“O Ministério Público [MP] proferiu, no dia 11 de setembro de 2025, despacho final de arquivamento no inquérito relacionado com a apreensão, a 7 de novembro de 2023, no gabinete do chefe de gabinete do então primeiro-ministro, António Costa, de uma ‘pen-drive’ com dados da Segurança Social de diversas entidades e [de] pessoas que exercem funções públicas”, anunciou a 15 de setembro, em comunicado, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).
Efetivamente, a 7 de novembro de 2023, foi encontrada uma ‘pen-drive’, durante buscas ao gabinete de Vitor Escária, chefe de gabinete do então primeiro-ministro português. O dispositivo tinha uma lista de dados pessoais de agentes dos serviços secretos, da Polícia Judiciária (PJ) e de funcionários das Finanças.
A informação levou o MP a abrir um inquérito separado da “Operação Influencer”, por suspeita de violação de segredo de Estado, que foi, agora, encerrado.
O DCIAP do MP explicou, agora, que a ‘pen drive’ continha “dados da Segurança Social de diversas entidades e [de] pessoas que exercem funções públicas” e em causa estaria o acesso e divulgação terceiros destes dados. E acabou por concluir que a informação foi extraída “da base de dados da Segurança Social, em junho de 2019”, por um “ex-funcionário dessa entidade” – um acesso que, de acordo com o comunicado, já foi provado em processo distinto e que, por isso, não poderia voltar a ser julgado, nos termos do princípio “ne bis in idem”.
Segundo o jornal Público, o ex-funcionário responsável pela fuga de informação é Marco Aragão, que acedeu aos dados, quando trabalhava, na Segurança Social, como inspetor estagiário e que também foi condenado por ameaçar o presidente da República, noutro caso, tendo sido considerado inimputável e internado num hospital.
Todavia, em relação à forma como esta informação foi parar ao gabinete de Vítor Escária, nada ficou provado. “Esgotadas as diligências possíveis, não se apurou a identidade de quem gravou esses dados na referida ‘pen drive’, de quem a entregou e se as pessoas que tiveram a sua posse acederam ao respetivo conteúdo ou, sequer, tinham conhecimento do mesmo”, refere o comunicado do DCIAP, para justificar o encerramento.
O DCIAP diz ainda que foram constituídos dois arguidos, neste caso, e que o então primeiro-ministro foi ouvido como testemunha.
O caso, aberto no fim do ano passado, foi revelado, em janeiro pela revista Sábado, a qual falava em mais de 400 nomes, na “maior fuga de informação de dados pessoais relativa a cargos do Estado com funções sensíveis”.
Este inquérito autonomizou-se da “Operação influencer”, cuja investigação continua a decorrer e que deu origem a buscas na residência oficial do primeiro-ministro e à detenção de cinco pessoas, entretanto libertadas e que têm negado a prática de qualquer crime. Em causa estão crimes relacionados com concessões de exploração de lítio, em Montalegre e em Boticas (ambas no distrito de Vila Real), de construção de centros de dados em Sines, no distrito de Setúbal, e de produção de energia a partir de hidrogénio, também em Sines.
O caso envolvia pessoas próximas de António Costa, que acabou por se demitir do cargo de primeiro-ministro (PM) de Portugal (dando origem a eleições legislativas antecipadas), por o seu nome constar de um comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR), referindo que estava a decorrer no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o foro competente para o caso, um inquérito pelo facto de, alegadamente, o nome do PM ter sido mencionado por alguns arguidos no processo da “Operação influencer”.
O comunicado do DCIAP, datado de 15 de setembro, refere que o processo foi instaurado a 21 de novembro de 2024, com base em certidão extraída do processo conhecido como “Operação Influencer”, após a conclusão dos necessários procedimentos técnicos e de análise e autonomização do conteúdo do referido suporte informático, tendo a investigação sido executada, diretamente, pelos magistrados do MP no DCIAP titulares do inquérito, com o pontual auxílio de elementos da equipa constituída para a investigação do Universo Influencer.
Realizadas as pertinentes diligências de investigação, foi possível apurar que os dados em questão são os mesmos que, segundo foi considerado provado após julgamento em processo distinto, foram extraídos da base de dados da Segurança Social, em junho de 2019, pelo ali arguido, ex-funcionário dessa entidade.
Por tal motivo, o arquivamento fundou-se, quanto a tal acesso e divulgação por terceiros, no princípio “ne bis in idem” e no respeito por tal caso julgado. Além disso, “esgotadas as diligências possíveis, não se apurou a identidade de quem gravou esses dados na referida ‘pen drive’, de quem a entregou e se as pessoas que tiveram a sua posse acederam ao respetivo conteúdo ou, sequer, tinham conhecimento do mesmo, o que determinou o arquivamento do inquérito, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nesta parte, o qual estabelece que “o inquérito é igualmente arquivado, se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes”.
