sábado, 5 de julho de 2025

Principais alterações às leis de imigração são inconstitucionais

 
A Assembleia da República (AR) discutiu, a 4 de julho, na generalidade as propostas de lei do governo com vista ao estabelecimento de restrições à imigração. Porém, como as alterações à Lei da Nacionalidade e à Lei dos Estrangeiros acabaram por não ser votadas, no final de um tenso debate, o governo pediu que fossem remetidas à especialidade para que aí possam ser discutidas e aprovadas.
Efetivamente, foi só no minuto final do debate das alterações à Lei da Nacionalidade e à Lei dos Estrangeiros que o governo, que defendera, durante mais de uma hora, um aperto à imigração, aceitava que esta e outras restrições à entrada de estrangeiros não tivessem uma primeira votação, para se procurar aprová-las, no pormenor, em sede do debate na especialidade, na Comissão de Direitos, Liberdade e Garantias.
Depois, o novo texto volta para votação final em plenário, para a aprovação final. 
Por fim, todos reclamaram uma parte do sucesso da deliberação parlamentar, mas foi preciso esperar pelo fim e pelo esgotamento do tempo para discutir argumentos e para ver o debate inflamar, quando André Ventura disse nomes estrangeiros de alunos de escolas em Portugal.
Segundo André Ventura, o governo já tem a garantia do apoio da bancada parlamentar do Chega, nestas matérias, em todas as fases de votação.
Outro acordo do líder do partido com o governo é a vontade de concluir esta etapa legislativa “até ao fim de julho”. 
Depois, os diplomas, se obtiverem a aprovação final, vão para a apreciação presidencial, cujo prazo para promulgação ou veto é de 20 dias. No caso da Lei da Nacionalidade, existe a possibilidade de o Presidente da República solicitar, como o próprio já admitiu, ao Tribunal Constitucional (TC) a fiscalização preventiva da sua constitucionalidade.
Seja como for, não é possível saber quando as medidas propostas entram em vigor. Até lá, permanecem as leis como estão. A possibilidade de mudança já ocasionou uma corrida aos balcões do Instituto de Registo e Notariado (IRN) para pedidos de nacionalidade portuguesa. Outra corrida é aos tribunais, com ações judiciais para garantir o reagrupamento familiar e o título de residência da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
O que vai ser discutido na especialidade são a Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81 de 3 de outubro, na atual redação), a Lei dos Estrangeiros (Lei n.º 23/2007, de 4 julho, na atual redação) e a Criação da Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras.
No atinente à Lei da Nacionalidade, as principais alterações propostas são o aumento do tempo de moradia com título de residência no país para solicitação da nacionalidade portuguesa e o aumento do tempo de moradia dos pais para bebés nascidos em território nacional terem direito ao pedido. Outra proposta é de perda da nacionalidade para quem cometer crimes com pena de prisão efetiva acima de três anos.
Quanto à Lei dos Estrangeiros, o governo quer mais restrições ao reagrupamento familiar (que o imigrante só possa pedir o reagrupamento da família, após dois anos, de moradia legal no país, com exceção de casos de menores) e a restrição do visto de procura de trabalho para profissionais altamente qualificados. Outra medida é de constar na lei que não seja possível entrar em Portugal, sem visto prévio e solicitar um título de residência da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).
No respeitante à Criação da Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras (UNEF), na Polícia de Segurança Pública (PSP), o governo pretende acelerar o retorno de imigrantes sem direito a permanecer no país e controlar as fronteiras e a presença dos estrangeiros no território nacional.
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A discussão parlamentar, na generalidade, extrapolara as alterações à Lei da Nacionalidade, as que a esquerda diz que aproximam o governo do partido Chega e o entendimento que o Chega faz depender do governo para aceitar as propostas de lei.
O Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) votaram contra a baixa à especialidade das propostas do governo e do Chega, que partem para a discussão e para eventuais mudanças que permitam que as decisões do Conselho de Ministros sejam aprovadas.
Em geral, ss partidos da esquerda parlamentar acusaram o governo de apresentar uma proposta de revisão da Lei da Nacionalidade com pontos inconstitucionais, de pretender criar um problema artificial e não se basear em dados objetivos.
Tal posição foi contrariada por intervenções da direita política que responsabilizou os executivos socialistas por introdução de “facilitismo” – ou, no caso específico do Chega, de “venda a granel” e de “bandalheira” –, na concessão de nacionalidade por naturalização.
No debate sobre a proposta do governo de revisão da lei da nacionalidade, na generalidade, a intervenção mais contundente partiu do deputado Pedro Delgado Alves, vice-presidente da bancada do Partido Socialista (PS), que atirou:A perda da nacionalidade proposta pelo governo é desproporcional. Cria duas categorias de cidadãos: uns que são da espécie de período experimental e os outros que têm todos os direitos.”
