segunda-feira, 21 de julho de 2025

A contemplação e a hospitalidade tornam a vida mais humana

 

 

As vicissitudes da vida hodierna, obrigando a ritmo estonteante, induzem a postergação de coisas fundamentais. Ora, a Palavra de Deus na liturgia do XVI domingo do Tempo Comum no Ano C leva a redescobrir as prioridades e os valores que tornam a vida mais humana e cheia de sentido.
primeira leitura (Gn 18,1-10a) apresenta Abraão, o homem que não se importa de gastar tempo com o outro. Ao aparecerem junto da sua tenda três visitantes inesperados, Abraão vê-os e acolhe-os, prepara-lhes um banquete e oferece-lhes o que tem de melhor. Na verdade, em cada pessoa que nos visita, é Deus que vem ao nosso encontro. Temos de olhar e ver, para acolhermos, já que o tempo gasto no acolhimento e no cuidado dos irmãos é útil para o crescimento humano e cristão.
Na catequese de Israel, com recurso a esta velha lenda cultual, o herói da saga não é um cananeu anónimo (como acontecia na primitividade), mas o patriarca Abraão, que está “sentado à entrada da sua tenda, na hora de maior calor do dia”, quando ergue os olhos e repara que estão ali, diante dele, três misteriosos viajantes. Ao insinuar que Abraão não os viu chegar, o autor do relato sugere que o divino surge, por surpresa, na vida do homem. Contudo, Abraão levantou-se e aproximou-se deles. Ao pararem diante da tenda de Abraão, os três já tinham mostrado a intenção de se deterem ali. Sem saber quem são, Abraão dirige-lhes, respeitosamente, o convite para entrarem na tenda e aceitarem a sua hospitalidade. O convite é aceite, de forma condescendente.
À indicação do patriarca, todos os membros daquela família nómada se movimentam para acolherem bem os hóspedes desconhecidos. Sara, esposa de Abraão, amassa a farinha e coze o pão; Abraão escolhe um bezerro tenro, pede ao criado que o prepare; traz manteiga, leite e o vitelo já cozinhado, para que os visitantes possam saciar a fome. Depois, enquanto eles comem, Abraão fica de pé, na atitude do servo vigilante, para que nada falte aos convidados. É a lendária hospitalidade nómada no seu melhor. Abraão aparece como o modelo do homem íntegro, humano, solícito, bondoso, atento a quem passa e disposto a repartir o que tem de melhor com os que se cruzam com ele na vida.
Terminada a refeição, os viajantes anunciam a Abraão a realização do seu anseio mais profundo: Sara, esposa de Abraão, ficará grávida e dará à luz um filho. Embora tal não seja afirmado, paira a ideia de que o dom do filho é a resposta de Deus à atitude hospitaleira de Abraão. Deus recompensa Abraão pela sua bondade, pela sua solicitude, pelo seu amor gratuito.
Até este momento o catequista não disse quem eram as três personalidades (só o explicitará mais adiante, quando identificar uma destas personagens com Javé), mas já se percebeu que se trata da visita de Deus a Abraão. A imagem de Deus o texto apresenta é muito bela: o Deus de Abraão é um Deus que vem ao encontro do homem, se detém junto dele, aceita entrar na sua tenda e sentar-se à sua mesa, estabelecendo com ele laços de família. É o Deus do diálogo e da comunhão, que se apresenta na vida do homem e que se dispõe a concretizar os sonhos e as aspirações do homem. E, embora não seja claro se Abraão tem consciência de que está diante de Deus, a sua atitude pauta-se pela submissão, pelo respeito, pela confiança total. Sara ri-se ante a promessa de um filho, mas Abraão conserva digno silêncio, sem manifestar dúvida. O catequista, revestindo Abraão com estes traços, insinua que deve ser esta a atitude do crente israelita ante o Deus que vem ao encontro do homem.

