sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Assembleia da República aprova os 18 anos como idade mínima para casar

 

A Assembleia da República (AR) aprovou, na generalidade, a 31 de janeiro, o projeto de lei do Bloco de Esquerda (BE) no sentido do aumento, para os 18 anos, da idade mínima para um/a jovem poder casar e rejeitou a do Chega quase do mesmo teor. Dominaram o debate referências aos costumes da comunidade cigana, mas a lei pode “empurrar uniões para a informalidade”.

Atualmente, a idade mínima para casamento é 16 anos, mas carecendo de autorização dos pais ou do tutor, exceto se o conservador do registo civil tiver suprido tal autorização. Soube de casos, na década de 1990, em que mães queriam que filhas de 14/15 anos casassem. E, como o pároco negasse tal possibilidade, face à lei, era tido como responsável pela vida irregular delas.

O projeto de lei do BE mereceu o voto contra do Partido Social Democrata (PSD) e do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP), a abstenção da Iniciativa Liberal (IL) e o voto favorável das demais bancadas. O projeto de lei do Chega contou com o voto contra do PSD, do Partido Socialista (PS), da IL, do BE, do Partido Comunista Português (PCP) e do Livre, e a abstenção do CDS-PP e do partido Pessoas-Natureza-Animais (PAN). 

Paralelamente, foi aprovado um projeto de lei do PAN de alteração a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, de modo a incluir na lista de situações de perigo alguém que tenha sido submetido “a casamento infantil, precoce e/ou forçado [CIPF], ou união similar, bem como à prática de atos que tenham em vista tal união, mesmo que não concretizada”. O projeto foi aprovado, apesar dos votos contra do PSD e do CDS-PP. E o PAN também viu aprovada uma resolução que recomenda ao governo a adoção de medidas de prevenção, de sensibilização e de combate aos casamentos infantis, precoces ou forçados

No debate, a deputada Joana Mortágua, pelo BE, sustentou que “fazer coincidir a idade da maioridade com a idade a partir da qual se pode casar é um passo lógico e necessário”, pois o “casamento de menores é um resquício de outros tempos”

O Chega aduziu que o casamento de menores acontece, maioritariamente, na comunidade cigana. “Se consideramos que uma criança antes dos 18 anos não pode conduzir, não podemos permitir que case. Nenhuma, independentemente do credo, da etnia, da raça”, defendeu a deputada Rita Matias. E, segundo a deputada Madalena Cordeiro, do mesmo grupo parlamentar, “combater o casamento infantil é sinónimo de combater as discrepâncias salariais entre homens e mulheres, a gravidez na adolescência, o abandono escolar”. 

Por seu turno, a deputada Ofélia Ramos, do PSD, alertou que a proibição pode “empurrar estas uniões para a informalidade, tornando-as mais difíceis de identificar e combater” e acusou os proponentes de incoerência, sustentando que, “aos 16 um jovem pode trabalhar, pode responder criminalmente pelos seus atos” ou “requerer a alteração de género”. A crítica foi partilhada pelo CDS-PP, com João Almeida a acentuar que, na comunidade cigana, “os casamentos existem segundos ritos dessa comunidade e não são transpostos para o registo civil”.

A deputada Isabel Moreira, do PS, considerou que as propostas do BE e do PAN “beneficiarão de um debate aprofundado em sede de especialidade”, para que “não se infira que a maioridade para casar obriga à redução de outras idades estipuladas para situações jurídicas de natureza completamente diferente”. António Filipe, do PCP defendeu que “quem casa deve fazê-lo na sua plena liberdade” e sem necessitar de autorização dos pais, mas alertou que “nada do que aqui é proposto afeta a comunidade cigana”. E Filipa Pinto, do Livre, considerou que apenas alterar a lei “pode tornar o casamento infantil menos visível” e que é “essencial trabalhar com as famílias e [com] as comunidades”. 

Patrícia Gilvaz, da IL, recusando que o debate “seja instrumentalizado para alimentar preconceitos”, defendeu uma “solução séria, consistente e bem fundamentada, que proteja as crianças, sem atropelar a autonomia dos jovens”.

A deputada única do PAN recusou que este debate seja usado como “terreno fértil para aqueles que querem apenas diabolizar certas comunidades” e defendeu que a discussão sobre o tema deve ser feita “longe de populismos”, vincando que o abuso infantil não ocorre só nas famílias ciganas. 

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O impacto do casamento nas crianças e jovens é significativo e de longo prazo, e com consequências prejudiciais duradouras para a saúde, para o bem-estar e para a realização plena dos direitos de milhões de crianças e jovens, sobretudo, do género feminino. Os estudos referem que a prática está intimamente ligada a um menor aproveitamento escolar, um aumento das taxas de infeções sexualmente transmissíveis e pobreza intergeracional.

As raparigas correm maior risco de violência doméstica e de género (incluindo a violência física, sexual, social, económica, psicológica e emocional) e tendem a ficar limitadas na tomada de decisões informadas e no acesso a oportunidades iguais. A maior probabilidade de engravidarem precocemente, associada à sua tenra idade e ao contexto de vida que têm, aumenta o risco de complicações na gravidez, assim como de mortalidade e morbilidade materna e neonatal. No atinente à saúde sexual e reprodutiva, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, atualmente, as complicações resultantes da gravidez e do parto sejam, em conjunto com o suicídio, as principais causas de morte em mulheres entre 15 e os 19 anos a nível global.

Segundo o “Livro Branco: Recomendações para Prevenir e Combater o Casamento Infantil, Precoce e/ou Forçado”, apresentado em outubro de 2024, entre 2015 e 2023, 48 organizações identificaram 836 casos de casamentos infantis, precoces ou forçados (CIPL) em Portugal. 

A maioria dos jovens que se casaram tinha entre 15 e 18 anos, mas 126 casos envolveram crianças entre os 10 e os 14 anos e 346 entre os 15 e 16 anos, sendo as raparigas com menos de 18 anos as mais afetadas. A gravidez na adolescência, o abandono escolar e o isolamento social surgem associados a estes fenómenos, tais como os crimes de violência doméstica, de casamento de conveniência ou de tráfico de seres humanos.  Foram identificadas 392 pessoas com filhas e filhos, no âmbito do CIPL. Destas, 245 (62%) eram raparigas com menos de 18 anos, 38 com alguma deficiência intelectual e 34 pessoas LGBTI. Um “casamento no mesmo grupo étnico, cultural, religioso, ou casta” foi o motivo de 374 casamentos. As “normas sociais restritivas relacionadas com o papel da mulher” foram motivo para 142 casamentos, bem como o “controlo de comportamentos sexuais”, o “desejo de independência-autonomia” ou a “garantia de que a terra, a propriedade e a riqueza permanecem na família”.