Ainda de acordo com o deputado, o diploma do governo viola a Constituição, no que respeita “à retroatividade”, visto que há “pessoas que, já hoje, reúnem os requisitos para requerer a nacionalidade e deixariam de o poder fazer, o que viola o princípio da proteção de confiança”.
Pedro Delgado Alves apontou ainda uma “desproporcionalidade de prazos” inerente ao diploma do executivo e referiu que se poderá estar perante “uma violação de obrigações convencionais do Estado Português, porque a convenção europeia da nacionalidade determina que não se devem discriminar em função da origem das pessoas os prazos para a aquisição da nacionalidade”. E, deixou um aviso ao governo: “Não apresente uma proposta que viola a Constituição, esforce-se por fazer melhor e, seguramente, não vá atrás daqueles que querem acabar com a República” (aqui, numa alusão ao Chega).
Por sua vez, a coordenadora do BE falou em “crueldade” do executivo, em relação a crianças que nascem em Portugal, que nunca conheceram qualquer outro país, mas que poderão ficar sem acesso à nacionalidade portuguesa.Chamam a isto integração? Atacar os filhos de que quem veio para Portugal trabalhar é desumano”, declarou Mariana Mortágua.
A líder parlamentar do PCP, Paula Santos, considerou que se está perante uma tentativa de “retrocesso civilizacional”, sobretudo através da criação de um paradigma de “portugueses de primeira e outros de segunda”.
Paulo Muacho, do Livre, assinalou que, neste debate o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, usou um “slogan” do Chega – “Por Portugal, pelos Portugueses” – e comentou que “o ‘não é não’ do primeiro-ministro, Luís Montenegro, face ao Chega, afinal, é uma bola de sabão”.
Em sentido contrário, pela parte do Partido Social Democrata (PSD), o ex-secretário de Estado Paulo Lopes Marcelo advertiu que a Lei da Nacionalidade é “um instrumento importante” para a soberania do país e acusou o PS “e a extrema-esquerda” de terem introduzido “regras simplistas e facilitadoras com consequências que estão à vista de todos”.
Segundo Paulo Lopes Marcelo, a aquisição da nacionalidade deve pressupor uma adesão efetiva aos valores da comunidade e Portugal tem, neste momento, cerca de 1,5 milhões de imigrantes, o que impõe “prudência” nos critérios de atribuição da nacionalidade.
Antes, Paulo Núncio, líder parlamentar do partido do Centro Democrático Social (CDS), vincou que o seu partido defende a revisão da lei da nacionalidade, “há 20 anos”, tendo razão antes do tempo”.
Pela parte do Chega, Cristina Rodrigues acusou os governos do PS de terem “vendido a granel a nacionalidade” e acentuou o princípio do seu partido de que a aquisição da nacionalidade “é um privilégio e uma responsabilidade”, pressupondo, entre outras caraterísticas, conhecimento da Língua Portuguesa.
O ex-líder da Iniciativa Liberal Rui Rocha manifestou-se, globalmente, de acordo com os diplomas do governo, pois, na sua ótica,nos últimos anos, em matéria de imigração, assistiu-se a um descontrolo, sobretudo, em resultado da adoção do regime de manifestação de interesse”.
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Um parecer jurídico assinado pelo constitucionalista Jorge Miranda conclui que vários aspetos das propostas de lei do governo, que restringem o acesso à nacionalidade e alteram o regime de entrada e permanência de estrangeiros em Portugal, “suscitam dúvidas de constitucionalidade” e outros são mesmo “inadmissíveis”, à luz da Constituição.
Um dos problemas tem a ver, desde logo, com o facto de as alterações anunciadas à Lei da Nacionalidade terem efeitos retroativos a 19 de junho, data em que o programa de governo foi viabilizado na AR. Na verdade, o executivo deliberou que os pedidos submetidos a partir daquela data são avaliados com base nas novas regras, apesar de não terem sido ainda aprovadas na AR.
O governo justificou a decisão, alegando ter havido “um movimento de submissão maciça de pedidos de aquisição da nacionalidade por naturalização” a partir do momento em que foram anunciadas as alterações, como “tentativa, de última hora, de beneficiar dos requisitos altamente permissivos do regime jurídico cessante”.
