quinta-feira, 31 de julho de 2025

Finanças do Vaticano: “um dos melhores balanços dos últimos anos”

 
Foi publicado o balanço da Administração do Património da Sé Apostólica (APSA), em 34 páginas, que evidencia o crescimento da rentabilidade e o aumento da contribuição para a Cúria Romana e para a missão da Igreja, de acordo com o Vatican News.
Um lucro extraordinário – 62,2 milhões de euros (mais de 16 milhões a mais do que em 2023, que foi de 45,9 milhões de euros) – mas também uma contribuição extraordinária: 46,1 milhões de euros (mais de oito dos 37,93 milhões em 2023), para cobrir as necessidades da Santa Sé e o défice da Cúria Romana. Esses são os números que se destacam no balanço 2024 da APSA, recentemente publicado. “Um dos melhores balanços dos últimos anos”, disse à media do Vaticano o arcebispo Giordano Piccinotti, presidente da APSA.
O balanço em referência é o quinto (após a publicação do primeiro para 2020) tornado público pelo órgão criado em 1967, por São Paulo VI para administrar os bens móveis e imóveis da Santa Sé. A mudança é ainda mais percetível no documento, ao destacar o crescimento da lucratividade não como fim em si, mas para garantir maior capacidade de contribuir para as necessidades da Santa Sé e, portanto, para a missão da Igreja e do Papa. “A APSA está a cumprindo o seu dever”, enfatizou Giordano Piccinotti.
As necessidades financeiras da Cúria Romana, no valor de 170,4 milhões de euros, são entendidas como as despesas da APSA para suportar a Santa Sé, ou seja, a soma dos salários e a aquisição de bens e de serviços. Com uma contribuição fixa de 30 milhões de euros e com uma contribuição variável (50% sobre o lucro residual) de 16,087 milhões de euros, o valor total das contribuições da APSA para a Cúria Romana é, portanto, de 46,087 milhões de euros.
No resultante aos lucros, o presidente da APSA lembra que, no plano trienal de há quatro anos, a meta era de 50 milhões de euros. O superavit registado no balanço é, portanto, uma satisfação, resultado, acima de tudo, de melhor administração dos bens móveis e imóveis, visando a valorização e não a redução de despesas ou a venda, tudo segundo processos de “racionalização, transparência, profissionalismo”. “Não é um ponto de chegada. O meu avô costumava dizer que de uma planta de cereja não se pode obter mais de 15 quilogramas de cerejas. Pois bem, estamos quase lá, mas há, certamente margens para melhorias e a gestão já é muito boa, sustenta o arcebispo Giordano Piccinotti, explicitando: “Não se trata apenas de arrendar propriedades vazias; nos últimos anos, houve uma reestruturação não indiferente da administração de propriedades, que nos permitiu alugar a preços de mercado. Isso gera recursos adicionais... Além disso, a APSA está a trabalhar, de forma ética, para que todos os processos sejam formalizados e rastreáveis.”
Os detalhes podem ser vistos no documento, que fornece uma visão geral das duas principais operações de gestão confiadas à APSA (títulos e imóveis). Em relação à primeira, destaca-se que, nos meses de março e abril de 2024, foram implementadas as diretrizes do Comité de Investimentos da Santa Sé, que ordenou, entre outras indicações, que os investimentos fossem feitos em SMAs (Separated Managed Accounts), algo semelhante a fundos de investimento comuns, mas de propriedade da Santa Sé. Tal política resultou em significativa reorganização do portfólio de investimentos que possibilitou preservar o valor dos ativos num momento de contração do mercado e levou a um impacto positivo na fase de reinvestimento subsequente. Graças à tempestividade, à visão e à estratégia, a APSA obteve um retorno gerencial de 8,51 pontos percentuais. Ou seja, vendeu-se, quando o mercado estava em alta, e comprou-se, quando estava em baixa, o que levou a um resultado muito alto, ou seja, 10 milhões de euros a mais do que em 2023.
O resultado da gestão de propriedades permaneceu inalterado, em relação a 2023: 35,1 milhões de euros. É o resultado de um efeito combinado entre o positivo das receitas mais altas das propriedades da APSA na Itália (+ 3,2 milhões de euros) e as das empresas investidas na Itália e no exterior (+ 0,8 milhão de euros), e o negativo (- 3,9 milhões de euros) dos custos mais altos gerados pelas propriedades da APSA (dos quais 3,8 milhões de euros apenas para manutenção).
