quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Liberdade, independência e futuro marcam o discurso do estado da UE

 

A 10 de setembro, em Estrasburgo, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, pronunciou o habitual discurso do Estado da União Europeia (UE) no Parlamento Europeu (PE). E, entre as novidades da sua intervenção, sobressaem as propostas do “empréstimo de reparações” à Ucrânia, para ajudar Kiev a financiar o esforço de guerra, de sanções aos ministros israelitas mais radicais e da suspensão parcial do acordo comercial com Israel.
Considerando que a “a Europa está numa luta”, pela liberdade, pela independência e pelo futuro do velho continente, que “o Mundo de hoje é impiedoso” e que “as linhas de batalha para uma nova ordem mundial baseada no poder estão a ser traçadas neste momento”, a líder do executivo comunitário vincou a importância de os 27 priorizarem a própria defesa e segurança.
Com efeito, no dizer de Ursula von der Leyen, não se não pode apenas esperar que a tempestade passe, pois, se a Europa não mostrar força, “arrisca-se a tornar-se irrelevante no cenário global”. Portanto, “a Europa tem de lutar” pelo seu lugar num Mundo de ambições imperiais e de guerras imperiais, “em que muitas grandes potências são ambivalentes ou abertamente hostis à Europa” e “em que as dependências são impiedosamente utilizadas como armas”.
Por conseguinte, sublinhou a presidente da Comissão, “uma nova Europa tem de emergir”, mas, ao mesmo tempo, é preciso acabar com “as divisões internas”.
Na sessão, estava uma criança ucraniana raptada pela Rússia, devolvida à família, graças aos esforços internacionais e dos familiares, o que suscitou o aplauso de pé da parte das diversas bancadas e deu azo a vários anúncios de resposta da Europa ao conflito na Ucrânia.
A líder do executivo, indicando que a UE vai acolher uma cimeira da Coligação Internacional para o Regresso das Crianças Ucranianas, declarou que “todas as crianças raptadas devem ser devolvidas” e que “a liberdade da Ucrânia é a liberdade da Europa”. O objetivo da cimeira é pressionar o fim do rapto de menores, pelos quais o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandado de detenção contra o presidente russo, Vladimir Putin.
Ursula von der Leyen aproveitou o ensejo para se solidarizar com a Polónia, pela invasão do seu espaço aéreo por drones russos. “Ainda hoje, assistimos a uma violação imprudente e sem precedentes do espaço aéreo da Polónia e da Europa por mais de 10 drones Shahed russos. A Europa está em total solidariedade com a Polónia”, asseverou, perante o aplauso uníssono dos eurodeputados.
Tendo em conta que “a mensagem de Putin é clara”, a resposta da UE “também deve ser clara”, entende a presidente da Comissão, sustentando que é preciso exercer mais pressão junto a Rússia, para que se sente à mesa das negociações. Nesse sentido, está a ser preparados a trabalhar no 19.º pacote de sanções, em coordenação com os parceiros da UE, enquanto se evidencia o empenho em eliminar, mais rapidamente, os combustíveis fósseis russos, assim como se analisa “a frota paralela e os países terceiros”.
Ursula von der Leyen, relevando que “ninguém contribuiu mais do que a Europa” para a defesa da Ucrânia, recordou os 170 mil milhões de euros de ajuda financeira enviados por Bruxelas a Kiev, mas sustenta que “esta é uma guerra da Rússia” e que tem de ser Moscovo a pagá-la.
O general português Marco Serronha, especialista em estratégia, declarou, em entrevista ao Diário de Notícias (DN), que “as sanções não chegam”, sendo a única reação eficaz “o pré-posicionamento de dispositivos mais avançados”. Em sua opinião, “os países da linha da frente – a Polónia, a Lituânia – devem ter sistemas de defesa aérea robustos”, mas adverte que os bálticos têm problemas adicionais, por fazerem fronteira direta com a Rússia.
