A
10 de setembro, em Estrasburgo, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von
der Leyen, pronunciou o habitual discurso do Estado da União Europeia (UE) no
Parlamento Europeu (PE). E, entre as novidades da sua intervenção, sobressaem as
propostas do “empréstimo de reparações” à Ucrânia, para ajudar Kiev a financiar
o esforço de guerra, de sanções aos ministros israelitas mais radicais e da
suspensão parcial do acordo comercial com Israel.
Considerando que a “a Europa está numa luta”, pela liberdade, pela independência e pelo futuro do velho continente, que “o Mundo de hoje é impiedoso” e que “as linhas de batalha para uma nova ordem mundial baseada no poder estão a ser traçadas neste momento”, a líder do executivo comunitário vincou a importância de os 27 priorizarem a própria defesa e segurança.
Considerando que a “a Europa está numa luta”, pela liberdade, pela independência e pelo futuro do velho continente, que “o Mundo de hoje é impiedoso” e que “as linhas de batalha para uma nova ordem mundial baseada no poder estão a ser traçadas neste momento”, a líder do executivo comunitário vincou a importância de os 27 priorizarem a própria defesa e segurança.
Com
efeito, no dizer de Ursula von der Leyen, não se não pode apenas esperar que a
tempestade passe, pois, se a Europa não mostrar força, “arrisca-se a tornar-se
irrelevante no cenário global”. Portanto, “a Europa tem de lutar” pelo seu
lugar num Mundo de ambições imperiais e de guerras imperiais, “em que muitas
grandes potências são ambivalentes ou abertamente hostis à Europa” e “em que as
dependências são impiedosamente utilizadas como armas”.
Por
conseguinte, sublinhou a presidente da Comissão, “uma nova Europa tem de
emergir”, mas, ao mesmo tempo, é preciso acabar com “as divisões internas”.
Na
sessão, estava uma criança ucraniana raptada pela Rússia, devolvida à família,
graças aos esforços internacionais e dos familiares, o que suscitou o aplauso
de pé da parte das diversas bancadas e deu azo a vários anúncios de resposta da
Europa ao conflito na Ucrânia.
A
líder do executivo, indicando que a UE vai acolher uma cimeira da
Coligação Internacional para o Regresso das Crianças Ucranianas, declarou que “todas
as crianças raptadas devem ser devolvidas” e que “a liberdade da Ucrânia é a
liberdade da Europa”. O objetivo da cimeira é pressionar o fim do rapto de
menores, pelos quais o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandado de
detenção contra o presidente russo, Vladimir Putin.
Ursula
von der Leyen aproveitou o ensejo para se solidarizar com a Polónia, pela
invasão do seu espaço aéreo por drones russos. “Ainda hoje, assistimos a uma
violação imprudente e sem precedentes do espaço aéreo da Polónia e da Europa
por mais de 10 drones Shahed russos. A Europa está em total solidariedade com a
Polónia”, asseverou, perante o aplauso uníssono dos eurodeputados.
Tendo
em conta que “a mensagem de Putin é clara”, a resposta da UE “também deve ser
clara”, entende a presidente da Comissão, sustentando que é preciso exercer mais
pressão junto a Rússia, para que se sente à mesa das negociações. Nesse
sentido, está a ser preparados a trabalhar no 19.º pacote de sanções, em
coordenação com os parceiros da UE, enquanto se evidencia o empenho em eliminar,
mais rapidamente, os combustíveis fósseis russos, assim como se analisa “a
frota paralela e os países terceiros”.
Ursula
von der Leyen, relevando que “ninguém contribuiu mais do que a Europa” para a
defesa da Ucrânia, recordou os 170 mil milhões de euros de ajuda financeira
enviados por Bruxelas a Kiev, mas sustenta que “esta é uma guerra da
Rússia” e que tem de ser Moscovo a pagá-la.
O
general português Marco Serronha, especialista em estratégia, declarou, em entrevista
ao Diário de Notícias (DN), que “as sanções não chegam”, sendo a
única reação eficaz “o pré-posicionamento de dispositivos mais avançados”. Em
sua opinião, “os países da linha da frente – a Polónia, a Lituânia – devem ter
sistemas de defesa aérea robustos”, mas adverte que os bálticos têm problemas
adicionais, por fazerem fronteira direta com a Rússia.