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De acordo com o mencionado Livro Branco, a proteção dos direitos humanos é imperativo ético e normativo do Estado, a quem incumbe garantir a proteção da criança e do/a jovem, bem como de qualquer pessoa em situação de particular vulnerabilidade, independentemente da idade, do contexto e todos os fatores que interfiram na sua vivência e desenvolvimento adequado. Os CIPF representam práticas nefastas e afetam, de forma desproporcional, raparigas e mulheres em todo o Mundo, pondo-as em maior risco de violência sexual e baseada no género, aumentam o risco de abandono escolar e põem em risco as oportunidades no futuro e seu bem-estar físico e mental.

O casamento infantil – antes dos 18 anos – tem impacto significativo na autonomia das raparigas para tomarem decisões livres sobre o seu corpo e sobre a sua saúde sexual e reprodutiva, bem como em aceder aos respetivos cuidados de saúde. As raparigas que se casam precocemente terão mais probabilidades de engravidar precocemente e de terem mais filhos e filhas do que as raparigas que se casam mais tarde. Esta situação aumenta os riscos de complicações conexas com a gravidez e o parto, que podem ter impactos a longo prazo na saúde e até causar a morte.

O casamento infantil é prática prejudicial e violação de direitos humanos. Porém, a sua prática mantém-se difundida e 19% das mulheres, entre os 20 e os 24 anos, casaram ou estavam em união, antes dos 18 anos. E o casamento forçado é “um casamento em que uma e/ou ambas as partes não expressaram o seu consentimento pleno e livre”, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

A nível global, os esforços para eliminar o CIPF nunca foram tão claros, com várias resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas e do Conselho de Direitos Humanos a recomendar aos Estados o aumento dos investimentos na eliminação destas práticas e o reforço da importância do consentimento livre, completo e informado para o casamento.

Entre 2011 e 2015, o casamento infantil tornou-se questão reconhecida com a adoção de parcerias e de compromissos internacionais, de que são exemplo: a criação da “Girls Not Brides: a Parceria Global para o Fim do Casamento Infantil”, a adoção do Dia Internacional da Rapariga, em 2012, o lançamento do Programa Global do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) e do Fundo das Nações para a Infância (UNICEF) para “Acelerar a Ação para o Fim do Casamento Infantil” e o acordo sobre uma meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para a eliminação de todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e envolvendo crianças e jovens, bem como as mutilações genitais femininas.

Tais metas são essenciais para atingir os objetivos conexos com a igualdade de género e demais ODS, de acordo com a Agenda 2030. As Nações Unidas têm trabalhado com os estados-membros através de resoluções que enfatizam que estas práticas representam uma ameaça à realização universal dos direitos humanos. Em dezembro de 2014, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma Resolução sobre o Casamento infantil, Precoce e Forçado (A/RES/69/156), tendo em conta a Resolução do Conselho de Direitos Humanos, de 2013, que abordava o casamento infantil. Dois anos depois, aprovou outra Resolução sobre o Casamento Infantil, Precoce e Forçado (A/RES/71/175), reafirmando e reforçando os compromissos anteriores e destacando as responsabilidades dos estados-membros em acabar com este fenómeno. Em dezembro de 2022, a mais recente resolução (A/RES/77/2022) recomenda aos estados, entre outras medidas, que desenvolvam e implementem “respostas e estratégias holísticas, abrangentes e coordenadas, sensíveis à idade e ao género, centradas nas vítimas e multissetoriais”, que respeitem os direitos humanos para prevenir e eliminar os CIPF, motivando, para tal, “a participação de partes interessadas, incluindo mulheres e raparigas, homens e rapazes, pais e outros membros da família, professores, líderes religiosos, tradicionais e comunitários, sociedade civil, organizações lideradas por raparigas, organizações de mulheres, grupos de jovens e de direitos humanos, os meios de comunicação e o setor privado”.

O Livro Branco identificou situações que envolvem crianças desde os 10 anos, em particular, raparigas (121, entre os 10-14 anos, e 239, entre os 15 e os 16) e reiterou a urgência da proteção destas crianças e de outras potencialmente em perigo. Em linha com a evidência científica, surgem conexos com estes fenómenos a gravidez, na adolescência, o abandono escolar e como crimes conexos, como violência doméstica, o casamento de conveniência ou o tráfico de seres humanos. O CIPF causa múltiplos danos, sobretudo, às raparigas, que veem os seus direitos à saúde, educação e desenvolvimento negados. A retirada da escola é um dos principais meios usados para pressionar o casamento ou união equiparável, no caso das raparigas, emergindo a importância de envolver os estabelecimentos de educação na prevenção e identificação precoce dos casos.

Os casos reportados, na maioria, não estão refletidos nas estatísticas oficiais de matrimónios, já que 558 pessoas eram solteiras/os, estando em união informal. São as próprias entidades reportantes quem identifica os casos, no âmbito das suas atividades (40%), o que reforça a necessidade de formação e capacitação das equipas técnicas, para que identifiquem, denunciem e deem o devido seguimento aos casos. Mais de metade (64,6%) das entidades que reportam casos afirmam que, face a um caso, devem mobilizar apoio social e 56% declara que se deve comunicar ao Ministério Público (MP).

Pela complexidade da criminalização e pela sua eficácia na redução de casos e na proteção das vítimas, é de analisar a razão de as instituições nem sempre acionarem as competentes entidades para exercer a ação penal. As entidades reportaram 128 casos tentados e não ocorridos, o que releva a sua ação na prevenção e intervenção nestes fenómenos. Ora, apesar de 36% das entidades atribuírem “muita prioridade” à temática do casamento infantil, precoce e forçado, não é de negligenciar que 12% das entidades atribuem “nenhuma prioridade” e 13% atribuem “pouca prioridade”, evidenciando a importância de se investir na sensibilização do fenómeno.

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Pelos vistos, não basta protelar a idade do casamento. São necessárias ações de sensibilização e de dissuasão da fuga para a união de facto de pessoas menores, e a punição do casamento forçado (ou aliciado), das uniões informais de menores e de todo o tipo de coerção. Não há que dispensar da comunidade cigana de observar os requisitos da boa convivência e do são desenvolvimento pessoal e social (incluindo a frequência da escola). E não vale aduzir que os maiores de 16 anos já podem trabalhar, pois também, por exemplo, ainda não podem votar. 

O voto contra dos partidos do governo só se entende, se estiver na forja a diminuição da idade mínima para atingir a maioridade e os jovens de 16 anos poderem exercer o direito de voto.

2025.01.31 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Donald Trump ataca, a sério, as questões de género

 

Na sequência da proclamação presidencial de que, nos Estados Unidos da América (EUA), só haverá dois géneros – homem e mulher (masculino e feminino) – o presidente Donald Trump já passou aos decretos em concreto. Assim, a 28 de janeiro, assinalou publicar o decreto que restringe drogas e cirurgias de “mudança de sexo” para menores. Os EUA “não vão financiar, patrocinar, promover, ajudar ou apoiar” esse tipo de procedimento, disse o presidente.