Porém, o parecer de Jorge Miranda sustenta que as medidas ainda não estão em vigor, pelo que a pretensão do executivo “viola, frontalmente, a proibição de aplicação retroativa” de leis que restringem direitos, liberdades e garantias, além de representar uma “menorização incompreensível do Parlamento”, que ainda poderá introduzir alterações significativas no diploma. Por outro lado, “apesar de o governo considerar que a atual Lei da Nacionalidade contém medidas erradas, isso não as revoga”, frisa o documento, igualmente assinado pelo advogado Rui Tavares Lanceiro, especialista em Direito Administrativo e Constitucional.
O parecer, solicitado pelo escritório de advogados Liberty Legal, especializado em imigração e em cidadania, e que será entregue aos grupos parlamentares e ao Presidente da República, analisou também a norma que contabiliza os prazos de residência em Portugal para efeitos de pedido de aquisição de nacionalidade. O governo não só duplicou, de cinco para 10 anos, o tempo mínimo de residência para um estrangeiro requerer a nacionalidade, como determinou que o prazo não começa a contar com a entrega do pedido de legalização, como até agora, mas apenas quando é dada a autorização de residência, o que pode levar anos.
Assim, para os dois especialistas, esta norma “é constitucionalmente inadmissível”, por violar os princípios da segurança jurídica, da igualdade e da dignidade da pessoa humana, e “cria uma situação de incerteza sobre o momento de início do prazo, que deixa de estar nas mãos do cidadão e passa, inteiramente, para as mãos da Administração.” Desta feita, duas pessoas que apresentem, ao mesmo tempo, o pedido de residência podem vir a receber o deferimento em datas distintas, contando, por isso, com um início de prazo totalmente diferente para o acesso à nacionalidade. “Nenhuma razão discernível se pode encontrar para semelhante distinção”, salientam os dois especialistas, o primeiro dos quais é apelidado de “Pai da Constituição”, não sei porquê, visto que a paternidade da Constituição cabe à Assembleia Constituinte que a elaborou, a partir de projetos de grupos partidários, e não de cidadãos individualmente considerados.
No concernente à Lei de Estrangeiros, o parecer contesta o travão do governo à interposição de ações judiciais urgentes contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), relativas ao reagrupamento familiar. Trata-se de uma restrição ao direito de acesso à Justiça que é “excessiva e violadora do princípio da proporcionalidade”, sustenta o parecer, vincando: “A excessiva pendência de contencioso administrativo com origem em atos ou [em] omissões da AIMA é o resultado do incorreto funcionamento desta entidade, não do legítimo exercício pelos cidadãos dos seus direitos fundamentais.”
Além das questões levantadas pelo escritório de advogados, Jorge Miranda e Rui Tavares Lanceiro analisaram a possibilidade de retirada da nacionalidade a quem cometa crimes graves. A medida “suscita a potencial violação” dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da universalidade, por introduzir uma diferenciação entre portugueses de origem, que não podem perdê-la nunca, e portugueses por naturalização.
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Por fim algumas notas:
* É de questionar o governo por não ter ouvido o Conselho Nacional para as Migrações e Asilo, órgão com funções consultivas do governo, que tem como função pronunciar-se sobre os projetos de diplomas relevantes, em matéria de migrações e de asilo.
* É de interpelar o CDS e o Chega, partidos que se dizem cristãos e amigos da família, por que motivo intentam dificultar o reagrupamento familiar, em flagrante oposição aos valores da democracia cristã, da social-democracia e do personalismo humano e cristão, que acentua a dignidade da pessoa humana, independentemente, do sangue, da cor, da etnia, da idade, do sexo ou da religião.
* Pergunto por que motivo se facilita a aquisição da nacionalidade a pessoas que se afirmam de raiz portuguesa, estejam onde estiverem, e se dificulta aos que residem no país. Se aceitamos como privilégio o sangue puro, tornamo-nos parentes de Hitler, negamos a miscigenação e deitamos ao lixo os tão aplaudidos discursos do último 10 de junho; negando a nacionalidade aos que nascem e/ou residem em Portugal, desrespeitando o “ius soli”, homenageamos Donald Trump (aliás, as ordens de saída já estão em marcha); e não sabendo resolver os problemas que temos com a migração, parece não sabermos exercer a soberania ou sermos incapazes de criar e de manter as estruturas e os serviços para isso, não fazendo jus aos nossos maiores.
* Apesar de elaboração das leis (constitucionais ou ordinárias) caberem ao Parlamento (no caso das leis constitucionais, assumindo poderes constitucionais), seria útil que os parlamentares se submetessem, regularmente, à formação ministrada por renomadas figuras da Academia e do mundo da empresa e do trabalho, de várias sensibilidades, mas nunca abdicando do ónus e da responsabilidade da contribuição política para elaboração-discussão-aprovação das leis. Com efeito, importam as decisões suficientemente informadas e sustentadas.   

2025.07.05 – Louro de Carvalho


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