A liturgia do 17.º domingo
do Tempo Comum no Ano C leva-nos a questionar a nossa relação com Deus e o modo
como tentamos comunicar com Ele. Podemos desejar cultivar uma relação de
intimidade, escutando e falando, pedindo e agradecendo ou, apenas, pedir, de forma
egoísta.
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Na primeira
leitura (Gn 18,20-32), Abraão
dirige-se ao Deus que o visitou e dialoga com Ele. Expõe-lhe inquietações, dúvidas
e questões, em diálogo respeitoso, mas frontal, sincero e confiante. Deus
responde, de forma franca, às perguntas de Abraão e partilha com ele os planos que
tem para o Mundo e para os homens. Este diálogo pode servir de modelo da nossa
oração, do nosso diálogo com Deus.
Depois de ter experimentado a hospitalidade de Abraão,
Deus dispõe-se a enviar mensageiros a Sodoma, a cidade pecadora, para aferir se
a conduta dos habitantes corresponde ao brado que Lhe chegou. Entretanto, Deus
demora-Se a conversar com Abraão sobre o seu plano. É aí que o autor javista insere
a pergunta fundamental que o inquieta: que acontecerá, se a investigação de
Deus revelar a existência na cidade de um pequeno grupo de justos? Deus castigará
todos os habitantes da cidade, incluindo os justos? Valerá tanto um punhado de
justos que Deus, por amor deles, Se disponha a perdoar a uma multidão de culpados?
A ideia de um punhado de justos salvar a cidade
pecadora é, no século X a.C. (época do javista), ideia revolucionária. Para a
mentalidade dos Israelitas de então, todos os membros da comunidade (família,
cidade, nação) eram solidários no bem e no mal; se alguém falhasse, o castigo atingiria
toda a comunidade. Apesar disso, os teólogos javistas sugerem que talvez a
justiça de uns tantos seja, para Deus, mais importante do que o pecado da
maioria.
Assim, o problema que Abraão procura resolver é se aos
olhos de Deus um grupo de justos tem tal peso que Deus, por amor deles, Se
disponha a suspender o castigo que impende sobre a comunidade. Os números
sucessivamente avançados por Abraão (em forma descendente, de 50 a 10) fazem
parte do regateio, usual nos mercados do Médio Oriente, mas servem para relevar
a misericórdia e a justiça de Deus: a descida até dez justos e as sucessivas
declarações de Deus mostrando-se disponível para suspender o castigo mostram
que, n’Ele, a misericórdia é maior do que vontade de castigar, a vontade de
salvar é infinitamente maior do que a de condenar.
Deus faz questão de não ocultar nada ao amigo.
Explica-lhe o que está em causa e desvela-lhe o seu plano, se se confirmar a
culpa dos habitantes de Sodoma. É sugestiva a ideia de que Deus, apesar da sua
grandeza e omnipotência, quer manter o homem a par do seu desígnio para o Mundo.
E Abraão apresenta-se com humildade e respeito, pois sente-se “pó e cinza”,
ante a grandeza de Deus. Porém, à medida que o diálogo avança e nota que pode
contar com a benevolência de Deus, ganha confiança. A certa altura, fica-se com
a sensação de que Abraão é importuno, na insistência, e ousado, no regateio. No
papel do orante que intercede pela cidade, Abraão atreve-se a apelar à
misericórdia e a lembrar a Deus que a inocência de alguns deve ter mais valor
do que a culpabilidade de muitos. Em nenhum momento Deus recusa escutar Abraão
ou contesta as suas observações.
O diálogo franco, confiante, insistente, ousado,
familiar, que Abraão estabelece com Deus pode ser visto como um modelo de
oração para o crente, pois o Deus de Abraão, que é o nosso, é um Deus que se
dispõe a vir ao encontro do homem, a entrar na tenda do homem, a sentar-se à
mesa com ele, a estabelecer comunhão com ele, a contar-lhe os seus projetos, a
escutar tudo o que o homem lhe quer dizer. Deus que Se revela dessa forma é um
Deus com quem o homem pode dialogar, com amor e sem receio.
***
No Evangelho
(Lc 11,1-13) Jesus conta aos discípulos a
sua experiência de Deus e mostra como devem falar com Deus. Convida-os a verem
Deus como o pai bom e cheio de amor, disponível para escutar os filhos;
pede-lhes que, ao falarem com o Pai, tentem perceber e acolham o desígnio d’Ele
para os homens; sugere-lhes que se entreguem nas mãos do Pai e que n’Ele confiem
incondicionalmente. Assim, cada momento de oração será experiência inolvidável
de intimidade, de familiaridade e de comunhão. Aliás, o texto da primeira
leitura já antecipa o cerne e a metodologia do Evangelho.
Os discípulos viram Jesus a rezar e quiseram que Ele
os ensinasse. Jesus refere-se a dois aspetos a considerar no diálogo com Deus.