O decreto “Protegendo Crianças de Mutilação Química e Cirúrgica” considera que, em todo o país, “profissionais médicos estão a mutilar e a esterilizar um número cada vez maior de crianças impressionáveis”, sobre a “alegação falsa e radical de que adultos podem mudar o sexo de uma criança, através de uma série de intervenções médicas irreversíveis”. 

O decreto, preconizando que “essa tendência perigosa será uma mancha na História da nossa nação e que isso tem de acabar”, estabelece que, para oferecer bolsas de pesquisa ou de estudo a instituições médicas, todas as agências federais têm de se assegurar de que as instituições beneficiadas não fazem procedimentos de “mudança de sexo” em menores. Mais determina que o secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) “tome toda a ação apropriada” para “dar fim à mutilação química e cirúrgica de crianças”.

O decreto pretende acabar com o uso do que chama de “ciência-lixo” promovida pela Associação Profissional Mundial para Saúde Transgénero (WPATH). A organização foi criticada por apoiar o que os críticos chamam de “pseudociência” da “mudança de sexo”. Um inquérito interno, em 2024, revelou que membros da WPATH admitiram que as crianças são muito jovens para entenderem as consequências de tais procedimentos.

As agências federais “devem rescindir ou alterar todas as políticas” com base na orientação da WPATH, diz o decreto de Trump. Enquanto isso, o HHS vai fazer e publicar uma revisão das “melhores práticas, para promover a saúde de crianças que sentem a disforia de género”, distúrbio que seria o responsável por algumas pessoas se identificarem com o sexo oposto.

Em dezembro, o então presidente eleito prometeu assinar decretos para acabar com cirurgias de mudança de sexo em crianças, para impedir que homens que se identificam como mulheres pratiquem desportos femininos e para acabar com a promoção da ideologia de género nas escolas e nas forças armadas. E, na primeira semana do seu governo, assinou o decreto “Defendendo as mulheres do extremismo da ideologia de género”, que restaura a “verdade biológica”. Entre outras medidas abrangentes, estabeleceu um reconhecimento governamental da realidade do sexo natural, incluindo a afirmação explícita de que só há dois sexos, masculino e feminino.

Trump, que se concentrou na questão da ideologia de género em grande parte da sua campanha presidencial, em 2024, assinou, a 20 de janeiro, no primeiro dia do retorno à presidência dos EUA, a congruente ordem executiva. Este é um dos aspetos em que a Igreja Católica (assim como outras Igrejas cristãs) apoia, na linha dos princípios, a política trumpiana. Com efeito, a ideologia de género é a militância política baseada na teoria de que a sexualidade humana é independente do sexo e se manifesta em géneros mais variados do que homem e mulher, ao arrepio do enunciado bíblico: “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher Ele os criou” (Gn 1,27).

O número 369 do Catecismo da Igreja Católica diz: “O homem e a mulher foram criados, quer dizer, foram queridos por Deus: em perfeita igualdade enquanto pessoas humanas, por um lado; mas, por outro, no seu respetivo ser de homem e de mulher. Ser homem, ser mulher é realidade boa e querida por Deus: o homem e a mulher têm uma dignidade inamissível, que lhes vem de Deus, seu Criador. O homem e a mulher são, com a mesma dignidade, ‘à imagem de Deus’. No seu ‘ser homem’ e no seu ‘ser mulher’, refletem a sabedoria e a bondade do Criador.”

Ora, “em todo o país, os ideólogos que negam a realidade biológica do sexo usam, cada vez mais, meios legais e outros meios socialmente coercitivos para permitir que homens se identifiquem como mulheres e acedam a espaços e a atividades íntimas de só um sexo projetados para mulheres, desde abrigos para mulheres até chuveiros femininos no local de trabalho. Isso está errado”, diz a ordem executiva.

Uma ordem executiva é abrangente por natureza. A sua aplicação incluirá a remoção de orientações, comunicações, políticas e formulários de ideologia de género de agências governamentais. Assim, a ordem diz que a palavra ‘mulher’ significa ‘mulher humana adulta’ e ordena que a identificação do governo, como em passaportes e em registos pessoais, reflita a realidade natural e “não a identidade de género autoavaliada”. Estabelece o reconhecimento, em todo o governo dos EUA, da realidade do sexo natural, incluindo a afirmação explícita de que só há dois sexos, masculino e feminino. Põe fim à prática de colocar homens em prisões femininas e ao uso do dinheiro de imposto para financiar tratamentos hormonais ou cirúrgicos para disforia de género, distúrbio que leva a pessoa a identificar-se com o sexo oposto de reclusos. E determina que a Procuradoria-geral dos EUA “emita orientações para garantir a liberdade de expressar a natureza binária do sexo e o direito a espaços do mesmo sexo, em locais de trabalho, e a entidades financiadas pelo governo federal cobertas pela Lei dos Direitos Civis de 1964”.

Num comício em Washington, D.C., a 19 de janeiro, Trump disse à multidão que pretende “manter os homens fora dos desportos femininos.

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Antes do decreto “Protegendo Crianças de Mutilação Química e Cirúrgica”, o presidente assinou, no dia 27, um decreto para acabar com a “ideologia radical de género” nas forças armadas (FA), revertendo a diretriz do ex-presidente Joe Biden que aceitava pessoas que se identificam com o sexo oposto nas FA. Essa ordem, que se efetiva em 30 dias, diz que qualquer pessoa que expresse “falsa ‘identidade de género’ divergente do sexo de um indivíduo não consegue satisfazer os padrões rigorosos necessários para o serviço militar”. E estipula que “o serviço militar deve ser reservado para os aptos, mental e fisicamente, para o serviço”. Ora, segundo um relatório da agência do governo dos EUA Congressional Research Service, atualizado a 10 de janeiro, o Departamento de Defesa dos EUA gastou cerca de 15 milhões de dólares em tratamentos para mudança de sexo de integrantes das FA, de 1 de janeiro de 2016 a 14 de maio de 2021.

Também entram em vigor, em 30 dias, todas as instalações para dormir, trocar de roupa e tomar banho, que serão separadas com base no sexo natural, independentemente da identidade de género autoafirmada pela pessoa.

Outra disposição determina que o secretário de Defesa dos EUA emita ordem a proibir o uso de pronomes inconsistentes com o sexo natural. “Além das intervenções médicas hormonais e cirúrgicas envolvidas, a adoção de identidade de género inconsistente com o sexo do indivíduo entra em conflito com o compromisso do soldado com um estilo de vida honrado, verdadeiro e disciplinado, mesmo na vida pessoal”, diz o decreto, sustentando que “a afirmação de um homem de que é mulher, e a sua exigência de que outros afirmem essa falsidade, não é consistente com a humildade e com a abnegação exigidas de um membro do serviço”.