A abertura do inquérito por violação do segredo do Estado tinha sido confirmada à Lusa, em 29 de janeiro, pela PGR.
A confirmação surgiu depois de a revista “Sábado” ter noticiado que, em novembro de 2023, como já foi referido, fora apreendida, no cofre do gabinete de trabalho de Vítor Escária, uma ‘pen-drive’ com a identificação e outros dados pessoais de centenas de agentes do Serviço de Informação e Segurança (SIS), Serviço de Informação e Segurança (SIS), Serviço de Informações Estratégicas e Defesa (SIED), Polícia Judiciária (PJ) e Autoridade Tributária (AT).
Na altura, o advogado de António Costa, João Lima Cluny, disse à Lusa que o ex-primeiro-ministro, atual presidente do Conselho Europeu, desconhecia “em absoluto” do que se tratava.
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O
princípio “ne bis in idem” (“não incidir duas vezes na mesma coisa”) está consagrado
no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), que
estabelece, no âmbito da aplicação da lei criminal: “Ninguém pode ser julgado
mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.A este respeito, o Acórdão n.º 122/20.1GCCD.C1, de 22 de março de 2023, do Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), explica o alcance deste princípio.
A finalidade do “ne bis in idem” é obstar à dupla submissão de um indivíduo a julgamento por um determinado “acontecimento histórico”, por um “facto naturalístico concreto” ou por um “pedaço de vida” que já foi “objeto de sentença ou de decisão que se lhe equipare, independentemente do nomen iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado”.
Para esse efeito, “o crime considera-se o mesmo, quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e que ambos os factos tenham como objeto o mesmo bem jurídico ou formem, como ação que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico”.
Apesar de a CRP “apenas proibir, expressamente, o duplo julgamento pelo mesmo facto – ‘ne bis in idem’, na vertente processual –, a proibição abrange ainda a aplicação de novas sanções penais pela prática do mesmo crime – ‘ne bis in idem’, na vertente penal –, daqui resultando que o princípio tem o duplo sentido de proibição de duplo julgamento de uma infração penal e de proibição de dupla punição”.
Por fim, é de ter em conta que “o objeto de cada processo penal é definido na acusação respetiva, pela narração de factos que dela consta, ou seja, pelos vários factos singulares que formam, quando aglutinados, o pedaço de vida em que se traduz o facto processual objeto que deverá manter-se, tendencialmente, inalterado, até ao trânsito da sentença que a tenha apreciado”.
Também o princípio “ne bis in idem” é, largamente e necessariamente, assumido no Tribunal Penal Internacional (TPI).
Nestes termos, nenhuma pessoa poderá ser julgada pelo TPI por crimes pelos quais já tenha sido condenada ou absolvida por este ou por qualquer outro tribunal.
“Ninguém pode ser julgado, mais do que uma vez, pela prática do mesmo crime” é um dos grandes princípios de Direito Penal corporizado no n.º 1 do artigo 20.º do Estatuto de Roma, que institui o TPI, e que também é consagrado no n.º 5 do art.º 29.º da CRP, como vimos.
Contudo, este princípio é excecionado nos casos previstos no n.º 3 do artigo 20.º do mesmo estatuto, relativamente a crimes de guerra, de genocídio e contra a Humanidade, se o arguido tiver sido, previamente, objeto de julgamentos fictícios, nomeadamente, conduzidos por tribunais nacionais, com o objetivo de o subtrair à sua responsabilidade pela prática de crimes da competência do TPI. Do mesmo modo, o princípio é excecionado e o Tribunal exerce a sua competência como instância julgadora, se o primitivo julgamento pela prática do crime ocorrido noutro tribunal não tiver sido conduzido, de forma independente ou imparcial, em conformidade com o devido processo, de acordo com o Direito Internacional, ou de modo incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça.
A 20 de abril de 2020, foi publicado o “Resumo da jurisprudência sobre o princípio ne bis in idem”, do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) (ver: https://europa.eu/!Bv67Nx).
Segundo a nota do TJUE, o documento apresenta um resumo da jurisprudência do Tribunal, relativa ao princípio “ne bis in idem”, em matéria penal, nos termos do artigo 50.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta) e dos artigos 54.º a 58.º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen (CAAS). Quando pertinente, remete-se também para a Convenção Europeia dos Direitos do Humanos (CEDH) e para a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). O documento visa fornecer orientações sobre a aplicação do princípio “ne bis in idem”, num contexto transnacional.