Sobre
o “empréstimo de reparações” para continuar a financiar os esforços de guerra
da Ucrânia, a presidente do executivo da EU disse que o plano passa por usar
os “saldos de caixa” associados aos ativos russos congelados na Europa,
sem tocar nos próprios ativos, mas não explicou a sua operacionalização. Em
todo o caso, o dinheiro pode ser usado pela Ucrânia, no imediato, e Kiev só
devolverá o empréstimo quando a Rússia pagar as reparações pós-guerra.
Este
plano tem gerado controvérsia pelos riscos financeiros e jurídicos,
designadamente, na Bélgica, onde se encontra a maioria dos ativos russos.
Ursula
von der Leyen anunciou que a Comissão Europeia lançará o programa Qualitative
Military Edge (Vantagem Militar Qualitativa), para “apoiar o investimento nas
capacidades das forças armadas ucranianas” e que a UE vai celebrar
uma Aliança de Drones com a Ucrânia, uma iniciativa financiada por
um empréstimo de seis mil milhões de euros do Extraordinary Revenue
Acceleration (ERA), liderado pelo G-7. “A Ucrânia tem a criatividade. O que
precisa é de escala. E, juntos, podemos fornecê-la: para que a Ucrânia mantenha
a sua vantagem e a Europa fortaleça a sua”, afirmou, para sustentar que foi o
uso de drones que permitiu à Ucrânia eliminar “dois terços” do equipamento
russo.
A
guerra em Gaza era tópico obrigatório do discurso e a oradora não poupou nas
palavras. “O que está a acontecer em Gaza abalou a consciência do Mundo. A
fome provocada pelo homem nunca pode ser uma arma de guerra, isto tem de
acabar. É simplesmente inaceitável”, declarou, para propor a suspensão
parcial do Acordo de Associação UE-Israel, com foco na dimensão comercial – uma
medida que alguns estados-membros exigem, há algum tempo.
Afirmou-se
cônscia de que a medida dificilmente obterá maiorias, pois “qualquer ação será
excessiva, para alguns” e “insuficiente, para outros”, mas que “todos devemos
assumir as nossas responsabilidades – Parlamento, Conselho e Comissão”. Porém,
ressalvou que não será afetado o financiamento ao museu do Holocausto Yad
Vashem e à sociedade civil israelita.
Outra
proposta da Comissão ao Conselho inclui sanções aos “ministros extremistas”
de Israel e aos “colonos violentos”, o que mereceu os aplausos da maioria do PE.
Além disso, a Comissão criará, em outubro, o Grupo de Doadores para a
Palestina, visando um instrumento para reconstruir Gaza, pois a única
perspetiva para a paz é a solução de “dois Estados”.
Ursula
von der Leyen diz que a Europa deve ter as suas capacidades estratégicas
independentes para poder proteger-se eficazmente, investindo na vigilância
espacial, em tempo real, para nenhum movimento de forças passar despercebido, atendendo
ao apelo dos amigos bálticos e construindo uma barreira de drones. Para tanto, prometeu
que a Comissão apresentará um “roteiro claro” para “novos projetos comuns de
defesa” antes da próxima cimeira do Conselho Europeu, no final de outubro, e disse
querer definir “objetivos claros para 2030”, bem como criar “um semestre
europeu da defesa”, ainda que não tenha avançado com detalhes sobre esta
iniciativa.
A
líder do executivo abordou também as tarifas impostas pelos Estados Unidos da
América (EUA) à UE e garantiu que as empresas do bloco dos 27 estão em “vantagem”,
face aos concorrentes de outras latitudes, que “enfrentam tarifas
norte-americanas mais elevadas”. Depois, apesar das fortes críticas de algumas
associações europeias ao acordo que fechou com Donald Trump, na Escócia, sentenciou:
“Quando se leva em conta as exceções que garantimos e as taxas adicionais que
outros têm, temos o melhor acordo, sem dúvida alguma.”