Sobre o “empréstimo de reparações” para continuar a financiar os esforços de guerra da Ucrânia, a presidente do executivo da EU disse que o plano passa por usar os “saldos de caixa” associados aos ativos russos congelados na Europa, sem tocar nos próprios ativos, mas não explicou a sua operacionalização. Em todo o caso, o dinheiro pode ser usado pela Ucrânia, no imediato, e Kiev só devolverá o empréstimo quando a Rússia pagar as reparações pós-guerra.
Este plano tem gerado controvérsia pelos riscos financeiros e jurídicos, designadamente, na Bélgica, onde se encontra a maioria dos ativos russos.
Ursula von der Leyen anunciou que a Comissão Europeia lançará o programa Qualitative Military Edge (Vantagem Militar Qualitativa), para “apoiar o investimento nas capacidades das forças armadas ucranianas” e que a UE vai celebrar uma Aliança de Drones com a Ucrânia, uma iniciativa financiada por um empréstimo de seis mil milhões de euros do Extraordinary Revenue Acceleration (ERA), liderado pelo G-7. “A Ucrânia tem a criatividade. O que precisa é de escala. E, juntos, podemos fornecê-la: para que a Ucrânia mantenha a sua vantagem e a Europa fortaleça a sua”, afirmou, para sustentar que foi o uso de drones que permitiu à Ucrânia eliminar “dois terços” do equipamento russo.
A guerra em Gaza era tópico obrigatório do discurso e a oradora não poupou nas palavras. “O que está a acontecer em Gaza abalou a consciência do Mundo. A fome provocada pelo homem nunca pode ser uma arma de guerra, isto tem de acabar. É simplesmente inaceitável”, declarou, para propor a suspensão parcial do Acordo de Associação UE-Israel, com foco na dimensão comercial – uma medida que alguns estados-membros exigem, há algum tempo.
Afirmou-se cônscia de que a medida dificilmente obterá maiorias, pois “qualquer ação será excessiva, para alguns” e “insuficiente, para outros”, mas que “todos devemos assumir as nossas responsabilidades – Parlamento, Conselho e Comissão”. Porém, ressalvou que não será afetado o financiamento ao museu do Holocausto Yad Vashem e à sociedade civil israelita.
Outra proposta da Comissão ao Conselho inclui sanções aos “ministros extremistas” de Israel e aos “colonos violentos”, o que mereceu os aplausos da maioria do PE. Além disso, a Comissão criará, em outubro, o Grupo de Doadores para a Palestina, visando um instrumento para reconstruir Gaza, pois a única perspetiva para a paz é a solução de “dois Estados”.
Ursula von der Leyen diz que a Europa deve ter as suas capacidades estratégicas independentes para poder proteger-se eficazmente, investindo na vigilância espacial, em tempo real, para nenhum movimento de forças passar despercebido, atendendo ao apelo dos amigos bálticos e construindo uma barreira de drones. Para tanto, prometeu que a Comissão apresentará um “roteiro claro” para “novos projetos comuns de defesa” antes da próxima cimeira do Conselho Europeu, no final de outubro, e disse querer definir “objetivos claros para 2030”, bem como criar “um semestre europeu da defesa”, ainda que não tenha avançado com detalhes sobre esta iniciativa.
A líder do executivo abordou também as tarifas impostas pelos Estados Unidos da América (EUA) à UE e garantiu que as empresas do bloco dos 27 estão em “vantagem”, face aos concorrentes de outras latitudes, que “enfrentam tarifas norte-americanas mais elevadas”. Depois, apesar das fortes críticas de algumas associações europeias ao acordo que fechou com Donald Trump, na Escócia, sentenciou: “Quando se leva em conta as exceções que garantimos e as taxas adicionais que outros têm, temos o melhor acordo, sem dúvida alguma.”
A presidente da Comissão focou a estabilidade como fator “crucial” e, à luz deste pressuposto, frisou que a relação comercial com os EUA “é a mais importante”. Contudo, enviou recados ao presidente dos EUA, assegurando que não fará concessões, no atinente à regulamentação na tecnologia, que ele contestou. Nesse sentido, vincou: “Quero ser muito clara num ponto: quer se trate de regulamentação ambiental ou digital, nós estabelecemos as nossas próprias normas. Nós estabelecemos os nossos próprios regulamentos. A Europa decidirá sempre por si própria.”