“É política do governo dos EUA estabelecer altos padrões de prontidão das tropas, de letalidade, de coesão, de honestidade, de humildade, de uniformidade e de integridade”, diz o decreto, segundo o qual a principal missão dos militares é “proteger o povo americano e a nossa pátria como a força de combate mais letal e eficaz do Mundo”. “O sucesso nessa missão existencial requer o foco no desenvolvimento do ethos guerreiro necessário e a procura da excelência militar não pode ser diluída para acomodar agendas políticas ou outras ideologias prejudiciais à coesão da unidade”, diz o texto.

Além de rever as políticas de género do Departamento de Defesa, o presidente assinou três outros decretos ligados às FA, no dia 27, um dos quais encerra iniciativas de diversidade, de equidade e de inclusão (DEI). “Essas ações minam a liderança, o mérito e a coesão da unidade, corroendo assim a letalidade e a prontidão da força”, diz o decreto, nos termos do qual violam a consciência dos Americanos, ao envolverem discriminação racial e sexual odiosa”.

Outro decreto reintegra membros das FA que foram dispensados, ​​por se recusarem a tomar vacina contra a covid-19, e determina o pagamento de salários atrasados ​​e benefícios para eles.

O presidente restaurou, no dia 24, a Política da Cidade do México, que proíbe usar dinheiro do governo federal americano para financiar organizações estrangeiras que façam e promovam o aborto, revogando a diretriz de 2021 de Joe Biden, que eliminou tal política.

A proibição foi adotada pelo presidente republicano Ronald Reagan, em 1985. Desde então, foi revogada por todos os presidentes democratas e restaurada por todos os republicanos. Trump expandiu a regra, no primeiro mandato, para cobrir várias novas iniciativas de saúde do governo. A regra proíbe o financiamento pelos pagadores de impostos americanos de organizações não-governamentais (ONG) estrangeiras que promovam ou façam abortos como método de planeamento familiar, mas não abrange governos estrangeiros e alguns grupos internacionais.

A medida foi anunciada, pela primeira vez, pelos EUA, em 1984, na II Conferência Internacional sobre População da Organização das Nações Unidas (ONU), na Cidade do México, dando origem ao seu nome popular. É uma das ordens executivas emitidas por Trump, na primeira semana de exercício do cargo. O presidente deu diretrizes sobre políticas climáticas, sobre a pena de morte, sobre a imigração e sobre a ideologia de género, algumas das quais foram criticadas pela Conferência dos Bispos Católicos dos EUA (USCCB), bem como pela bispa episcopaliana de Washington. A ordem executiva sobre o aborto recebeu elogios de ativistas pró-vida. “Grande movimento do presidente Trump, ao restaurar a política da Cidade do México, que garante que os contribuintes americanos não financiem a matança de bebés no exterior!”, escreveu Lila Rose, fundadora do grupo pró-vida Live Action, na rede social X, no dia 24.

“A vida está a vencer na América”, escreveu Mike Pence, vice-presidente dos EUA, no primeiro governo Trump, também na rede social X.

Antes da ordem executiva sobre o aborto, o deputado republicano Chris Smith, do Estado de Nova Jersey, disse à CNA esperar que a restauração da regra permita que o Congresso dos EUA reveja os programas internacionais que recebem financiamento federal do governo americano. “Temos grandes esperanças e expectativas. É precisa a revisão completa desses programas. Precisamos de perguntar o que estão a fazer com o dinheiro”, declarou à CNA o deputado que, tendo assumido o cargo, em 1981, se tornou um defensor original da política da Cidade do México, quando o presidente Ronald Reagan a implementou, pela primeira vez, e defendeu a necessidade de supervisão do dinheiro federal que vai para grupos internacionais, citando o escândalo em que fundos do Plano de Emergência do Presidente para o Alívio da AIDS (PEPFAR) foram usados ​​para fazer abortos em Moçambique.

Esses abortos são “absolutamente a ponta do iceberg”, disse Smith, que previu uma “grande luta, neste ano”, por ativistas pró-vida a tentar barrar o financiamento internacional federal do aborto.

A senadora democrata Patty Murray, do estado de Washington, disse que a regra da Cidade do México é política perigosa que restringe “serviços de saúde reprodutiva que salvam vidas”.

Ao prever mais ações pró-vida do governo Trump, Murray disse que os democratas “vão reagir de todas as maneiras que puderem”.

Em outra ordem do dia 24, Trump revogou o que diz serem diretrizes do governo Biden que violaram a Emenda Hyde, que proíbe o uso de fundos federais, para financiar abortos nos EUA.

A emenda entrou em vigor, pela primeira vez, em 1980, mas o governo Biden “desconsiderou essa política estabelecida e de senso comum, ao incorporar o financiamento forçado de abortos seletivos pelos contribuintes em ampla variedade de programas federais, disse Trump.

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É óbvio que a Igreja Católica e as outras Igrejas cristãs não renunciam, coerentemente, à doutrina condenatória do aborto, bem como às questões atinentes à identidade de género. Porém, não podem ignorar o sofrimento de tantas pessoas (como vincou a bispa de Washington), que, por motivos existenciais, as atinge de forma brutal, secundada pela forma ostracizante com que muitos setores da sociedade as encaram (o estado não pode discriminar as pessoas, mas tratá-las por igual e como diferentes no que são diferentes; e as Igrejas devem acolhê-las e tentar compreendê-las e acompanhá-las). É o caso das pessoas que se sentem constrangidas pelo padrão dos géneros masculino e feminino. A este respeito, devo dizer que acho abusivo submeter crianças à mudança de sexo, pois não têm capacidade de decisão e é matéria em que os pais devem coibir-se de decidir, até para que não venham a ser apontados pelos intervencionados por uma decisão irreversível.

Quanto ao aborto, gostaria de acompanhar a postura do movimento pró-vida nos EUA, mas, pelo que é dado observar, a questão coloca-se a nível económico: o estado, os contribuintes vão deixar de pagar abortos no estrangeiro, mas o decreto isenta governos estrangeiros e alguns grupos internacionais. Brinca-se à doutrina, à moral, à saúde, à de democracia?    

2025.01.30 – Louro de Carvalho

Pressão sobre a imigração não é exclusiva de Donald Trump

 

Donald Trump tomou posse, a 20 de janeiro, e não se fez esperar para assinar várias ordens executivas, cerca de 100, impondo algumas das principais bandeiras da campanha. Destas ordens, 78 são revogações de ordens executivas de Joe Biden.

Desde que apresentou a candidatura à Casa Branca, em 2015, a imigração foi tema predileto do candidato e, a seguir, presidente dos Estados Unidos da América (EUA), bem como da ala mais radical do Partido Republicano. Por isso, sem surpresa, algumas das principais ordens executivas assinadas no dia da tomada de posse são centradas neste tema.