O primeiro incide na forma: deve ser diálogo como o do filho com o pai; o
segundo atinge o assunto: o diálogo incidirá na realização do plano do Pai para
o Mundo e para os homens.
Os discípulos de Jesus devem experimentar Deus como pai
e dirigir-se-Lhe como a pai (“quando orardes, dizei: ‘Pai’.”). Ver Deus como
pai não é, para os contemporâneos de Jesus, novidade. No Antigo Testamento,
Deus é o pai que manifesta amor e solicitude pelo seu Povo, mas, na época de
Jesus, não era habitual os crentes usarem este título na oração individual,
dirigindo-se a Deus.
No entanto, Jesus usava-o. É provável que utilizasse o
termo aramaico “abba” (“Abbá, Pai, tudo Te é possível; afasta de mim este
cálice!”), do nível das crianças, que expressa a ternura, a simplicidade, a
dependência, a confiança do filho pequeno, quando se dirige ao papá. A Igreja primitiva,
tocada pela utilização que Jesus fez do termo, recolheu-o e utilizou-o, para se
referir a Deus). Para Jesus, Deus era o “Abbá”, o Pai querido. Jesus sentia-Se
intimamente ligado ao Pai, experimentava a ternura do Pai, confiava plenamente
n’Ele. Era, dessa forma, que experimentava e sentia Deus.
Ora, ao pedir aos discípulos que tratem Deus por Pai, admite-os
à comunhão que existe entre Ele e Deus. Identificados com Jesus, os discípulos
estabelecem com Deus uma relação íntima, única, familiar. Passam a ser irmãos
de Jesus e entram na família de Deus. Tornam-se “filhos de Deus”. Sentir-se
filho de Deus significa reconhecer a fraternidade, a comunhão com uma imensa
família que reúne homens e mulheres de todas as raças, culturas e nações. Dizer
a Deus “Pai” é sair do individualismo que aliena, supera as divisões e destrói
as barreiras que impedem de amar e de ser solidários com os outros irmãos,
filhos queridos do mesmo Pai.
Definida a atitude, falta delinear o tema da oração.
Jesus sugere diversas petições que podem entrar no diálogo dos discípulos com o
Pai.
A primeira é a santificação do nome de Deus
(“santificado seja o vosso nome”). O crente expressa o desejo de que Deus Se
manifeste como Salvador, aos olhos de todos os povos, e que todos reconheçam a
grandeza e a soberania de Deus sobre o Mundo e sobre a História. Reconhecendo a
autoridade de Deus, os homens viverão na obediência aos seus preceitos e mandamentos.
Será o fim das injustiças e o início da nova realidade. A segunda alude à vinda
do Reino de Deus (“venha o teu reino”), o grande tema e paixão de Jesus. Jesus,
sentindo que este é o projeto do Pai, anuncia e propõe um Mundo que funcione
segundo os valores de Deus: a paz, a justiça, a fraternidade, a igualdade entre
todos os homens. O Reino de Deus opõe-se aos impérios deste Mundo, construídos
sobre injustiças, violências, ambições, guerras e mortes. Para Jesus, faz todo
o sentido pedir a Deus que o Reino se torne realidade na vida dos homens.
A terceira implora o pão quotidiano para todos os
filhos de Deus (“dá-nos, em cada dia, o pão da nossa subsistência”). Jesus via,
todos os dias, desfilar pelos caminhos da Galileia homens sem trabalho, que não
tinham pão para os filhos. Ao passarem por zonas despovoadas e pobres, Ele
próprio e os discípulos nem sempre encontravam o pão de que necessitavam para
se alimentarem. No entanto, Ele sabia que Deus tinha alimentado o povo, ao
longo da caminhada pelo deserto, e fazia, em cada ano, florescer as sementes
nos campos. O pão, necessário para subsistir em cada dia, é dom de Deus; é Deus
que provê às necessidades dos seus filhos. Assim, é necessário pedir a Deus o
pão de cada dia. E o pão que Deus distribui é “nosso”, não “meu”, pois
destina-se à subsistência de todos os filhos de Deus e não apenas do que reza.
A visão egoísta e açambarcadora dos bens dados por Deus não cabe na oração. A
quarta pede a Deus perdão dos pecados (“perdoa-nos os nossos pecados, porque
também nós perdoamos àquele que nos ofende”). O pedido para que Deus perdoe os
pecados é frequente na oração judaica. Também para os discípulos de Jesus, o
pedido para que o Pai perdoasse os pecados fazia todo o sentido: apesar das
boas intenções, deixavam-se dominar, a cada passo do caminho, por medos e
receios, por invejas e ciúmes, por ambições e projetos egoístas. Precisavam do
perdão de Deus. Porém, a oração ensinada por Jesus traz algo novo: o
compromisso com o perdão aos irmãos. Quem quiser experimentar o perdão de Deus,
que cura e regenera, tem de comprometer-se a perdoar aos irmãos. Ninguém pode
sentir-se em paz com o Pai se não se sentir em paz com o irmão.