***

Conhecido por SOTEU (State of the Union), o discurso sobre o estado da UE, de Ursula von der Leyen, surge num momento excecional de fragilidade e de precariedade para a líder do executivo comunitário, a qual, por isso mesmo, aproveitou o ensejo para mostrar as realizações recentes, antever as iniciativas futuras e definir o tom político para os próximos 12 meses.
De desconhecida, quando foi eleita, pela primeira vez, em 2019, Ursula von der Leyen cultivou, gradualmente, a imagem de líder fiável e eficiente, capaz de guiar UE por águas turbulentas e de impulsionar a integração para profundidades desconhecidas.
A resposta à pandemia de covid-19 levou o executivo a assumir as tarefas sem precedentes de compra de vacinas, que salvam vidas a 450 milhões de cidadãos, e a lançar um fundo de recuperação baseado na emissão em grande escala de dívida comum. A invasão da Ucrânia pela Rússia reforçou as suas credenciais, tornando-a uma das principais vozes na frente ocidental contra a invasão agressiva de Vladimir Putin. Assim, no final de 2022, a revista Forbes nomeou-a a mulher mais poderosa do Mundo; e, em 2024, foi reeleita para um segundo mandato, com 401 votos, um número superior ao que os observadores tinham previsto.
Todavia, em poucos meses, a sua posição sofreu forte queda, com acusações vindas de todos os lados do espetro político, criando a impressão de presidente sob fogo. E a oposição crescente atingiu o auge, em julho deste ano, quando Ursula von der Leyen se viu obrigada a defender a sua presidência contra uma moção de censura apresentada por deputados de extrema-direita. Embora desafiadora, em relação aos proponentes da moção, que apelidou de “fantoches” controlados pela Rússia, ofereceu um ramo de oliveira aos outros eurodeputados, considerando: “Reconheço que há deputados que podem não ter assinado esta moção, mas que têm preocupações legítimas, relativamente a algumas das questões que ela levanta. […] Isso é justo. Faz parte da nossa democracia e eu estarei sempre pronta para debater qualquer questão que esta casa queira, com factos e com argumentos.”
Parecia que o problema estava tratado, mas a contestação continua. Assim, já estão em marcha duas outras moções de censura, o que pressagia um novo ano parlamentar difícil para a Comissão.
A este respeito, Fabian Zuleeg, diretor executivo do Centro de Política Europeia (EPC), apontando como outro problema a agitação interna que assola muitos estados-membros, como a França, dizia que “Ursula von der Leyen tem pela frente uma tarefa difícil no seu Estado da União” e que “o melhor que ela pode esperar é manter o barco firme”, sendo pouco provável que este estado da UE “apresente a agenda verdadeiramente ambiciosa que é necessária".
A insatisfação com a presidência da Comissão está em todo o lado no PE. A sua própria família política, o Partido Popular Europeu (PPE), lançou uma ofensiva total, para minar a legislação aprovada no âmbito do Pacto Ecológico, que Ursula von der Leyen descreveu, orgulhosamente, como o “momento do homem na Lua” do bloco.
O PPE votou, por vezes, em sintonia com as forças de extrema-direita e de direita para atingir o seu objetivo, provocando a fúria dos socialistas, dos liberais e dos verdes, que têm essa aliança informal como violação da promessa feita na campanha para a reeleição.
Na altura, Ursula von der Leyen rejeitou uma cooperação com a extrema-direita, em resposta à exigência dos progressistas para lhe darem votos. Porém, o PPE aproveitou o impulso para simplificar a regulamentação, entusiasticamente aceite pelos estados-membros, e passou à fase da sua agenda contra o Pacto Ecológico, que levanta problemas a grupos relevantes na sociedade europeia, nomeadamente, os agricultores e os fabricantes de automóveis.