O presidente declarou um estado de emergência na fronteira com o México, exigindo que “todas as entradas ilegais sejam impedidas e [que] arranque o processo de deportar milhões e milhões de criminosos”. Isto permite que o exército intervenha na fronteira para reforçar o controlo, mas não se sabe como será a logística e os métodos usados para identificar e expulsar imigrantes do país e que imigrantes. Outra medida polémica, articulada com aquela, aponta o fim do direito à cidadania de qualquer criança que nasça em território norte-americano, ainda que tenha pais imigrantes em situação ilegal. Esta alteração, que entrará em vigor daqui a 30 dias, enfrenta um obstáculo: este direito está consagrado na XIV Emenda da Constituição, o que dá armas a quem pretenda combater judicialmente esta ordem.

A nível ambiental, apoiado por trabalhadores das indústrias mais poluentes, financiado por grandes fundos dos combustíveis fósseis e acolhido por negacionistas das alterações climáticas, Trump sempre foi contra a transição energética e medidas de proteção do Ambiente. Tal agenda continuará, com um conjunto de decisões já tomadas. Uma delas aponta o fim da ordem de Biden que apontava que seriam elétricos, em 2030, pelo menos, metade dos veículos vendidos. Outra ordem (promessa antiga) remove os EUA do Acordo de Paris – o que já acontecera no primeiro mandato de Trump, mas revertido por Biden.

No quadro das relações externas, é expectável que, tal como no primeiro mandato, a relação com o resto do Mundo mude, com o lema “América Primeiro”. Uma ordem executiva declara que os EUA abandonarão a Organização Mundial de Saúde (OMS), nos próximos 12 meses, devido à gestão da covid-19. Trump esteve em conflito com as restrições defendidas pelos especialistas e impulsionou movimentos negacionistas que recusavam proteger-se contra a doença. Ora os EUA são o principal financiador da OMS e a saída, a confirmar-se, será duro golpe para as contas da organização. E Trump ordenou que o Golfo do México seja renomeado Golfo da América, decisão que pode alterar a nomenclatura em documentos oficiais norte-americanos.

O presidente assinou a ordem que suspende por 75 dias a proibição da rede social TikTok e anunciou, no primeiro dia de mandato, que vai perdoar a 1500 pessoas envolvidas no ataque ao Capitólio, de 6 de janeiro de 2021. Falou mesmo em “reféns”, para designar os condenados por uma das páginas mais negras da História norte-americana.

Por fim, decretou que só devem existir dois géneros – homem e mulher – na que será a primeira das medidas contra a comunidade transgénero, contra as respetivas medidas de saúde e contra afirmação de género, que pode afetar várias crianças.

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Já falei da crítica da bispa de Washington às medidas de Trump, atinentes a imigração e a questões de género. Agora, dou a vez aos bispos católicos dos EUA, que se manifestaram, a 22 de janeiro, contra as “profundamente preocupantes” ordens do presidente, nomeadamente as relativas à imigração, à pena de morte e ao Ambiente, alertando que “terão consequências negativas, muitas das quais prejudicarão os mais vulneráveis entre nós”.

Em comunicado da Conferência Episcopal dos EUA (USCCB), assinado pelo seu presidente, Timothy Broglio, são criticadas as restrições à imigração, a diretiva a favor da pena de morte, e a retirada do Acordo de Paris, como “profundamente preocupantes”. “É nossa esperança que a liderança do país reconsidere essas ações que desconsideram, não apenas a dignidade humana de alguns, mas a de todos nós”, pode ler-se.

Vincando que nem a Igreja Católica nem a USCCB alinham com nenhum partido político, vinca-se que o ensino da Igreja permanece inalterado, independentemente da liderança política. “A nossa oração é de esperança de que, como Nação abençoada com muitos dons, as nossas ações demonstrem genuíno cuidado pelas nossas irmãs e irmãos mais vulneráveis, incluindo os não nascidos, os pobres, os idosos e enfermos e os migrantes e refugiados. O justo Juiz não espera nada menos”, reza o texto, prometendo que informações adicionais relativas a ordens executivas específicas serão publicadas no site da USCCB.

Timothy Broglio sustenta que muitas das questões das ordens executivas, juntamente com o que pode ser emitido nos próximos dias, são questões sobre as quais “a Igreja tem muito a oferecer”. Ora, algumas disposições, como as do tratamento de imigrantes e refugiados, da ajuda estrangeira, da expansão da pena de morte e do Ambiente terão consequências negativas, muitas das quais prejudicarão os mais vulneráveis​, ao passo que outras podem ser vistas a uma luz mais positiva, como expor a verdade sobre cada pessoa humana como homem ou mulher. Independentemente de quem ocupe a Casa Branca ou tenha a maioria no Capitólio, o ensino da Igreja permanece inalterado. E o bispo recorda: “O Papa declarou 2025 como um Ano Jubilar da Esperança. Como cristãos, a nossa esperança está sempre em Jesus Cristo, que nos guia através da tempestade e do tempo calmo. Ele é a fonte de toda a verdade.”

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No mesmo dia, era publicado novo comunicado, assinado pelo bispo Mark Seitz (presidente do Comité de Migração da USCCB), a afirmar que “a Igreja Católica está comprometida em defender a santidade de cada vida humana e a dignidade dada por Deus a cada pessoa, independentemente da nacionalidade ou status de imigração”. “O ensino da Igreja reconhece o direito e a responsabilidade de um país de promover a ordem pública, a segurança e a proteção por meio de fronteiras bem reguladas e de limites justos à imigração”, admite Mark Seitz, mas frisando: “No entanto, como pastores, não podemos tolerar a injustiça e enfatizamos que o interesse nacional não justifica políticas com consequências contrárias à lei moral. A generalização abrangente para denegrir qualquer grupo, como descrever todos os imigrantes indocumentados como ‘criminosos’ ou ‘invasores’, para os privar da proteção sob a lei, é afronta a Deus, que criou cada um de nós à sua própria imagem.”

Ao responsável pelo Comité de Migração não restam dúvidas: “Várias das ordens […] têm a intenção de eviscerar as proteções humanitárias consagradas na lei federal e de minar o devido processo, sujeitando famílias e crianças vulneráveis ​​a grave perigo”. E considera “especialmente preocupante” a “implantação ilimitada de ativos militares para dar suporte à aplicação da lei de imigração civil, ao longo da fronteira EUA-México.”

Na ótica do bispo de El Paso, impedir acesso a asilo e outras proteções porá em risco os mais vulneráveis ​​e merecedores de alívio, capacitando gangues e outros predadores a explorá-los. De igual modo, interromper, indefinidamente, o reassentamento de refugiados é imerecido, pois está provado ser um dos caminhos legais mais seguros para os EUA. E Mark Seitz assinala que a interpretação da XIV Emenda para limitar a cidadania por direito de nascença estabelece perigoso precedente, contradizendo a velha interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF).