A última (“não nos deixes cair em tentação”) solicita
a Deus ajuda para que os discípulos não se deixem seduzir pelo apelo da
felicidade ilusória, do caminho fácil que leva a beco sem saída, das lógica que
afaste dos valores evangélicos, das solicitações do Mundo materialista,
violento, injusto e desumano.
Embora seja oração breve, o “Pai nosso” sintetiza o
que Jesus viveu e sentiu a propósito de Deus e do seu desígnio. Constitui
também um resumo do que Jesus disse e ensinou, um compêndio do Evangelho. Portanto,
faz todo o sentido que esta seja a oração dos discípulos; faz todo o sentido
que, sempre que os discípulos se reúnem à volta da mesa eucarística, rezem “a
oração que Jesus ensinou”.
A lição de Jesus sobre a oração remata com duas parábolas.
Na primeira, um “amigo importuno” que pede, insistentemente, pães emprestados,
e outro amigo que se levanta da cama a horas impróprias, para entregar ao primeiro
os pães que ele reclama. Se deve acentuar-se a insistência do amigo importuno, para
relevar a necessidade da persistência orante, por maioria de razão, se deve
atentar na ação do amigo que satisfaz o pedido. O que Jesus sugere é claro: se
os homens são capazes de escutar o apelo de amigo importuno, muito mais Deus
atenderá, generosamente, os que se Lhe dirigem. A segunda parábola convida à
confiança em Deus. Um pai escuta sempre os pedidos do filho e não o defraudará.
De igual modo, Deus conhece-nos bem, escuta os nossos pedidos e sabe do que
necessitamos. Seja qual for a resposta de Deus, de uma coisa podemos estar
certos: Ele nunca dará nada que nos faça mal. Nos momentos mais complicados da vida,
a oração insistente fará com que o Pai nos dê o seu Espírito. Animados e
fortalecidos pela força de Deus, podemos enfrentar todas as crises e
dificuldades.
***
Na segunda
leitura (Cl 2,12-14) Paulo,
dirigindo-se aos cristãos de Colossos, recorda o papel e o lugar de Cristo no
desígnio salvador de Deus em prol dos homens e convida-os a serem coerentes com
os compromissos que assumiram que optaram por caminhar com Cristo.
No dia em que aderiu a Cristo e recebeu o batismo, o
crente incorporou-se em Cristo e identificou-se com Ele. A vida de Cristo
passou a circular nele. Revivificado por essa vida, o crente morreu para o
pecado e ressuscitou para a vida nova, para a vida totalmente outra
(“sepultados com Cristo no batismo, com Ele fostes ressuscitados pela fé que
tivestes no poder de Deus que O ressuscitou dos mortos”). Portanto, quem escolheu
Cristo, libertou-se das cadeias que o tolhiam e lhe roubavam a vida. Não
precisa de recorrer a outras filosofias, a outros poderes, a outras propostas
(anjos, poderes cósmicos, leis veterotestamentárias, práticas ascéticas
rígidas) para ter acesso à salvação. É Cristo que salva. Cristo basta.
Para explicitar a intervenção salvadora de Cristo, o apóstolo
refere-se a um “documento de dívida” que a morte de Cristo anulou. Não sabemos em
que pensa o autor da carta, ao referir esse documento. Pode ser alusão à lei de
Moisés que, com as leis, exigências e prescrições impossíveis de cumprir na
totalidade, constituía acusação contra as falhas dos homens. E pode evocar
certas tradições judaicas da época, que falavam de um registo onde Deus
inscreveria as contas dos homens. Em todo o caso, o crente já não precisa de
viver no medo do castigo. Cristo, com a sua entrega na cruz, anulou o documento
que listava os débitos do homem, pelo que já estão saldados.
Enxertado em Cristo, vivificado pela comunhão com
Cristo, o crente é Homem Novo. Pode caminhar, a passos largos, rumo à vida em
plenitude.
***
Por isso, os crentes cantam: “Quando
Vos invoco, sempre me atendeis, Senhor.”
“De todo o coração, Senhor, eu Vos dou graças, / porque
ouvistes as palavras da minha boca. / Na presença dos Anjos hei de cantar-Vos /
e adorar-Vos, voltando para o vosso templo santo.
“Hei de louvar o vosso nome pela vossa bondade e
fidelidade, / porque exaltastes acima de tudo o vosso nome e a vossa promessa.
/ Quando Vos invoquei, me respondestes, / aumentastes a fortaleza da minha
alma.
“O Senhor é excelso e olha para o humilde, / ao
soberbo conhece-o de longe. / No meio da tribulação Vós me conservais a vida, /
Vós me ajudais contra os meus inimigos.
“A vossa mão direita me salvará, / o Senhor completará
o que em meu auxílio começou. / Senhor, a vossa bondade é eterna, / não
abandoneis a obra das vossas mãos.”
2025.07.27 – Louro de Carvalho
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