quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Renúncia de juiz e vice-presidente do TC é de ética duvidosa

 

O Expresso noticiou, a 23 de setembro que a eleição na Assembleia da República (AR) de três novos juízes para o Tribunal Constitucional (TC), inicialmente, prevista para 26 de setembro, voltou a ser adiada, porque nenhum partido apresentou nomes para os cargos cujos titulares estão em fim de mandato. Nesta circunstância política, o seu vice-presidente, Gonçalo Almeida Ribeiro, anunciou que vai renunciar ao cargo, após ter ultrapassado a duração do seu mandato e apesar de ainda não ter sido eleito o seu sucessor.
A Constituição da República (CRP) estipula, no seu artigo 222.º, n.º 3, que o mandato dos juízes do TC “tem a duração de nove anos e não é renovável”. O mesmo estabelece o artigo 21.º (n.os 1 e 2) da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro.  
Ora, Gonçalo Almeida Ribeiro tomou posse como juiz em julho de 2016, após ter sido eleito na AR, por indicação do Partido Social Democrata (PSD). Agora, em comunicado, afirma que o seu mandato de juiz do TC terminou a 22 de julho, mas optou por manter-se no cargo, porque, além de a lei prever que os juízes permanecem em funções até à tomada de posse do seu sucessor, entendeu dever aguardar até ao fim de setembro para que a AR tivesse a oportunidade de eleger novos juízes, visto que os trabalhos parlamentares foram interrompidos em agosto. Porém, como é do domínio público que a eleição não terá lugar nesse prazo, tomou a decisão de, no fim do mês, deixar o cargo que teve “a honra de exercer ao longo dos últimos nove anos e dois meses”.
O magistrado salienta que a sua saída do TC implica a necessidade de os juízes conselheiros elegerem novo vice-presidente e, porque o regime de eleição “repousa no pressuposto de que o colégio está completo”, sustenta que é seu dever renunciar, primeiro, ao mandato de vice-presidente. E prometeu fazê-lo a 30 de setembro, dando ao presidente do TC o ensejo de convocar o plenário para a eleição do sucessor, no dia seguinte, ou seja, 1 de outubro, vindo a renunciar “ao mandato de juiz conselheiro, imediatamente após essa eleição”.
O juiz conselheiro do TC afirma que, ao proceder deste modo, segue “o precedente firmado em 2021, em circunstâncias análogas”. De facto, a 15 fevereiro de 2021, o juiz conselheiro Manuel da Costa Andrade apresentou “declaração escrita de renúncia às suas funções de juiz do Tribunal Constitucional, a qual não depende de aceitação e produz efeitos imediatamente”, nos termos do artigo 23.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (que estabelece a organização, o funcionamento e o processo do TC), na redação que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 4/2019, de 13 de setembro. Porém, já a 16 de janeiro de 2020, “o juiz conselheiro Cláudio Ramos Monteiro apresentou declaração escrita de renúncia às suas funções de juiz do Tribunal Constitucional, a qual não depende de aceitação e produz efeitos imediatamente”, nos termos do artigo 23.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (que estabelece a organização, o funcionamento e o processo do TC), na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro.
Na verdade, nos termos do artigo 23.º da lei que estabelece a organização, o funcionamento e o processo do TC, as funções dos juízes do TC “cessam antes do termo do mandato, quando se verifique qualquer das situações seguintes: a) morte ou impossibilidade física permanente; b) renúncia; c) aceitação de lugar ou prática de ato legalmente incompatível com o exercício das suas funções; d) demissão ou aposentação compulsiva, em consequência de processo disciplinar ou criminal” (n.º 1); “a renúncia é declarada por escrito ao presidente do tribunal, não dependendo de aceitação” (n.º 2); “compete ao tribunal verificar a ocorrência de qualquer das situações previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1, devendo a impossibilidade física permanente ser previamente comprovada por dois peritos médicos designados também pelo tribunal” (n.º 3); “a cessação de funções em virtude do disposto no n.º 1 é objeto de declaração que o presidente do tribunal fará publicar na 1.ª série do Diário da República” (n.º 4).
A renúncia é legítima à face da lei, mas este caso concreto parece configurar um certo mal-estar dentro do próprio TC e na relação do juiz com a AR. Em agosto, Gonçalo Almeida Ribeiro criticou a declaração de inconstitucionalidade das alterações à Lei de Estrangeiros, sustentando que as medidas adotadas pelo decreto da AR eram “perfeitamente razoáveis” e sugerindo que a decisão se tinha baseado em convicções pessoais – posição contrária à do presidente do TC e da maioria. Aliás, mais quatro juízes fizeram declarações de voto críticas, considerando que as medidas do decreto são “perfeitamente razoáveis”, e sugerindo que a decisão da maioria do TC se baseou mais em convicções pessoais do que em argumentos jurídicos.
Em declaração de voto conjunta anexa ao acórdão do TC que declarou inconstitucional cinco normas da Lei de Estrangeiros, Almeida Ribeiro e José António Teles Pereira dizem discordar dessa decisão. Para os dois juízes, apesar de algumas das normas constantes no decreto da AR “serem polémicas e discutíveis”, são “perfeitamente razoáveis e legítimas”, constituindo “uma expressão normal da arbitragem democrática do dissenso político”. Nestes termos, defendem que “a legislação numa democracia constitucional não deve ser produto de uma transação entre as preferências políticas da maioria parlamentar e da maioria dos membros da jurisdição constitucional, mas um exercício de liberdade programática limitado pelo respeito pelos direitos fundamentais e princípios estruturantes de uma república de pessoas livres e iguais”.
Os dois juízes sustentam que, para um juízo constitucional informado por valores tão abstratos e elásticos se revelar exemplo de razão jurídica, deve satisfazer o ónus exigente de fundamentação, o que não se verificou nos argumentos do acórdão em causa. Reconhecem que “as opções do legislador, relativamente ao direito dos estrangeiros, devem “merecer um escrutínio severo ou um controlo intensificado por parte do juiz constitucional”, mas um escrutínio judicial intenso, na sua ótica, “não pode ser um pretexto para os juízes transportarem para o plano constitucional as convicções que legitimamente têm enquanto cidadãos – violando a igualdade democrática –, antes constituindo-os num dever acrescido de se inteirarem dos factos pertinentes, examinarem os textos aplicáveis, consultarem doutrina autorizada e de articularem argumentos consistentes, cuidadosos, ponderados e persuasivos”.
Considerando que isso não é “verdadeiramente viável”, neste caso, visto que o Presidente da República (PR) pediu que o TC se pronunciasse em 15 dias, frisam que, ante a urgência do pedido, o melhor “seria procurar respaldo noutras jurisdições”, como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) ou o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Em vez disso, proferiu-se um acórdão de “exigências constitucionais inéditas” e de “esboço de um caderno de encargos”.
Também a juíza conselheira Maria Benedita Urbano discordou da decisão da maioria. Na sua declaração de voto, sustenta que o chumbo do diploma “tem como consequência a manutenção de uma política de fronteiras abertas” e a decisão mostra-se “alheada (ou não a tem na devida consideração)” da “realidade socioeconómica atual do país, com setores vitais, como a saúde, a habitação e o ensino, em risco de colapsar”. “Basta viver em Portugal e ter em atenção e, mais do que isso, sentir a realidade que nos rodeia, para ter a certeza de que a situação catastrófica que, presentemente, presenciamos no nosso país, não entra na categoria das fake news”, observou.
O outro juiz que discordou da decisão do TC foi João Carlos Loureiro, que, em declaração de voto, defende que, “num quadro de separação de poderes, é irrelevante o que cada juiz constitucional pensa sobre o mérito das soluções resultantes de opções político-legislativas”, devendo “apenas nortear-se por uma avaliação jurídico-constitucional, num quadro marcado por uma relevante internormatividade, em que importam referentes internacionais e supranacionais”. Porém, diz que a decisão foi tomada “em circunstâncias particularmente difíceis”, numa alusão ao facto de o PR ter pedido ao TC pronuncia no prazo de 15 dias.