O bispo recorda que “a Igreja Católica está comprometida em defender a santidade de cada vida humana e a dignidade dada por Deus a cada pessoa, independentemente da nacionalidade ou status. A generalização abrangente para denegrir qualquer grupo é afronta a Deus, que nos criou a todos à sua imagem. O Papa declarou: “Ninguém jamais negará abertamente que [os migrantes] são seres humanos, mas na prática, por nossas decisões e pelo modo como os tratamos, podemos mostrar que os consideramos menos dignos, menos importantes, menos humanos. Para os cristãos, tal modo de pensar e agir é inaceitável”, diz o prelado. 

Embora seja bem-vinda a ênfase no combate ao tráfico, várias ordens executivas intentam eviscerar as proteções humanitárias consagradas na lei federal e minar o devido processo, sujeitando pessoas vulneráveis ​​a grave perigo. A implantação ilimitada de ativos militares para dar suporte à aplicação da lei de imigração civil, ao longo da fronteira EUA-México, é muito preocupante. Enquanto isso, as políticas que proíbem a consideração de quaisquer reivindicações humanitárias, incluindo as de crianças desacompanhadas e vítimas de tráfico, falharam, repetidamente, em reduzir a migração irregular, de forma legal, sustentável e humana. Até a imigração legal não humanitária e pessoas naturalizadas são alvos das políticas de apoio à alegada “identidade americana unificada”. “Pedimos ao presidente Trump que mude essas políticas de execução apenas para soluções justas e misericordiosas, trabalhando de boa-fé com os membros do Congresso, para alcançar uma reforma imigratória significativa e bipartidária que promova o bem comum com um sistema imigratório eficaz e ordenado. […] Apoiaremos isso de todo o modo que pudermos, enquanto continuamos a acompanhar os irmãos e irmãs imigrantes de acordo com o Evangelho da Vida”, conclui o texto.

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A Conferência Episcopal do México publicou o mapa com a localização de pontos de informação, assessoria legal e distribuição de alimentos a que os migrantes e deportados podem recorrer, em caso de necessidade no país, sendo possível identificar cerca de 40 pontos de apoio, dos quais nove estão junto à fronteira com os EUA. E, em declaração publicada nas redes sociais, os bispos lamentam que, num duro inverno, muitos migrantes vivam “momentos de angústia, dor, medo e incerteza”, ante as medidas anunciadas por Trump. “Continuaremos a esforçar-nos para que, nas nossas casas, albergues e centros de acolhimento, encontrem teto e alimento, apoio na atenção à saúde física, emocional e espiritual, ajuda para contactar as famílias e obterem a documentação de que necessitem, assessoria e acompanhamento legal para os trâmites que requeiram realizar”, dizem os bispos, apelando a toda a sociedade a que se una a este esforço, afirmando que os irmãos migrantes são reflexo de Deus (neles vemos o rosto sofrente de Cristo a pedir para ser acolhido, servido e consolado), e dizendo unir-se aos esforços da Pastoral da Mobilidade Humana para oferecer tratamento digno aos conacionais que estão a ser expulsos pelo governo federal dos EUA e convidar todas as dioceses e instituições sociais a serem solidárias nestes momentos.

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A imigração é móbil de conflito do governo dos EUA com a Igreja, desde o início do governo de Trump. O Papa criticou o governo dos EUA, um dia antes de ele começar. Com efeito, a 19 de janeiro, disse a um programa televisivo italiano: “Se ele quiser expulsar imigrantes sem documentos, será uma vergonha. Isso não vai dar certo.”

Em setembro de 2024, Francisco disse de Trump e da democrata Kamala Harris: “Ambos são contra a vida, tanto o que expulsa os migrantes como o que mata os bebés.” E sustentou que os católicos deviam votar no mal menor, ​​sem dizer quem era quem. As pesquisas mostram que a maioria dos católicos que votou escolheu Trump.

O debate sobre imigração acirrou-se desde que Trump o assumiu, há pouco tempo. Às críticas da USCCB responderam repreensões dos católicos “czar da fronteira”, Tom Homan e do vice-presidente, James David Vance. Os dois lados têm aliados e críticos católicos, sobretudo, no espaço online. Para católicos comuns sem muita ligação a partidos, o debate é desconcertante. Há, em ambos os lados, confusão ou leitura seletiva de argumentos e questões conflituantes: imigração em geral, imigração ilegal, direito de asilo, dignidade humana, lei, soberania nacional e direitos dos trabalhadores. O magistério da Igreja, desde a encíclica “Pacem in Terris”, de 1963, até à carta pastoral da USCCB de 2003 “Strangers No longer: Together on the Journey of Hope” são citados para reforçar um lado ou o outro. O que falta, a ambos os lados, é perceber que a migração é controversa, no Mundo, para católicos e para não-católicos.

Em 2024, os principais líderes políticos ocidentais – alguns deles católicos – posicionaram-se contra a imigração, no Canadá, no Reino Unido, na França e na Alemanha. Em todos esses países, os políticos criticavam Trump por isso. Agora, mudaram, porque a opinião popular mudou, tornando-se hostil. E houve menor reação das conferências episcopais desses países, em comparação com a dos EUA. A Conferência Episcopal Italiana criticou Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália, mas brandamente, em comparação com a dos EUA.

No Hemisfério Ocidental, a migração é mais atenuada ou matizada, quando os EUA não fazem parte da discussão. O México repatriou milhares de estrangeiros, incluindo Colombianos e Cubanos, com pouca discussão. Dois países da América – Nicarágua e Cuba – usam, agressivamente, a expulsão forçada ou o exílio forçado dos próprios cidadãos como arma política. As críticas das conferências episcopais ou do Vaticano foram atenuadas, porque estes regimes perseguem a Igreja (Nicarágua) ou tentam controlá-la (Cuba).

E, assim como aceitar migrantes ou refugiados se tornou tópico político quente no Ocidente, a migração virou a arma na guerra híbrida e indireta de alguns países contra os vizinhos, exportando populações indesejadas e usando fluxos migratórios, para pressionar outros países para obterem benefícios financeiros ou políticos. Além de Cuba e Nicarágua, cita-se a Argélia, Marrocos, a Turquia e a Bielorrússia como praticantes descarados dessa tática. Lucrar com a extorsão de migrantes-refugiados não se cinge a gangues; inclui estados-nações.

Por exemplo, no Líbano, o ex-presidente Michel Aoun e o ministro das Relações Exteriores à época, Gebran Bassil, católicos maronitas, eram contra hospedar mais de 1,5 milhão de refugiados sírios, o maior número de refugiados per capita do Mundo. Embora houvesse críticas de liberais e de secularistas, tal postura não era pomo de discórdia entre Igreja e líderes políticos católicos, pois a Igreja tem preocupações: o Líbano seria inundado de estrangeiros e a população de refugiados sírios, maioritariamente muçulmana, não iria embora e complicaria a situação demográfica do país. Na África do Sul e noutros estados ricos no Sul Global, o desafio é a migração Sul-Sul. Os africanos tentam chegar à Europa ou aos EUA, mas também vão para o Sul e para o Leste, para entrarem nos ricos Estados do Golfo Árabe. Em 2023, a Arábia Saudita metralhou centenas de etíopes que tentavam entrar. E, na África do Sul, migrantes e refugiados entravam, mas eram vítimas de surtos xenófobos de violência dos moradores locais. Já a maioria dos requerentes de asilo ali (90%) é rejeitada ou é autorizada a ficar, se pagar gorjeta.

