconfiança internacional.

A contra-argumentação sustenta que, há 48 anos, temos uma sólida Constituição da República Portuguesa (CRP), imune a retrocesso ou a militarização; o Presidente não é executivo, pelo que as ameaças à liberdade de expressão não partem dele; não há, na estrutura militar, tentação de subversão da ordem política; não se conhece qualquer posição do almirante contrária ao respeito dos direitos fundamentais; e sendo a eleição direta e unipessoal, Gouveia e Melo teria o apoio da maioria dos votantes – pelo que o país estaria a salvo de tensões com os seus aliados.

Entretanto, é de ter em conta que o EMFAR estabelece como um dos deveres especiais dos militares “o dever de isenção partidária, nos termos da Constituição” (artigo 12.º, n.º 1, alínea i)), em harmonia com o artigo 275.º, n.º 4 da CRP. Pode dizer-se que a candidatura presidencial é pessoal, não partidária. Porém, candidato que não tenha apoio partidário forte não terá sucesso. Por outro lado, vários cidadãos estão impedidos de se candidatarem a determinados cargos políticos eletivos e querem que outros o estejam (ou não voltem ao exercício antigo: magistrados), mas há complacência com o almirante.

As contraindicações acima expostas não podem excluir-se de todo, pois a extrema-direita está em franca ascensão no Mundo e na Europa (Portugal não é exceção) e sabe escolher ou aproveitar os salvadores da Pátria. E o almirante foi, em certa medida, mitificado como tal.

Apesar da linha equilibrada da CRP, o atual Presidente da República tem conseguido levar a cabo a concretização de quase todas as suas ideias, sem a mínima contestação de qualquer dos órgãos de soberania. E o almirante não tem menor ambição, embora tenha menor cultura jurídica. Parecia querer tudo para a Marinha, repreendeu publicamente militares que não avançaram com um navio, antecipou-se a juízos na inspeção e da Justiça, no caso de um assassinato de polícias por fuzileiros e exonerou um capelão, sem processo disciplinar, que veio, depois, a readmitir. Juntamente com suas declarações de sanidade política, registam-se algumas que são populistas, como: “A Saúde tem muitas coisas, todos os ministérios têm. Este país levava anos a endireitar” (Nascer do Sol, junho de 2021). “Faltam-nos líderes com visão política, para definir objetivos, estratégias e encontrar recursos para os cumprir. Se defino objetivos irrealizáveis, por não ter recursos, o que vou fazer? Passar a vida a escrever papéis e a deixar as coisas a degradarem-se? Porque quero manter-me num pseudolugar com um pseudopoder? Isso revolta-me. A população deve ser ambiciosa” (Expresso, dezembro 2021). “Acho que devíamos fazer uma revolução cultural e de atitude que nos libertasse dos pesos que, há anos, nos prendem ao chão” (Noticias Magazine, dezembro 2021).

Não é total verdade que, agora, os ditadores se disfarcem, segundo alguns. Os casos Bolsonaro, Trump, Putin e os dos presidentes da Argentina, das Filipinas e da Nicarágua falam por si.               

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Entretanto, o almirante concita o apoio de muitos, devido à fragilidade das instituições democráticas e das crises institucionais que enfraqueceram o sistema político. Por exemplo, a maior parte dos cidadãos não confia no governo; menos confiam nos partidos e no Parlamento; e a maior parte não está satisfeita com os serviços administrativos que utiliza.

É certo, segundo dizem, que Gouveia e Melo se posicionou, com tempo e método, como forte candidato presidencial. Tem gravitas e discurso e posiciona-se onde os partidos têm mais dificuldade em afirmar-se, na concretização. Porém, como Eanes (outrora), cria ou aceita que lhe criem o ambiente da candidatura a partir dum cargo de cariz apartidário que desempenha – mais ilegítimo do que a posição marcelista a partir da televisão, nomeadamente, da TVI.

Por outro lado, o almirante também abriga um risco próprio: gostando de se apresentar como homem de ação e impaciente, ao não ver as vontades alinhadas na direção que deseja, pode tentar-se a resolver os problemas pessoalmente. Ora, o cargo não lho permite, não por o Presidente não ter papel executivo – que tem, uma vez que lhe compete promulgar ou vetar as leis, os decretos-leis e os decretos-regulamentares, bem como ratificar tratados internacionais –, mas porque é titular de órgão de soberania de topo, cuja função é representativa, fautora de coesão e de garantia da Constituição, não lhe cabendo tomar iniciativa, legislar, administrar, operar ou julgar. Normalmente, convoca, homologa, nomeia sob proposta, decide sob autorização ou ouvindo.   

O Presidente da República deverá ser alguém que conheça os protagonistas, que saiba trabalhar a arte da política, que incentive os partidos a alinharem-se em torno dos grandes desafios nacionais. O Presidente terá sucesso se souber utilizar a magistratura de influência. Mais do que mostrar que sabe tudo e que é possível fazer tudo e já, importa que ouça, pondere, decida e fale, de modo a ser escutado e respeitado, pela simpatia e pela gravitas. Fará assim o almirante?

2024.11.26 – Louro de Carvalho