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A longa a lista de órgãos externos inclui os representantes da AR no Conselho de Estado, no Conselho Superior de Defesa Nacional, o provedor de Justiça e a indicação de juízes (três, no momento) para o TC, entre outros. A votação estava agendada para o dia 26, mas nenhum partido apresentou nomes para os cargos que a AR tem de indicar, pelo que foi adiada, novamente. E, embora nenhum partido tenha pedido, formalmente, o adiamento, o prazo para as audições prévias dos candidatos (obrigatórias, nalguns casos) foi ultrapassado, pelo que presidente da AR levou o tema à conferência de líderes do dia 24, para se agendar nova data.
A falta de pressa dever-se-á, em parte, ao facto de a AR não querer misturar a eleição dos juízes com a nova votação da Lei de Estrangeiros, que o TC inviabilizou em agosto. O governo terá pronta a nova formulação da lei, para a levar a votos na AR, muito em breve, arrumando o processo legislativo antes do Orçamento e das eleições autárquicas.
As últimas eleições legislativas acabaram com a “maioria constitucional” entre o Partido Socialista (PS) e o PSD, complicando os entendimentos, que têm de ir além dos dois partidos, quando é exigida por aprovação por dois terços dos deputados em efetividade de funções. E a passagem do partido Chega a segunda força parlamentar baralha as contas, podendo significar que alguns lugares que sempre foram distribuídos entre o PSD e o PS tenham de incluir nomes indicados por aquele partido. A AR suspende trabalhos na segunda semana da campanha eleitoral para as eleições autárquicas, de 6 a 12 de outubro. Depois, retoma-os, mas só até ao período de debate orçamental, iniciar no fim de outubro e a terminar no fim de novembro.

