domingo, 27 de julho de 2025

É importante saber e querer dialogar com Deus

 

A liturgia do 17.º domingo do Tempo Comum no Ano C leva-nos a questionar a nossa relação com Deus e o modo como tentamos comunicar com Ele. Podemos desejar cultivar uma relação de intimidade, escutando e falando, pedindo e agradecendo ou, apenas, pedir, de forma egoísta.   

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Na primeira leitura (Gn 18,20-32), Abraão dirige-se ao Deus que o visitou e dialoga com Ele. Expõe-lhe inquietações, dúvidas e questões, em diálogo respeitoso, mas frontal, sincero e confiante. Deus responde, de forma franca, às perguntas de Abraão e partilha com ele os planos que tem para o Mundo e para os homens. Este diálogo pode servir de modelo da nossa oração, do nosso diálogo com Deus.
Depois de ter experimentado a hospitalidade de Abraão, Deus dispõe-se a enviar mensageiros a Sodoma, a cidade pecadora, para aferir se a conduta dos habitantes corresponde ao brado que Lhe chegou. Entretanto, Deus demora-Se a conversar com Abraão sobre o seu plano. É aí que o autor javista insere a pergunta fundamental que o inquieta: que acontecerá, se a investigação de Deus revelar a existência na cidade de um pequeno grupo de justos? Deus castigará todos os habitantes da cidade, incluindo os justos? Valerá tanto um punhado de justos que Deus, por amor deles, Se disponha a perdoar a uma multidão de culpados?
A ideia de um punhado de justos salvar a cidade pecadora é, no século X a.C. (época do javista), ideia revolucionária. Para a mentalidade dos Israelitas de então, todos os membros da comunidade (família, cidade, nação) eram solidários no bem e no mal; se alguém falhasse, o castigo atingiria toda a comunidade. Apesar disso, os teólogos javistas sugerem que talvez a justiça de uns tantos seja, para Deus, mais importante do que o pecado da maioria.
Assim, o problema que Abraão procura resolver é se aos olhos de Deus um grupo de justos tem tal peso que Deus, por amor deles, Se disponha a suspender o castigo que impende sobre a comunidade. Os números sucessivamente avançados por Abraão (em forma descendente, de 50 a 10) fazem parte do regateio, usual nos mercados do Médio Oriente, mas servem para relevar a misericórdia e a justiça de Deus: a descida até dez justos e as sucessivas declarações de Deus mostrando-se disponível para suspender o castigo mostram que, n’Ele, a misericórdia é maior do que vontade de castigar, a vontade de salvar é infinitamente maior do que a de condenar.
Deus faz questão de não ocultar nada ao amigo. Explica-lhe o que está em causa e desvela-lhe o seu plano, se se confirmar a culpa dos habitantes de Sodoma. É sugestiva a ideia de que Deus, apesar da sua grandeza e omnipotência, quer manter o homem a par do seu desígnio para o Mundo. E Abraão apresenta-se com humildade e respeito, pois sente-se “pó e cinza”, ante a grandeza de Deus. Porém, à medida que o diálogo avança e nota que pode contar com a benevolência de Deus, ganha confiança. A certa altura, fica-se com a sensação de que Abraão é importuno, na insistência, e ousado, no regateio. No papel do orante que intercede pela cidade, Abraão atreve-se a apelar à misericórdia e a lembrar a Deus que a inocência de alguns deve ter mais valor do que a culpabilidade de muitos. Em nenhum momento Deus recusa escutar Abraão ou contesta as suas observações.
O diálogo franco, confiante, insistente, ousado, familiar, que Abraão estabelece com Deus pode ser visto como um modelo de oração para o crente, pois o Deus de Abraão, que é o nosso, é um Deus que se dispõe a vir ao encontro do homem, a entrar na tenda do homem, a sentar-se à mesa com ele, a estabelecer comunhão com ele, a contar-lhe os seus projetos, a escutar tudo o que o homem lhe quer dizer. Deus que Se revela dessa forma é um Deus com quem o homem pode dialogar, com amor e sem receio.