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O Evangelho (Lc 10,38-42) volta aos temas da hospitalidade e da contemplação. Duas irmãs – Marta e Maria – acolhem Jesus na sua casa. Marta prepara para o hóspede uma boa refeição; Maria senta-se aos pés de Jesus, a escutar o que Ele diz. São duas atitudes válidas, próprias do discípulo. Mas Lucas insinua que a escuta da Palavra de Jesus deve preceder e seguir a ação. É a escuta da Palavra que permite a contemplação. E a ação sem a escuta de Jesus torna-se ativismo que se esvazia de sentido, mais tarde ou mais cedo.
Marta parece ser, pelo nome e pelo protagonismo que assume, a dona da casa. Aliás, foi ela que O convidou. Maria, a outra mulher, provavelmente, seria a mais nova, pois aparece em segundo plano. Não há referência, no texto lucano, a uma figura masculina que habitasse na casa.
Jesus é recebido na casa de Marta. E a narração não faz referência aos discípulos e ao grupo de mulheres que vêm com Jesus desde a Galileia e que se dirigem com Ele para Jerusalém. O escopo do evangelista é o foco em Jesus e nas mulheres daquela casa. Outras eventuais personagens seriam ruído de fundo que não importa à narrativa lucana.
Lucas não se detém nos pormenores da chegada de Jesus e passa, de imediato, a descrever a forma como as irmãs respondem à presença de Jesus.
Marta “atarefava-se com muito serviço”. Imaginamo-la na cozinha, a cozer o pão, a assar o cordeiro, a preparar o vinho e, a cada instante, a correr para a sala a pôr a mesa e a deixar tudo em ordem. Maria, ao invés, está sentada aos pés de Jesus, a ouvir a sua palavra. A posição de Maria, “sentada aos pés de Jesus”, é a posição típica do discípulo que escuta, com toda a atenção, as lições do mestre (anos mais tarde, quando foi preso em Jerusalém, Paulo de Tarso apresenta-se ao povo como “judeu… instruído aos pés de Gamaliel, em todo o rigor da Lei”). É um quadro pouco ortodoxo, pois, no Mundo judaico, era extremamente difícil um mestre aceitar uma mulher no grupo de discípulos. Jesus, no entanto, está apostado em fazer nascer a comunidade nova, onde todos têm lugar. As mulheres, que tinham, na sociedade judaica, um estatuto de subalternidade, são discípulas de pleno direito, na comunidade do Reino.
Marta, sobrecarregada de trabalho, dirige-se a Jesus e pergunta-lhe se Ele não Se importa que Maria fique ali a escutá-Lo e não ajude na cozinha. Marta não se dirige a Maria, talvez por achar que a culpa é de Jesus, devendo ser Ele a resolver a situação. Marta parece estar à vontade com Jesus: não O trata como pessoa distante, de cerimónia, mas como alguém da casa, que pertence à família e que, portanto, deve ter algo a dizer nas questões domésticas. Porém, Jesus responde-lhe com carinho, repetindo o seu nome, por duas vezes: “Marta, Marta”. Não a critica pelo que anda a fazer, pois sabe que o serviço de Marta é um sinal de amor, mas anota que ela, “inquieta e preocupada com muitas coisas”, prescindiu da que é mesmo necessária. Maria, em contraponto, escolheu sentar-se aos pés de Jesus a escutar a sua palavra. Está totalmente concentrada em Jesus. Não há outra forma de o dizer: “Maria escolheu a melhor parte”, a que está na base de tudo e que dá consistência a tudo o que fazemos. Certo disso, Jesus não pede a Maria que relegue a escuta da Palavra para lugar secundário.
Não raro, o episódio é lido à luz da oposição entre ação e contemplação, com Marta a representar a vida ativa e Maria a vida contemplativa. Todavia, a questão essencial não é a bondade de um estilo de vida, em detrimento de outro. O que está em causa é a definição da atitude de qualquer discípulo. Há discípulos que, ante a urgência do trabalho apostólico, se envolvem completamente na ação, com generosidade e entrega; mas, absorvidos pela voragem do trabalho, não dispõem de tempo para se sentarem aos pés de Jesus para O escutarem. Na agitação envolvente, perdem o sentido das coisas, deixam de perceber o rumo.
É certo que “a messe é grande e os trabalhadores são poucos”, mas nenhuma ação dará consistentes frutos, se não se alicerçar na escuta de Jesus, no encontro com a sua Palavra. Todos os discípulos precisam de tempo para se sentarem aos pés de Jesus, para escutarem a Palavra de Jesus, para acolherem a paz que brota d’Ele, para redescobrirem o caminho que Jesus convida a percorrer. Os discípulos que seguem Jesus para Jerusalém e os discípulos que se dispõem a segui-Lo, em qualquer época, devem estar conscientes disto.