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A legitimidade democrática não advém só do voto. A separação e a interdependência dos poderes são tão importantes, para a democracia, como o voto. A tentativa de controlar o tribunal que verifica o respeito pela CRP é o primeiro passo dos autocratas, vindo, a seguir, a mudança da CRP, garantindo o direito de voto, mas não a separação e a interdependência dos poderes.
Gonçalo Almeida Ribeiro, o vice-presidente do TC que o PSD de Passos Coelho indicou, é um bom polemista, a começar pela forma como impõe as suas convicções pessoais e a ideologia, no exercício da sua atividade profissional, o que verbera, de forma incomum, nos juízes que votaram em sentido diverso do seu, na fiscalização da constitucionalidade na Lei de Estrangeiros.
Paulo Baldaia, em artigo de opinião intitulado “Constitucional, o teste de algodão da AD”, publicado pelo Expresso, a 11 de agosto, fala do juiz pré-renunciante, que alimenta a polémica da suposta divisão ideológica no TC, que existe, desde quando sucedeu ao Conselho da Revolução (CR). Ora, Almeida Ribeiro, antes de entrar no TC, considerava-o “um governo de juízes” sem legitimidade democrática. E, segundo o articulista, Almeida Ribeiro não está a trabalhar no TJUE, apesar de, na ótica do próprio, a sua genialidade o merecer, “porque um comité de gente experiente entendeu que a ele, apesar da excelência do seu currículo, lhe faltava experiência”.
Também o articulista sublinha que, embora “a interpretação sobre a conformidade das leis à CRP” possa ter “um viés nas convicções e experiência pessoal de cada um dos juízes”, no entanto, “isso nunca retirou independência à grande maioria deles”. E Mário Soares, o Presidente que mais pedidos de verificação fez (30), embora esperasse mais hipóteses de sucesso, se olhasse para o mapa de férias dos juízes, perdeu em quase metade dos casos (13). E foi essa independência que fez com que, no período da Troika, o TC decidisse, ora a favor ora contra o governo.
Almeida Ribeiro chegou a questionar que sentido faz a opinião de uma maioria simples de juízes prevalecer sobre a de uma maioria de deputados eleitos, quando estão em causa questões onde o texto constitucional não oferece respostas claras. Na ótica do articulista, a questão faria sentido, se a legitimidade democrática viesse apenas do voto, mas importa atentar na igual importância da separação e interdependência de poderes para a democracia. É pela negação desta importância que florescem autocracias eleitorais por todo o Mundo. Controlar o tribunal que verifica o respeito pela Constituição é o primeiro passo dos autocratas. O segundo é mudar a Constituição, garantido o direito de voto, mas não a separação de poderes.
Por isso, Paulo Baldaia diz aguardar com expectativa como “vai o PSD resolver a necessária substituição de três juízes do TC, no final do verão”. Verifica: “Dois foram nomeados pelo PSD (Almeida Ribeiro e Teles Pereira, que fizeram a declaração de voto de vencidos) e uma nomeada pelo PS.” E pergunta: “Vai procurar manter o equilíbrio e negociar uma lista conjunta com o PS ou vai fazer um ‘all-in’, jogando as cartas do Chega e da IL (Iniciativa Liberal), e fazer todas as mudanças no TC (estas são apenas as primeiras de várias nesta legislatura) à direita?” 

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Pronunciando-se sobre a renúncia do juiz e vice-presidente do TC, o constitucionalista Vital Moreira, no blogue “Causa nossa”, a 24 de setembro, diz discordar da decisão de um juiz e vice-presidente do TC deixar “o exercício do cargo, antes de ser devidamente substituído”.
Como lembra Vital Moreira, a lei estabelece que os juízes do TC só “cessam funções com a posse do juiz designado para ocupar o respetivo lugar”. Na verdade, o artigo 21.º, n.º 1, da Lei Orgânica do TC estabelece que os juízes do TC “são designados por um período de nove anos, contados da data da posse, e cessam funções com a posse do juiz designado para ocupar o respetivo lugar.” E, além da vontade de renúncia, não se verifica qualquer circunstância das previstas no artigo 23.º: morte ou impossibilidade permanente, incompatibilidade, demissão ou aposentação compulsiva.
Depois, na ótica do eminente constitucionalista, “não faz sentido renunciar a um mandato que já terminou, estando em prorrogação”. Até defende que “a prorogatio de cargos públicos constitui um princípio constitucional geral e não apenas uma obrigação legal pontual, quando expressamente estabelecida”, como é o caso. Por outro lado, “por uma questão de responsabilidade republicana, quem aceita um cargo público de duração temporária, deve estar preparado para continuar no exercício de funções, para além do termo do mandato, enquanto não for substituído”, diz Vital Moreira.
Por fim, visto que a composição do TC “dá expressão equilibrada às principais correntes ou ‘sensibilidades’ constitucionais, que podem divergir na interpretação do texto constitucional e gerar decisões por maioria tangencial em litígios constitucionais mais sensíveis político-doutrinariamente”, Vital Moreira, sustenta que, “ao deixar o cargo antes de ser substituído por um juiz da mesma sensibilidade constitucional”, o juiz abre uma vaga “que pode causar um desequilíbrio no statu quo, quanto a esse aspeto crucial do funcionamento do colégio”, podendo originar tensões internas e acusações externas quanto à autoridade pública das suas decisões.

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Enfim, não são poucos os indícios de que esta renúncia tem falha de ética republicana.

2025.09.25 – Louro de Carvalho


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