Leis e atitudes estão a endurecer na Europa no Mundo. É problema geral, com as permutações, cambiantes e crueldades possíveis e imagináveis. Só não se lhes dá atenção.

2025.01.30 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

É sugerida a deportação da bispa de Washington por críticas a Trump

 

Mariann Edgar Budde, a bispa episcopaliana de Washington DC, nos Estados Unidos da América (EUA) foi instada, de vários lados, a explicar o que dissera ante o presidente, o vice-presidente e as respetivas famílias, que ocupavam os bancos da frente, face a face com o púlpito de onde proferiu a sua alocução, na celebração litúrgica, na catedral, a 21 de janeiro, dia subsequente à posse do presidente norte-americano e do respetivo vice-presidente, no dia anterior.

A súmula das suas declarações transparece no que disse a uma jornalista da CNN, ao frisar que não estava a falar de temas ou problemas abstratos, mas de pessoas concretas, que ela conhece e em nome das quais tomou a palavra.

No final da celebração, Mariann Edgar Budde, paramentada e de báculo na mão, e Donald Trump cumprimentaram-se, rapidamente. Porém à saída do templo, ante alguns jornalistas que o interpelaram sobre se tinha gostado, o presidente devolveu a pergunta e comentou: “Não acho que tenha sido um bom serviço. Poderiam ter feito muito melhor”. É uma resposta que a hierarca considerou “respeitosa”. Porém, mal Donald Trump se pôde dedicar a uma das suas atividades regulares – escrever posts na sua rede social –, classificou-a de “assim chamada bispa” e de “uma esquerdista radical que odeia Trump” e que “adotou um tom desagradável”, não “convincente nem inteligente”. Mais disse que os seus comentários foram “inapropriados e aborrecidos e muito pouco inspiradores”, pelo que “ela e a sua Igreja devem desculpas ao público”.

Entretanto, a visada respondeu: “Desculpas, não. […] Entendo que estou a implorar misericórdia para outros; por isso, não tenho de pedir desculpas.”  Explicando um pouco mais, acrescentou, num canal televisivo a que prestou declarações, a respeito dos efeitos de algumas promessas do presidente: “Eu tinha a sensação de que havia pessoas que observam o que estava a acontecer [com as ordens executivas] e a perguntar-se: ‘será que alguém vai dizer alguma coisa?’” E sentiu que a perspetiva cristã crítica do poder que se estava a instalar não tinha tido voz no conjunto das cerimónias inaugurais dos dias anteriores. Ao assumir ser essa voz, a bispa foi a voz incómoda deste momento – inconveniente para uns e corajosa para outros.

Um eloquente sinal do modo como a intervenção de Mariann Budde foi recebida entre os apoiantes de Trump vê-se na reação de um deputado eleito pela Geórgia para a Câmara dos Representantes, ao sugerir a inclusão da bispa na “lista das deportações” referente aos imigrantes. As redes sociais, a par dos apoios e dos aplausos, encheram-se de ataques, de insultos e de ameaças, levando à criação de contas destinadas a defender a bispa de Washington.

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Mike Collins, congressista da Geórgia pediu a deportação da bispa que pediu a Donald Trump que “tivesse misericórdia” da comunidade LGBTQ+ e dos imigrantes.

Compartilhando um trecho do sermão sobre X, Mike Collins pediu que Mariann Budde fosse “adicionada à lista de deportação”, um dia após Trump começar a assinar uma caterva de ordens executivas relacionadas com a imigração. “A pessoa que está a dar esse sermão deve ser adicionada à lista de deportação”, escreveu o congressista republicano, no dia 21. Todavia, como Budde nasceu em Nova Jersey, em 1959, e é cidadã americana, não pode ser deportada. Não está claro como Collins planeia a deportação da bispa, nem para onde deve ser deportada. O Independent contatou o seu gabinete de imprensa para esclarecimentos, sem êxito.

A bispa, de fala mansa, proferiu o seu alerta: “Em nome do nosso Deus, peço que tenham misericórdia das pessoas que, no nosso país, estão assustadas, agora. […] Há crianças gays, lésbicas e transgénero em famílias democratas, republicanas e independentes, algumas que temem pelas suas vidas.” E, prosseguindo, frisou: “A vasta maioria dos imigrantes não é criminosa. Peço que tenha misericórdia, senhor Presidente, daqueles cujos filhos, nas nossas comunidades, temem que os pais sejam levados embora, e que ajude os que estão a fugir de zonas de guerra e de perseguição nas suas próprias terras a encontrarem compaixão e boas-vindas aqui.”

A terminar o sermão, Donald Trump disse algo a James David Vance que o fez balançar a cabeça.

Com efeito, os clãs Trump e Vance sentaram-se impassíveis nas primeiras filas da nave, enquanto a bispa criticava e pedia misericórdia.

À saída da catedral, os repórteres perguntaram ao presidente o que achou do serviço. “Não foi muito emocionante. Não achei que foi um bom serviço. Não, eles podem fazer muito melhor”, retorquiu. Depois, na noite do dia 21, em tom inflamado, no TruthSocial, Donald Trump escreveu que Budde deve um pedido de desculpas “ao público”. “A suposta bispa que falou no Serviço Nacional de Oração, na terça-feira, de manhã, era uma radical esquerdista de linha dura que odiava Trump”, escreveu o presidente, vincando: “Tinha um tom desagradável e não era convincente ou inteligente... Ela e a sua igreja devem um pedido de desculpas ao público!”

O vice-presidente J. D. Vance, a 22 de janeiro, ainda não tinha comentado o sermão de Budde.

O ataque de Trump ocorreu após duras críticas à bispa, por parte dos seus fiéis MAGA (“Make America Great Again”), no início do dia.

Tommy Tuberville, senador do Alabama condenou o discurso, numa entrevista à Newsmax, no dia 21. “Para esta bispa fazer isso com o presidente Trump, depois de um fim de semana de..., em vez de falar sobre Deus mais do que nunca, falar sobre como ele foi poupado para dar uma oportunidade de, talvez, [levar] este país de volta para algo que deveria ser – simplesmente me espanta quão longe essas pessoas vão”, disse ao The Todd Starnes Show, da On Newsmax.