Até o momento, existem 4234 unidades imobiliárias geridas pela APSA, na Itália: 2866 de sua propriedade (1367 para uso residencial, 395 para uso comercial); 1368 de outras entidades. A gestão imobiliária também é realizada por empresas na Inglaterra, na França, na Suíça e na Itália.
Entre os pontos importantes do balanço, está o atinente aos serviços prestados, que comprometem cerca de 40% dos recursos humanos. “Um trabalho para os outros”, vinca o presidente da APSA, segundo o qual “a administração contribui para a missão da Igreja, ao prestar serviços que são utilizados por outras entidades”, por exemplo, a contabilidade e a manutenção das Nunciaturas.
Por fim, o documento descreve os projetos iniciados e continuados em 2024 e projeta o futuro com ideias e propostas, entre as quais sobressai o projeto Fratello Sole, a construção da instalação agrovoltaica em Santa Maria di Galeria (local visitado, a 19 de junho, pelo Papa Leão XIV), para obter exemplos de transição energética, por meio de energias renováveis.
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As finanças da Santa Sé, sede da Igreja Católica, são complexas e multifacetadas, envolvendo tanto a gestão do Vaticano como as finanças de vários serviços espalhados pelo Mundo. As próprias dioceses prestam contas à Santa Sé
O Vaticano, como microestado, não possui as mesmas fontes de receita de outros estados, designadamente, impostos. Depende, sobretudo de doações, de investimentos e de receitas dos Museus do Vaticano e de taxas por serviços prestados, bem como da gestão do Instituto de Obras de Religião (IOR), o banco do Vaticano. Porém, apesar de não ser instituição com fins lucrativos, a Igreja possui um património significativo, incluindo imóveis, terras e investimentos. 
As fontes de receita da Santa Sé provêm: de doações (as doações de fiéis em todo o Mundo, incluindo o Óbolo de São Pedro, são importante fonte de receita);  de investimentos (o Vaticano possui património diversificado, incluindo imóveis, títulos e outros investimentos); dos Museus do Vaticano (são fonte significativa de receita, especialmente, para a manutenção da máquina pública do Vaticano); e de outras receitas, com realce  para o IOR e para o turismo. 
No capítulo das despesas da Santa Sé, destaca-se: a Manutenção da Cúria Romana (considerável parte das despesas destina-se à manutenção da Cúria Romana, isto é, dos órgãos que compõem o governo da Igreja); a manutenção da máquina pública (ou seja, a manutenção da administração pública do Vaticano, incluindo a Guarda Suíça e outras despesas gerais);  as despesas com pessoal (isto é, gastos com funcionários e com colaboradores da Cúria e de outras instituições vaticanas); as doações (apesar de ser instituição voltada para a caridade, a parcela das despesas destinadas a doações e a obras de caridade é menor do que outras despesas).
As finanças da Santa Sé têm enfrentado desafios financeiros, como: o défice operacional (nos últimos anos, as despesas superaram as receitas); a dependência de doações (que torna as finanças da Santa Sé vulneráveis a flutuações económicas e a mudanças na generosidade dos fiéis); os escândalos financeiros (que envolveram investimentos e gestão financeira, no passado), que afetaram a confiança e geraram perdas financeiras. 
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A gestão financeira do Vaticano tem sido criticada por falta de transparência e eficiência. O Papa Leão XIV herdou uma situação financeira complexa, com desafios a serem enfrentados. O Papa Francisco tentou reformas e maior transparência na gestão financeira e o novo papa terá de dar continuidade a tais medidas, para garantir a sustentabilidade financeira da Santa Sé.
A este respeito, a 6 de maio, Débora Crivellaro referiu à BBC News Brasil a máxima segundo a qual “o valor do património da Igreja Católica é um dos mistérios da fé, tamanho segredo que a instituição guardou, ao longo dos séculos, sobre o assunto”. E a colunista sustenta que, face a tamanho sigilo, se avolumaram as especulações sobre o volume da fortuna da “Santa Madre”, “criando uma mística em torno do tema que beirava a ingenuidade e os comentários, como: “Porque não vende o papa  o Vaticano, para acabar com a fome no Mundo?”
Todavia, desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco, falecido a 21 de abril, esforçou-se por retirar o véu que encobria as finanças da Santa Sé, com medidas que mudaram e enxugaram a engrenagem da máquina vaticana e se repercutiram na Igreja em geral. Uma delas foi divulgar, em 2021, o balanço financeiro público da APSA do ano de anterior, prática que vem sendo seguida, desde então. Foi a primeira vez, desde a criação, em 1967, da APSA, responsável pela gestão de imóveis e de investimentos, que tais cifras vieram a público.