A
presidente da Comissão focou a estabilidade como fator “crucial” e, à luz deste
pressuposto, frisou que a relação comercial com os EUA “é a mais importante”. Contudo,
enviou recados ao presidente dos EUA, assegurando que não fará concessões,
no atinente à regulamentação na tecnologia, que ele contestou. Nesse sentido,
vincou: “Quero ser muito clara num ponto: quer se trate de regulamentação
ambiental ou digital, nós estabelecemos as nossas próprias normas. Nós
estabelecemos os nossos próprios regulamentos. A Europa decidirá sempre por si
própria.”
***
Conhecido
por SOTEU (State of the Union), o discurso sobre o estado da UE, de Ursula von
der Leyen, surge num momento excecional de fragilidade e de precariedade para a
líder do executivo comunitário, a qual, por isso mesmo, aproveitou o ensejo
para mostrar as realizações recentes, antever as iniciativas futuras e definir
o tom político para os próximos 12 meses.
De desconhecida, quando foi eleita, pela primeira vez, em 2019, Ursula von der Leyen cultivou, gradualmente, a imagem de líder fiável e eficiente, capaz de guiar UE por águas turbulentas e de impulsionar a integração para profundidades desconhecidas.
De desconhecida, quando foi eleita, pela primeira vez, em 2019, Ursula von der Leyen cultivou, gradualmente, a imagem de líder fiável e eficiente, capaz de guiar UE por águas turbulentas e de impulsionar a integração para profundidades desconhecidas.
A
resposta à pandemia de covid-19 levou o executivo a assumir as tarefas sem
precedentes de compra de vacinas, que salvam vidas a 450 milhões de cidadãos, e
a lançar um fundo de recuperação baseado na emissão em grande escala de dívida
comum. A invasão da Ucrânia pela Rússia reforçou as suas credenciais, tornando-a
uma das principais vozes na frente ocidental contra a invasão agressiva de
Vladimir Putin. Assim, no final de 2022, a revista Forbes nomeou-a a
mulher mais poderosa do Mundo; e, em 2024, foi reeleita para um
segundo mandato, com 401 votos, um número superior ao que os observadores
tinham previsto.
Todavia,
em poucos meses, a sua posição sofreu forte queda, com acusações vindas de
todos os lados do espetro político, criando a impressão de presidente sob fogo.
E a oposição crescente atingiu o auge, em julho deste ano, quando Ursula von
der Leyen se viu obrigada a defender a sua presidência contra uma moção de
censura apresentada por deputados de extrema-direita. Embora desafiadora,
em relação aos proponentes da moção, que apelidou de “fantoches” controlados
pela Rússia, ofereceu um ramo de oliveira aos outros eurodeputados, considerando:
“Reconheço que há deputados que podem não ter assinado esta moção, mas que têm
preocupações legítimas, relativamente a algumas das questões que ela levanta. […]
Isso é justo. Faz parte da nossa democracia e eu estarei sempre pronta para
debater qualquer questão que esta casa queira, com factos e com argumentos.”
Parecia
que o problema estava tratado, mas a contestação continua. Assim, já estão em
marcha duas outras moções de censura, o que pressagia um novo ano parlamentar difícil
para a Comissão.
A
este respeito, Fabian Zuleeg, diretor executivo do Centro de Política Europeia
(EPC), apontando como outro problema a agitação interna que assola muitos estados-membros, como
a França, dizia que “Ursula von der Leyen tem pela frente uma tarefa difícil no
seu Estado da União” e que “o melhor que ela pode esperar é manter o barco
firme”, sendo pouco provável que este estado da UE “apresente a agenda
verdadeiramente ambiciosa que é necessária".
A
insatisfação com a presidência da Comissão está em todo o lado no PE. A sua
própria família política, o Partido Popular Europeu (PPE), lançou uma ofensiva
total, para minar a legislação aprovada no âmbito do Pacto Ecológico, que Ursula
von der Leyen descreveu, orgulhosamente, como o “momento do homem na Lua” do
bloco.
O
PPE votou, por vezes, em sintonia com as forças de extrema-direita e de direita
para atingir o seu objetivo, provocando a fúria dos socialistas, dos liberais e
dos verdes, que têm essa aliança informal como violação da promessa feita na
campanha para a reeleição.