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Na segunda leitura (Cl 1,24-28), Paulo fala aos cristãos de Colossos da sua experiência. Ele tem-se esforçado por testemunhar, em toda a parte o desígnio salvador de Deus revelado em Cristo. Por isso, espera que os Colossenses se disponham a construir as suas vidas à volta de Cristo. E, neste sentido, exorta-os a viverem em comunhão cada vez mais perfeita com Cristo, pois é n’Ele que os crentes encontrarão a salvação e a vida em plenitude.
Desde que encontrou Cristo na estrada de Damasco, o apóstolo pôs-se totalmente ao seu serviço. Sofreu muito, conheceu a oposição e a perseguição. E, quando escreve aos cristãos de Colossos, está prisioneiro por causa do serviço ao Evangelho. Apesar de tudo, sente-se feliz, pois sabe que os sofrimentos que passou não foram em vão, antes contribuíram para que muitos descobrissem Cristo e o seu plano de salvação; e com os sofrimentos que tem suportado, sente que completa na sua carne “o que falta à paixão de Cristo, em benefício do seu corpo que é a Igreja”.
Este segmento entende-se no contexto da doutrina do corpo místico. Cristo é a cabeça de um corpo que é a Igreja; se Cristo, a cabeça, sofreu, é lógico que os membros do corpo (os cristãos) sofram, visto que estão unidos a Cristo e participam no seu destino, o que põe em relevo a união dos cristãos com Cristo e dos cristãos entre si. Porém, a falta a que Paulo se refere é uma alusão à continuação do desígnio salvador de Cristo em prol dos homens: Cristo, entregando-Se até à morte, ofereceu-nos a salvação; mas, para que a força salvadora de Cristo chegue a todos, os enviados têm de esforçar-se, de sofrer, de enfrentar as forças que se opõem ao Evangelho.
No que a si diz respeito, Paulo sente-se “servidor” (“diákonos”) da Igreja, com a missão de proclamar a todos o “mistério” (“mystêrion”). Este termo designa o plano salvador de Deus, oculto aos homens, durante séculos, revelado plenamente na pessoa, na ação e nas palavras de Jesus, proclamado e continuado pelos discípulos de Jesus (Igreja), na História. O esforço de Paulo (e dos cristãos, em geral) deve ser concretizar esse desígnio de salvação-libertação que traz a vida em plenitude aos homens de toda a Terra.
Paulo tem-se esforçado por mostrar a todos os que encontraram Cristo a riqueza da plena compreensão do mistério e espera que os Colossenses se disponham a construir as suas vidas à volta de Cristo e da salvação. Para tanto, exorta-os a viverem em comunhão com Cristo, pois é em Cristo (e não nos anjos, nos poderes, nas práticas legalistas judaicas, nos rituais estéreis) que os crentes encontrarão a salvação e a vida em plenitude.