A edição de 2020 da Agência da União Europeia para a Cooperação Judiciária Penal (Eurojust), sobre a jurisprudência do TJUE relativa ao princípio “ne bis in idem”, em matéria penal, foi atualizada até 15 de março de 2020. Em comparação com a edição anterior, publicada em 2017, contém cinco acórdãos adicionais, perfazendo um total de 20 acórdãos, entre 2003 e 2020.
A Eurojust é a agência da União Europeia (UE) que se foca em questões judiciais decorrentes nos estados-membros. Foi criada, em 2002, pela necessidade de reduzir o crime organizado dentro da UE, assim como todas as questões relacionadas com a violação de fronteiras. É uma agência que se inseria no terceiro pilar da organização política europeia, método que foi abolido, em 2009, com o Tratado de Lisboa, substituído, então, pelo sistema de atribuição de competências.
A Eurojust, em ordem a maximizar a sua eficiência, coopera com organizações extraeuropeias e com outras agências que se inserem na UE, como a OLAF, a Europol e a Rede Judicial Europeia.
O resumo da jurisprudência contém sínteses dos acórdãos do TJUE categorizadas de acordo com um conjunto de palavras-chave pertinentes que refletem os principais elementos do princípio “ne bis in idem”. No início do documento, também são fornecidas uma tabela de palavras-chave e uma lista cronológica dos acórdãos.
A versão atualizada abrange, nomeadamente, os seguintes temas principais: o quadro jurídico e a relação entre as diferentes disposições; o âmbito de aplicação temporal do princípio “ne bis in idem”; o âmbito de aplicação material do princípio “ne bis in idem”, abordando, especificamente, os elementos essenciais da natureza penal dos procedimentos e das sanções, a identidade do infrator e dos factos e o caráter definitivo da decisão; e as limitações ao princípio “ne bis in idem”.
Em relação ao último tema, é de relevar que, além da “condição de execução” prevista no artigo 55.º da CAAS, o TJUE também abordou, recentemente, o cúmulo de procedimentos e de sanções penais, assim como procedimentos e sanções administrativos de natureza penal.
O índice e as sínteses dos acórdãos não são exaustivos e destinam-se a ser utilizados, unicamente, como referência e como instrumento suplementar para os profissionais da justiça. São da autoria da Eurojust e não vinculam o TJUE. As sínteses contêm ligações para os textos integrais dos acórdãos do TJUE, os quais podem ser consultados em todas as línguas oficiais da UE no sítio Web do TJUE.
***
Em
suma, o princípio “ne bis in idem” é um princípio jurídico segundo qual uma
pessoa não pode ser julgada ou punida mais do que uma vez pelo mesmo facto ou
crime. O seu objetivo é proteger a liberdade e a segurança jurídica dos
cidadãos, impedindo o abuso do poder punitivo do Estado e garantindo que as
sanções sejam proporcionais e justas. Consiste, pois, na proibição de duplo julgamento, garantindo que, após uma decisão judicial definitiva (absolvição ou condenação), não se possa iniciar um novo processo penal pelo mesmo crime; e na proibição de dupla punição, impedindo que uma pessoa seja duplamente punida pelas mesmas ações, mesmo que não tenha havido um julgamento anterior.
As suas principais caraterísticas são: o fundamento no Estado de Direito, constituindo-se num pilar do Estado de Direito, com vista a proteger as pessoas de uma perseguição penal sem fim; e o princípio de âmbito internacional, visto que está consagrado em diversas constituições nacionais e tratados internacionais, como a Constituição Portuguesa (artigo 29.º, n.º 5), o Estatuto de Roma, que instituiu o TPI, o TJUE e o TEDH, bem como as cartas e convenções atinentes aos direitos humanos.
Todavia, admite exceções. Em casos específicos e com exceções muito restritas, como quando o julgamento anterior não foi conduzido de forma imparcial e independente ou quando um julgamento foi simulado para evitar a responsabilidade criminal.
Em Portugal, o princípio “ne bis in idem” é um dos grandes princípios do Direito Penal e encontra-se previsto na CRP, tutelando tanto a proibição de dupla punição (no sentido material) como a proibição de dupla instauração de processo pelo mesmo facto (na vertente processual).
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É
necessário que sempre impere o Direito, a Justiça e a Liberdade, para a
segurança jurídica e para o respeito pela dignidade de todas as pessoas. A
Justiça deve ser célere, proporcionada, imparcial, sensata, comedida e eficaz
2025.09.16
– Louro de Carvalho
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