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No Evangelho (Lc 11,1-13) Jesus conta aos discípulos a sua experiência de Deus e mostra como devem falar com Deus. Convida-os a verem Deus como o pai bom e cheio de amor, disponível para escutar os filhos; pede-lhes que, ao falarem com o Pai, tentem perceber e acolham o desígnio d’Ele para os homens; sugere-lhes que se entreguem nas mãos do Pai e que n’Ele confiem incondicionalmente. Assim, cada momento de oração será experiência inolvidável de intimidade, de familiaridade e de comunhão. Aliás, o texto da primeira leitura já antecipa o cerne e a metodologia do Evangelho.
Os discípulos viram Jesus a rezar e quiseram que Ele os ensinasse. Jesus refere-se a dois aspetos a considerar no diálogo com Deus. O primeiro incide na forma: deve ser diálogo como o do filho com o pai; o segundo atinge o assunto: o diálogo incidirá na realização do plano do Pai para o Mundo e para os homens.
Os discípulos de Jesus devem experimentar Deus como pai e dirigir-se-Lhe como a pai (“quando orardes, dizei: ‘Pai’.”). Ver Deus como pai não é, para os contemporâneos de Jesus, novidade. No Antigo Testamento, Deus é o pai que manifesta amor e solicitude pelo seu Povo, mas, na época de Jesus, não era habitual os crentes usarem este título na oração individual, dirigindo-se a Deus.
No entanto, Jesus usava-o. É provável que utilizasse o termo aramaico “abba” (“Abbá, Pai, tudo Te é possível; afasta de mim este cálice!”), do nível das crianças, que expressa a ternura, a simplicidade, a dependência, a confiança do filho pequeno, quando se dirige ao papá. A Igreja primitiva, tocada pela utilização que Jesus fez do termo, recolheu-o e utilizou-o, para se referir a Deus). Para Jesus, Deus era o “Abbá”, o Pai querido. Jesus sentia-Se intimamente ligado ao Pai, experimentava a ternura do Pai, confiava plenamente n’Ele. Era, dessa forma, que experimentava e sentia Deus.
Ora, ao pedir aos discípulos que tratem Deus por Pai, admite-os à comunhão que existe entre Ele e Deus. Identificados com Jesus, os discípulos estabelecem com Deus uma relação íntima, única, familiar. Passam a ser irmãos de Jesus e entram na família de Deus. Tornam-se “filhos de Deus”. Sentir-se filho de Deus significa reconhecer a fraternidade, a comunhão com uma imensa família que reúne homens e mulheres de todas as raças, culturas e nações. Dizer a Deus “Pai” é sair do individualismo que aliena, supera as divisões e destrói as barreiras que impedem de amar e de ser solidários com os outros irmãos, filhos queridos do mesmo Pai.
Definida a atitude, falta delinear o tema da oração. Jesus sugere diversas petições que podem entrar no diálogo dos discípulos com o Pai.
A primeira é a santificação do nome de Deus (“santificado seja o vosso nome”). O crente expressa o desejo de que Deus Se manifeste como Salvador, aos olhos de todos os povos, e que todos reconheçam a grandeza e a soberania de Deus sobre o Mundo e sobre a História. Reconhecendo a autoridade de Deus, os homens viverão na obediência aos seus preceitos e mandamentos. Será o fim das injustiças e o início da nova realidade. A segunda alude à vinda do Reino de Deus (“venha o teu reino”), o grande tema e paixão de Jesus. Jesus, sentindo que este é o projeto do Pai, anuncia e propõe um Mundo que funcione segundo os valores de Deus: a paz, a justiça, a fraternidade, a igualdade entre todos os homens. O Reino de Deus opõe-se aos impérios deste Mundo, construídos sobre injustiças, violências, ambições, guerras e mortes. Para Jesus, faz todo o sentido pedir a Deus que o Reino se torne realidade na vida dos homens.
A terceira implora o pão quotidiano para todos os filhos de Deus (“dá-nos, em cada dia, o pão da nossa subsistência”). Jesus via, todos os dias, desfilar pelos caminhos da Galileia homens sem trabalho, que não tinham pão para os filhos. Ao passarem por zonas despovoadas e pobres, Ele próprio e os discípulos nem sempre encontravam o pão de que necessitavam para se alimentarem. No entanto, Ele sabia que Deus tinha alimentado o povo, ao longo da caminhada pelo deserto, e fazia, em cada ano, florescer as sementes nos campos. O pão, necessário para subsistir em cada dia, é dom de Deus; é Deus que provê às necessidades dos seus filhos. Assim, é necessário pedir a Deus o pão de cada dia. E o pão que Deus distribui é “nosso”, não “meu”, pois destina-se à subsistência de todos os filhos de Deus e não apenas do que reza. A visão egoísta e açambarcadora dos bens dados por Deus não cabe na oração. A quarta pede a Deus perdão dos pecados (“perdoa-nos os nossos pecados, porque também nós perdoamos àquele que nos ofende”). O pedido para que Deus perdoe os pecados é frequente na oração judaica. Também para os discípulos de Jesus, o pedido para que o Pai perdoasse os pecados fazia todo o sentido: apesar das boas intenções, deixavam-se dominar, a cada passo do caminho, por medos e receios, por invejas e ciúmes, por ambições e projetos egoístas. Precisavam do perdão de Deus. Porém, a oração ensinada por Jesus traz algo novo: o compromisso com o perdão aos irmãos. Quem quiser experimentar o perdão de Deus, que cura e regenera, tem de comprometer-se a perdoar aos irmãos. Ninguém pode sentir-se em paz com o Pai se não se sentir em paz com o irmão.
A última (“não nos deixes cair em tentação”) solicita a Deus ajuda para que os discípulos não se deixem seduzir pelo apelo da felicidade ilusória, do caminho fácil que leva a beco sem saída, das lógica que afaste dos valores evangélicos, das solicitações do Mundo materialista, violento, injusto e desumano.
Embora seja oração breve, o “Pai nosso” sintetiza o que Jesus viveu e sentiu a propósito de Deus e do seu desígnio. Constitui também um resumo do que Jesus disse e ensinou, um compêndio do Evangelho. Portanto, faz todo o sentido que esta seja a oração dos discípulos; faz todo o sentido que, sempre que os discípulos se reúnem à volta da mesa eucarística, rezem “a oração que Jesus ensinou”.
A lição de Jesus sobre a oração remata com duas parábolas. Na primeira, um “amigo importuno” que pede, insistentemente, pães emprestados, e outro amigo que se levanta da cama a horas impróprias, para entregar ao primeiro os pães que ele reclama. Se deve acentuar-se a insistência do amigo importuno, para relevar a necessidade da persistência orante, por maioria de razão, se deve atentar na ação do amigo que satisfaz o pedido. O que Jesus sugere é claro: se os homens são capazes de escutar o apelo de amigo importuno, muito mais Deus atenderá, generosamente, os que se Lhe dirigem. A segunda parábola convida à confiança em Deus. Um pai escuta sempre os pedidos do filho e não o defraudará. De igual modo, Deus conhece-nos bem, escuta os nossos pedidos e sabe do que necessitamos. Seja qual for a resposta de Deus, de uma coisa podemos estar certos: Ele nunca dará nada que nos faça mal. Nos momentos mais complicados da vida, a oração insistente fará com que o Pai nos dê o seu Espírito. Animados e fortalecidos pela força de Deus, podemos enfrentar todas as crises e dificuldades.