Também o choque ideológico fraturou a coligação centrista pró-europeia que deveria servir de base ao segundo mandato da presidente da Comissão. Na verdade, quando submeteu o novo colégio de comissários a votação no PE, foram contados 370 votos a favor, número bastante abaixo dos 401 votos recebidos apenas alguns meses antes.
A relutância do bloco em sancionar Israel pela sua guerra em Gaza enfureceu os eurodeputados de esquerda e levou Teresa Ribera, a segunda responsável da Comissão, a demarcar-se em público; e a proposta de reduzir, em 90%, as emissões de gases com efeito de estufa (GEE), até ao final de 2040, foi deveras criticada pelos conservadores, que prometeram anulá-la.
Porém, foi o acordo comercial entre a UE e os EUA que enfureceu a oposição. Na verdade, nos seus termos, a grande maioria dos produtos fabricados na UE com destino ao mercado dos EUA está sujeita à taxa de 15%, ao passo que a grande maioria dos produtos fabricados nos EUA com destino ao mercado da UE está isenta de direitos. É o caso de um grupo selecionado de produtos, como aviões, matérias-primas essenciais e equipamento de semicondutores, que beneficia do regime “zero por zero”. Além disso, o bloco comprometeu-se a gastar 750 mil milhões de dólares em energia norte-americana, a investir 600 mil milhões de dólares na economia norte-americana e a comprar 40 mil milhões de dólares de chips de IA norte-americanos, até ao final do mandato de Donald Trump, mas os EUA não fizeram qualquer promessa análoga.
Mercê da competência exclusiva da Comissão para definir a política comercial, a culpa pelo acordo tão desequilibrado recaiu, em grande parte, sobre Ursula von der Leyen, prejudicando o até agora seu maior trunfo: a reputação de hábil gestora de crises. E o mais preocupante, para a líder do executivo, é que as críticas mais acutilantes provieram das forças fortemente pró-europeias que apoiam a sua coligação, julgando o acordo uma capitulação que subjuga a UE aos desígnios dos EUA e que torpedeia o objetivo da autonomia estratégica.
Nathalie Tocci, diretora do Istituto Affari Internazionali (IAI), sustentando que a responsabilidade deve ser partilhada com os estados-membros, que “minaram” as negociações, ao falarem, em público, em defesa dos seus interesses individuais. “O problema é a forma como o nacionalismo crescente na Europa e a ascensão da extrema-direita evisceraram e esvaziaram a agenda integracionista da UE e, muito claramente, quase por definição, é esse o objetivo da Comissão", declarou à Euronews, opinando que seria injusto culpar, exclusivamente, a líder do executivo pelo acordo, pois, em muitos aspetos, ela é vítima de contexto político mais alargado, não havendo muito que ela possa fazer.
Após dias de silêncio, Ursula von der Leyen admitiu que o acordo era “sólido, mas imperfeito” e insistiu em que proporcionaria “estabilidade e previsibilidade”, numa altura de turbulência. Porém, a asserção esvaziou-se, quando Trump ameaçou aplicar tarifas adicionais, em retaliação à multa antitrust de 2,95 mil milhões de euros aplicada à Google pela Comissão.
Por último, o espinho que representa, para a UE, a situação político-social, em França, com a demissão do primeiro-ministro, François Bayrou, seguida, em tempo recorde, da posse do novo chefe do governo, Sébastien Lecornu, mercê da rejeição parlamentar da moção de confiança, por via do alegado plano orçamental demolidor. De facto, com os manifestantes a prometer bloquear tudo, o espetáculo de estradas cortadas, contentores incendiados e várias centenas de detidos pela polícia não augura nada de bom para a segunda maior economia da UE.

Resta saber se Ursula von der Leyen terá paciência de aço.

2025.09.10 – Louro de Carvalho


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