Na
altura, Ursula von der Leyen rejeitou uma cooperação com a
extrema-direita, em resposta à exigência dos progressistas para lhe darem
votos. Porém, o PPE aproveitou o impulso para simplificar a regulamentação,
entusiasticamente aceite pelos estados-membros, e passou à fase da sua agenda contra
o Pacto Ecológico, que levanta problemas a grupos relevantes na sociedade europeia,
nomeadamente, os agricultores e os fabricantes de automóveis.
Também
o choque ideológico fraturou a coligação centrista pró-europeia que deveria
servir de base ao segundo mandato da presidente da Comissão. Na verdade, quando
submeteu o novo colégio de comissários a votação no PE, foram contados 370
votos a favor, número bastante abaixo dos 401 votos recebidos apenas alguns
meses antes.
A
relutância do bloco em sancionar Israel pela sua guerra em Gaza enfureceu
os eurodeputados de esquerda e levou Teresa Ribera, a segunda responsável da
Comissão, a demarcar-se em público; e a proposta de reduzir, em 90%, as
emissões de gases com efeito de estufa (GEE), até ao final de 2040, foi deveras
criticada pelos conservadores, que prometeram anulá-la.
Porém,
foi o acordo comercial entre a UE e os EUA que enfureceu a oposição. Na verdade,
nos seus termos, a grande maioria dos produtos fabricados na UE com destino ao
mercado dos EUA está sujeita à taxa de 15%, ao passo que a grande maioria dos
produtos fabricados nos EUA com destino ao mercado da UE está isenta de
direitos. É o caso de um grupo selecionado de produtos, como aviões,
matérias-primas essenciais e equipamento de semicondutores, que beneficia do
regime “zero por zero”. Além disso, o bloco comprometeu-se a gastar 750 mil
milhões de dólares em energia norte-americana, a investir 600 mil milhões de
dólares na economia norte-americana e a comprar 40 mil milhões de dólares de chips
de IA norte-americanos, até ao final do mandato de Donald Trump, mas os EUA não
fizeram qualquer promessa análoga.
Mercê
da competência exclusiva da Comissão para definir a política comercial, a culpa
pelo acordo tão desequilibrado recaiu, em grande parte, sobre Ursula von der
Leyen, prejudicando o até agora seu maior trunfo: a reputação de hábil gestora
de crises. E o mais preocupante, para a líder do executivo, é que as críticas
mais acutilantes provieram das forças fortemente pró-europeias que apoiam
a sua coligação, julgando o acordo uma capitulação que subjuga a UE aos
desígnios dos EUA e que torpedeia o objetivo da autonomia estratégica.
Nathalie
Tocci, diretora do Istituto Affari Internazionali (IAI), sustentando que a
responsabilidade deve ser partilhada com os estados-membros, que “minaram” as
negociações, ao falarem, em público, em defesa dos seus interesses individuais.
“O problema é a forma como o nacionalismo crescente na Europa e a ascensão da
extrema-direita evisceraram e esvaziaram a agenda integracionista da UE e,
muito claramente, quase por definição, é esse o objetivo da Comissão", declarou
à Euronews, opinando que seria injusto culpar, exclusivamente, a líder
do executivo pelo acordo, pois, em muitos aspetos, ela é vítima de contexto
político mais alargado, não havendo muito que ela possa fazer.
Após
dias de silêncio, Ursula von der Leyen admitiu que o acordo era “sólido, mas
imperfeito” e insistiu em que proporcionaria “estabilidade e previsibilidade”,
numa altura de turbulência. Porém, a asserção esvaziou-se, quando Trump ameaçou
aplicar tarifas adicionais, em retaliação à multa antitrust de 2,95
mil milhões de euros aplicada à Google pela Comissão.
Por
último, o espinho que representa, para a UE, a situação político-social, em
França, com a demissão do primeiro-ministro, François Bayrou, seguida, em tempo
recorde, da posse do novo chefe do governo, Sébastien Lecornu, mercê da
rejeição parlamentar da moção de confiança, por via do alegado plano orçamental
demolidor. De facto, com os manifestantes a prometer bloquear tudo, o
espetáculo de estradas cortadas, contentores incendiados e várias centenas de
detidos pela polícia não augura nada de bom para a segunda maior economia da UE.
Resta
saber se Ursula von der Leyen terá paciência de aço.
2025.09.10
– Louro de Carvalho
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