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Na segunda leitura (Cl 2,12-14) Paulo, dirigindo-se aos cristãos de Colossos, recorda o papel e o lugar de Cristo no desígnio salvador de Deus em prol dos homens e convida-os a serem coerentes com os compromissos que assumiram que optaram por caminhar com Cristo.

No dia em que aderiu a Cristo e recebeu o batismo, o crente incorporou-se em Cristo e identificou-se com Ele. A vida de Cristo passou a circular nele. Revivificado por essa vida, o crente morreu para o pecado e ressuscitou para a vida nova, para a vida totalmente outra (“sepultados com Cristo no batismo, com Ele fostes ressuscitados pela fé que tivestes no poder de Deus que O ressuscitou dos mortos”). Portanto, quem escolheu Cristo, libertou-se das cadeias que o tolhiam e lhe roubavam a vida. Não precisa de recorrer a outras filosofias, a outros poderes, a outras propostas (anjos, poderes cósmicos, leis veterotestamentárias, práticas ascéticas rígidas) para ter acesso à salvação. É Cristo que salva. Cristo basta.
Para explicitar a intervenção salvadora de Cristo, o apóstolo refere-se a um “documento de dívida” que a morte de Cristo anulou. Não sabemos em que pensa o autor da carta, ao referir esse documento. Pode ser alusão à lei de Moisés que, com as leis, exigências e prescrições impossíveis de cumprir na totalidade, constituía acusação contra as falhas dos homens. E pode evocar certas tradições judaicas da época, que falavam de um registo onde Deus inscreveria as contas dos homens. Em todo o caso, o crente já não precisa de viver no medo do castigo. Cristo, com a sua entrega na cruz, anulou o documento que listava os débitos do homem, pelo que já estão saldados.
Enxertado em Cristo, vivificado pela comunhão com Cristo, o crente é Homem Novo. Pode caminhar, a passos largos, rumo à vida em plenitude.

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Por isso, os crentes cantam: “Quando Vos invoco, sempre me atendeis, Senhor.”

“De todo o coração, Senhor, eu Vos dou graças, / porque ouvistes as palavras da minha boca. / Na presença dos Anjos hei de cantar-Vos / e adorar-Vos, voltando para o vosso templo santo.

“Hei de louvar o vosso nome pela vossa bondade e fidelidade, / porque exaltastes acima de tudo o vosso nome e a vossa promessa. / Quando Vos invoquei, me respondestes, / aumentastes a fortaleza da minha alma.

“O Senhor é excelso e olha para o humilde, / ao soberbo conhece-o de longe. / No meio da tribulação Vós me conservais a vida, / Vós me ajudais contra os meus inimigos.

“A vossa mão direita me salvará, / o Senhor completará o que em meu auxílio começou. / Senhor, a vossa bondade é eterna, / não abandoneis a obra das vossas mãos.”

2025.07.27 – Louro de Carvalho

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