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A Igreja, como instituição religiosa, em tese, não visa o acúmulo de bens ou o lucro, segundo o Código de Direito Canónico. Porém, começou a acumular riqueza a partir do século IV, com o imperador Constantino (272-337 d.C.), que garantiu a liberdade religiosa. Assim, até ao édito de Milão, do ano 313, os cristãos viviam de forma humilde e celebravam o culto nas suas casas e em catacumbas. Isso era natural para os seguidores de uma religião baseada nas palavras e nas ações de um judeu pertencente às castas sociais inferiores, que pregava o comedimento, a sobriedade e ações voltadas aos menos favorecidos. “Esses eventos mudaram a História do Cristianismo e do Império Romano, como escreveu Ney de Souza, professor de História Eclesiástica e especialista em religião e política, no livro História da Igreja (Ed. Vozes).
Deste então, o temporal e o espiritual entrelaçaram os seus destinos. Os séculos seguintes mostraram se essa aliança e as sucessivas foram a melhor estratégia da instituição ou se do martírio dos cristãos e das catacumbas, onde professavam a fé, se passou para os palácios, em grande prejuízo para a vivência da fé cristã, desembocando na Reforma. De perseguida, a Igreja passou a privilegiada e a detentora de muitos bens. A simplicidade dos seguidores, diferencial no início, deu lugar a status e a símbolos de riqueza equiparados a dignitários do império. O perigo de acomodação e de contaminação do poder tornou-se real. “No percurso da História do Cristianismo, é possível verificar que o joio e o trigo estão sempre presentes”, escreveu Souza.
Às vezes, o joio em quantidade maior, outras vezes o trigo. Mas ainda que o trigo seja em número reduzido, é o responsável pela continuidade do seguimento de Jesus. Entre os católicos, nomes como Francisco de Assis e o Papa Francisco seriam os representantes da defesa da simplicidade. Já figuras como o Papa Bento IX (102-1055), que chegou a vender o trono papal, e o cardeal Giovanni Angelo Becciu, substituto para os Assuntos gerais da Secretaria de Estado do último pontificado, afastado após o desvio de 220 milhões de dólares destinados à caridade, para comprar um apartamento em Londres, seriam exemplos em sentido inverso.
Constantino e outros líderes do Império Romano doaram à Igreja palácios, imóveis, terras a perder de vista e termas, além de quantidades inimagináveis de ouro e de prata. A partir daí, estabeleceu-se o mecanismo da doação, em troca de algo, até mesmo para a Igreja se firmar em determinado território. E, no século XVIII, surgiram os Estados pontifícios, territórios na Península Itálica que funcionavam como entidades político-religiosas sob o comando papal, e a hierarquia católica emergiu como autoridade civil, aliada explícita das famílias mais abastadas da Europa.
Apesar de nem sempre ter desfrutado da bonança – a Idade Média foi um período de vacas magras – a Igreja Católica construiu o seu património por meio de doações de fiéis e de pessoas interessadas na sua influência política e social. No século XXI, agrega-se-lhe o seu património cultural, que inclui obras de valor inestimável, museus que recebem milhões de visitantes (pagos), por ano, e os investimentos no mercado financeiro, terreno que foi epicentro de escândalos de grandes proporções.
No centro do poder católico, está o Estado da Cidade do Vaticano, com o regime de governo de monarquia absoluta, titulada pelo Papa, designação do bispo de Roma, que carrega outros títulos como Vigário de Cristo, sucessor do príncipe dos apóstolos e Sumo Pontífice da Igreja Universal.
O Estado do Vaticano se estabeleceu por volta do ano 752, no pontificado de Estevão II (715-757). Os primeiros museus datam da época do papa Júlio II (1443-1513).
O Vaticano é sustentado pela colaboração financeira de todas as dioceses, particularmente, das norte-americanas e alemãs, duas das mais abastadas. Outra fonte de receitas é o turismo.
No interior da cidade, estão os organismos da Cidade-Estado do Vaticano, os dicastérios e serviços da Santa Sé, entre os quais: o Palácio Apostólico, 15 museus, galerias de arte (Capela Sistina, capelas de Rafael, Pinacoteca Vaticana, Museu Missionário Etnológico, Museu Histórico), Biblioteca Apostólica Vaticana, Rádio Vaticana, IOR, Observatório Astronómico, Domus Vaticanae (Casa Santa Marta), Basílica de São Pedro, prédios contíguos à Basílica, Jornal L’Osservatore Romano, Vatican News – Centro Televisivo Vaticano, Libreria Editrice e os arquivos apostólicos. Há 12 prédios ou espaços extraterritoriais que pertencem ao Vaticano, entre os quais as Basílicas Maiores de São João de Latrão, de São Paulo extramuros, de Santa Maria Maior e a paróquia de Santa Ana, além dos escritórios dos dicastérios e a Villa de Castel Gandolfo, conhecida como a residência de verão dos papas.