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Na homilia da missa a que presidiu, na catedral de Albano, Leão XIV considerou que “a primeira leitura e o Evangelho falam-nos de hospitalidade, de serviço e de escuta”.
Deus visitou Abraão na pessoa de “três homens” que se dirigem à sua tenda “na hora mais quente do dia”. E o Pontífice enumera: “o sol escaldante, a calma do deserto, o calor intenso e os três desconhecidos que andam à procura de abrigo”. Abraão, sentado “à porta da sua tenda”, está como anfitrião: “reconhecendo, nos visitantes, a presença de Deus, levanta-se, corre ao seu encontro, prostra-se por terra, pede-lhes que se detenham”; e “a tranquilidade da tarde é preenchida com gestos de amor”, que envolvem o patriarca, Sara, sua mulher, e os servos. Abraão não está já sentado, mas “de pé junto dos estranhos, debaixo da árvore”, e Deus dá-lhe a melhor notícia que podia esperar: “Sara, tua mulher, terá já um filho.”
“Deus escolhe o caminho da hospitalidade para encontrar Sara e Abraão e para lhes anunciar o dom da sua fecundidade, que eles tanto desejavam e já nem sequer esperavam. Depois de tantos momentos de graça em que, anteriormente, os tinha visitado, volta a bater-lhes à porta, pedindo acolhimento e confiança. E os dois idosos respondem positivamente, sem saberem o que está para acontecer. Reconhecem nos misteriosos visitantes a Sua bênção, a Sua própria presença. Oferecem-Lhe o que têm – comida, companhia, serviço e a sombra de uma árvore –, e recebem a promessa de uma vida nova e de uma descendência”, discorre o Santo Padre.
Também o Evangelho fala do mesmo modo de agir de Deus. Jesus apresenta-Se como hóspede em casa de Marta e de Maria. Não é desconhecido: está em casa de amigos e o ambiente é de festa. Uma das irmãs acolhe-O com mil atenções, enquanto a outra O escuta sentada a seus pés, na atitude típica do discípulo ante o mestre. Às queixas da que gostaria de receber ajuda em questões práticas, “Jesus responde, convidando-a a apreciar o valor da escuta”.
No dizer do Papa Leão, é errado ver as duas atitudes como contrapostas ou comparar os méritos das duas mulheres, pois o serviço e a escuta são “dimensões gémeas do acolhimento”.
Na verdade, se é importante viver a fé “com ações concretas e com a fidelidade aos nossos deveres, segundo o estado e a vocação de cada um”, é também fundamental fazê-lo “a partir da meditação da Palavra de Deus e da atenção ao que o Espírito Santo sugere ao nosso coração, reservando, para isso, momentos de silêncio, momentos de oração, tempos em que, silenciando ruídos e distrações, nos reunimos diante d’Ele e construímos a unidade em nós mesmos”. Ou seja, segundo o Pontífice, dar lugar ao silêncio, à escuta do Pai que fala e “vê o oculto”, é uma dimensão da vida cristã que temos de recuperar, como valor pessoal e comunitário e como sinal profético para o nosso tempo. Assim, os dias de verão podem ser tempo providencial para experimentar a beleza e a importância da intimidade com Deus, ajudando-nos a ser mais abertos e acolhedores uns para com os outros. São dias em que dispomos de mais tempo livre, para nos recolhermos e meditarmos e para nos encontrarmos, deslocando-nos e visitando-nos, reciprocamente.
E o Papa exorta a que saiamos do “turbilhão dos compromissos e das preocupações”, para saborearmos “momentos de sossego e recolhimento”, para, indo a algum lado, partilharmos “a alegria de nos vermos”. “Façamos disto oportunidade para cuidarmos uns dos outros, para trocarmos experiências, ideias, para nos compreendermos, mutuamente, e darmos bons conselhos: isto faz-nos sentir amados, e todos precisamos de tal. Façamo-lo com coragem. Deste modo, na solidariedade, na partilha da fé e da vida, promoveremos uma cultura de paz, ajudando também aqueles que nos rodeiam a superar divisões e hostilidades e a construir a comunhão entre pessoas, povos e religiões”, insiste.
Citando Francisco, o Papa Leão diz que, “se quisermos saborear a vida com alegria, devemos associar estas duas atitudes”: “estar aos pés” de Jesus, para O ouvir, enquanto Ele nos revela o segredo de tudo; e “estar atentos e prontos na hospitalidade, quando Ele passa e bate à nossa porta, com o rosto do amigo que tem necessidade de um momento de conforto e fraternidade”. Estas palavras foram ditas, poucos meses antes de começar a pandemia, que foi experiencia fabulosa.
“Tudo isto implica fadiga”, recorda o Pontífice, pois o serviço e a escuta nem sempre são fáceis: “exigem empenho, capacidade de renúncia”. Também, na escuta e no serviço, a fidelidade e o amor com que o pai e a mãe orientam a família implicam fadiga; e isso acontece com o empenho dos filhos, em casa e na escola, para corresponder aos seus esforços. De facto, “é exigente compreendermo-nos uns aos outros, quando temos opiniões diferentes, perdoarmo-nos, quando se erra, assistirmo-nos, quando se está doente, apoiarmo-nos, quando se está triste. Porém, só assim se constrói algo de bom na vida, nascem e crescem relações autênticas e fortes entre as pessoas. E é a partir da quotidianidade, o Reino de Deus cresce, se difunde e se experimenta.
Santo Agostinho, ao refletir sobre o episódio evangélico em referência, comentou: “Nestas duas mulheres estão simbolizadas duas vidas: a presente e a futura; uma vivida na fadiga e a outra no repouso; uma atribulada, a outra bem-aventurada; uma temporária, a outra eterna.” E, pensando no trabalho de Marta, interrogou-se: “Quem, na Terra, está isento deste serviço de cuidar dos outros? Quem, na Terra, consegue descansar destas tarefas?” E recomendou: “Procuremos desempenhá-las de forma irrepreensível e com caridade [...]. O cansaço passará e o repouso chegará; mas o repouso só chegará por meio do cansaço. A barca passará e a pátria chegará, mas não se chegará à pátria senão por meio da barca.”
Conclui o Santo Padre que Abraão, Marta e Maria nos recordam que “a escuta e o serviço são duas atitudes complementares para, na vida, nos abrirmos à presença abençoadora do Senhor”. E acrescenta: “O seu exemplo convida-nos a conciliar com sabedoria e equilíbrio, ao longo de cada dia, contemplação e ação, repouso e fadiga, silêncio e trabalho, tendo sempre, como medida, a caridade de Jesus, como luz, a sua Palavra e, como manancial de força, a sua graça, que nos sustenta para lá das nossas próprias capacidades.”

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“Ensinai-nos, Senhor: quem habitará em vossa casa?”

“O que vive sem mancha e pratica a justiça / e diz a verdade que tem no seu coração / e guarda a sua língua da calúnia.

“O que não faz mal ao seu próximo, / nem ultraja o seu semelhante, / o que tem por desprezível o ímpio, / mas estima os que temem o Senhor.

“O que não falta ao juramento, mesmo em seu prejuízo / e não empresta dinheiro com usura, /nem aceita presentes para condenar o inocente. / Quem assim proceder jamais será abalado.”

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Quem se habitua a escutar e a comtemplar, tirando daí, como consequência, a hospitalidade em todas as suas dimensões (pecadores, famintos, sedentos, presos, doentes, peregrinos e sem-abrigo, em quem devemos ver o próprio Cristo), terá um lugar no seio de Deus, ou seja, a vida de comunhão perpétua com Deus e com os irmãos.

2025.07.21 – Louro de Carvalho

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