Há também o óbolo de São Pedro, que consiste em doações voluntárias de fiéis de todo o Mundo. Essas doações são destinadas a obras de cunho social e à manutenção das atividades do Vaticano, ao turismo e aos museus, que mobilizam milhões de pessoas, por ano, para algumas atrações. Entre elas, contam-se o Museu do Vaticano e a Capela Sistina, a venda de selos postais e de moedas comemorativas e, a mais controversa, a atuação de suas instituições financeiras, o IOR, que administra ativos financeiros significativos, e a APSA.
O Vaticano também é detentor de um dos maiores acervos artísticos e culturais do Mundo. No entanto, esses bens são considerados património imensurável e não estão disponíveis para venda ou uso comercial. Boa parte desse património provém de Benito Mussolini (1883-1945), que, em 1929, depositou 1,75 mil milhões de liras nos cofres da Santa Sé, por meio da Conciliação, em ressarcimento pelos bens da Igreja que lhe foram retirados durante a Unificação italiana (1871).
O movimento político-militar consolidou diversos reinos, ducados e estados independentes, entre eles, os Estados Papais, na Itália. Especialmente, entre 1860 1870, muitos bens e territórios foram retirados dos católicos, o que representou um dos momentos mais delicados da História na relação entre a Igreja e Itália unificada.
Cerca de um quarto deste valor foi usado pelo papa Pio XI (1857-1939) para estruturar o novo Estado do Vaticano, erguer os edifícios da Santa Sé (como o palácio de São Calisto, em Trastevere/Roma) e construir moradias para funcionários, próximas do Vaticano. O resto do dinheiro recebido foi aplicado numa série de investimentos, tendo como estratégia o princípio da diversificação, a fim de evitar riscos. Por conta disso, a APSA possui imóveis na Grã-Bretanha, na França e na Suíça, além da Itália, principal país de investimento, sobretudo, em Roma, com 92% das unidades imobiliárias, desde edifícios a escritórios, lojas e restaurantes.
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Atualmente, parte do património imobiliário e a gestão da carteira de investimentos geram rendimentos destinados para a manutenção da Cúria Romana, o órgão gestor da Santa Sé. Esta é a função principal das finanças do Vaticano: sustentar a máquina da Santa Sé, as nunciaturas, as movimentações do Papa e as ações de caridade. Em 2019, questionado sobre as finanças, o Papa Francisco defendeu a necessidade de investir, não para especular, mas para evitar que o capital se desvalorize. “Que se mantenha ou renda um pouco”, afirmou.
Isso é relevante, porque a Santa Sé, apesar de estar amparada pelo Estado do Vaticano, não é, por si só, um Estado, declarou o historiador italiano Andrea Riccardi, fundador da organização católica Comunidade de Santo Egídio, ao jornal italiano Corriere dela Sera. “Não tem impostos nem dívida pública. Conta com o rendimento dos seus bens e, sobretudo, com as ofertas dos fiéis. A tendência disso está ligada à opinião pública dos católicos. […] Por isso, assim como, por outros motivos, são necessárias transparência orçamentária e ordem na gestão”, diz Riccardi.
No entanto, as receitas e despesas anuais do Vaticano foram, significativamente, subnotificadas, e os seus ativos totais são o dobro do que foi antes declarado (cerca de quatro mil milhões de dólares). A observação é do padre jesuíta espanhol Juan Antonio Guerrero Alves, responsável pela Secretaria de Economia, criada por Francisco, no início da sua reforma económica, em 2014.
Para controlar os gastos excessivos, o Vaticano começou a vender cerca de 20 a 25 milhões de dólares do seu património, todos os anos. “Esses desafios precisam de ser enfrentados e não está claro como uma Igreja que luta com o declínio de membros, em países com as economias mais desenvolvidas do Mundo, pode gerar os recursos necessários para se manter”, previne o vaticanista americano John Allen Jr.
Também, nestas matérias, “Ecclesia semper reformanda est”.

2025.07.31 – Louro de Carvalho


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