Os apresentadores da Fox News defenderam o presidente e criticaram os comentários de Budde. “Fez o culto sobre as suas próprias crenças políticas perturbadas com uma oração vergonhosa cheia de alarmismo e divisão”, acusou o antigo aliado de Trump e apresentador do Hannity, Sean Hannity, enquanto a âncora da Fox News, Laura Ingraham, acrescentou: “Mas, em vez de um culto cristão sobre Deus e o país, eles foram forçados a ouvir os discursos de um lunático.”

Budde, mais tarde, abordou a controvérsia numa aparição na CNN, aduzindo que estava a lembrar-nos de que as pessoas estão assustadas no país. “Os dois grupos de pessoas que mencionei são nossos semelhantes e foram retratados em toda a campanha política, sob as luzes mais duras”.

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Não é a primeira vez que Budde fala sobre Trump. Já durante o primeiro mandato (2017-2021), tinha deixado avisos sobre o chefe de Estado.Com efeito, a 4 de junho de 2020, publicou um artigo de opinião sob o título “Bispa Budde: A visita de Trump à Igreja de St. John deixou-me indignada”, em que manifestava indignação por Trump ter aparecido em frente à igreja episcopal de St. John a segurar uma Bíblia para tirar uma fotografia, depois de os agentes federais terem usado a força para afastar a multidão de pacíficos manifestantes que se manifestavam contra a morte de George Floyd. Desse artigo se retiram as tiradas mais prementes.

Segundo escreveu a bispa, o presidente “usou símbolos sagrados, para se revestir do manto da autoridade espiritual, para defender posições antitéticas à Bíblia que tinha nas mãos”.

O artigo foi publicado em junho e, nesse mês, Mariann Budde, entrevistada pela ABC News, disse que desistira de falar” com Trump, vincando: “Precisamos de substituir o presidente Trump.”

Num momento crucial da vida ou da História, importa manter o foco no que mais importa, para que o momento não passe e não percamos uma oportunidade de transformação.

Gayle Fisher-Stewart, sacerdotisa episcopaliana afro-americana que se recusa a sofrer, de bom grado, os tolos supremacistas brancos, escreveu na altura: “Espero que a indignação sobre o abuso e a destruição contínuos de vidas negras seja tão grande como a indignação sobre o presidente a segurar a Bíblia na frente de uma igreja.” “A isso eu digo, amém. Vamos manter o nosso foco onde ele pertence”, escreveu Mariann Edgar Budde.

A bispa ficou indignada com o uso da Bíblia pelo presidente e do cenário da Igreja de St. John para os seus propósitos políticos. Ficou horrorizada, ao saber que, enquanto ameaçava usar força militar em toda a América, manifestantes pacíficos eram removidos, à força, do Parque Lafayette para ele posar diante da igreja para a fotografia. O telefone da prelada acendeu com mensagens de pessoas de todo o país que, tal como ela, não acreditavam no que estavam a ver. Porém, mantiveram-se focados na indignação, não se permitindo estar distraídos das questões que estão a compelir os Americanos a irem às ruas em grande número.

Mariann Edgar Budde assegurou aos que pudessem estar preocupados com a sua falta de hospitalidade ao presidente para rezar em St. John’s que teria adorado que ele abordasse, desde a igreja, a dor, a raiva e a frustração coletivas da nação. Teria ficado ao seu lado, se ele tivesse pedido rápida justiça pelo assassinato de George Floyd, se tivesse pedido calma e apelado à necessidade de parar com os saques oportunistas e com a destruição sem sentido.

Em vez disso, o presidente usou símbolos sagrados para se cobrir com o manto da autoridade espiritual, enquanto defendia posições antitéticas à Bíblia que tinha nas mãos. Foi por isso que a bispa traçou a linha vermelha, tal como o seu colega, o arcebispo Wilton Gregory, quando, no dia seguinte, o senhor e a senhora Trump fizeram uma visita não anunciada ao Santuário Nacional de São João Paulo II. Se o presidente tivesse aberto a Bíblia que segurava, poderia ter lido passagens que nos convocam a amar a Deus e ao próximo, a buscar a Deus diante de estranhos e até a amar os nossos inimigos. Poderia ter lido exortações a convocar-nos ao mais alto padrão de amor, que é a justiça. Poderia ter recitado textos que alertam líderes religiosos sobre o pecado da hipocrisia. As Escrituras são claras, ao preconizarem que Deus não se impressiona com orações desligadas de esforços sustentados para criar um Mundo mais amoroso.

“Que a justiça corra como águas”, diz Deus, através do profeta Amós, “e a retidão como um riacho que flui sem cessar”. A justiça, que é a expressão social do amor, é o que mais importa para Deus. A justiça é o mais importante para os que exercem o direito ao protesto pacífico, pois exprimem o que todos nós sabemos ser verdade: já passou da hora de “consertar” uma lei que permite que polícias e justiceiros fiquem impunes por crimes contra pessoas de cor, de corrigir as grandes disparidades na assistência médica que a covid-19 revelou e de mudar os sistemas económicos e educacionais que privilegiam os brancos.

Como todo a gente, as pessoas de fé não têm uma só opinião. A caixa de entrada de e-mail da prelada evidencia isso. Aparecemos em todos os lados de cada questão. Muitas vezes, preferimos não tomar partido, por medo de ofender, de sair da nossa linha ou de deixar de amar a todos, sem distinção. Porém, há momentos em que tomar um lado e uma posição é o necessário das pessoas de fé. E a bispa está com os envolvidos em protestos pacíficos, pedindo mudanças significativas e, especialmente, com os jovens americanos que legitimamente se interrogam se há esperança para o seu futuro. Pela graça e com coragem, acredita que nos podemos e devemos levantar para enfrentá-lo. O Deus a quem serve está do lado da justiça. Jesus chama os seus seguidores a imitar o seu exemplo de amor sacrificial e a construir o Reino de Deus na Terra. O bispo presidente Michael Curry desafiou à autointerrogação: “Como seria o amor sacrificial de Jesus agora?”

Isso dá para ver se podemos mover a agulha em coisas como a reforma policial, a assistência médica universal e as oportunidades para todos os jovens, não importando a cor da pele.

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Mariann Edgar Budde tem 65 anos e é a primeira mulher a liderar a Diocese Episcopal de Washington. Exerce o cargo desde 2011. O site da diocese dá-a como “defensora e organizadora no apoio a questões de justiça, incluindo a equidade racial, a prevenção da violência com armas de fogo, a reforma da imigração, a plena inclusão de pessoas LGBTQ+ e o cuidado da criação”.

Estudou História na Universidade de Rochester, é casada, tem dois filhos e escreveu três livros: “How We Learn to Be Brave: Decisive Moments in Life and Faith” [“Como aprendemos a ser corajosos: Momentos Decisivos na Vida e na Fé”), “Receiving Jesus: The Way of Love” [“Receber Jesus: O Caminho do Amor”] e “Gathering Up the Fragments: Preaching as Spiritual Practice” [Juntar os fragmentos: A Pregação como Prática Espiritual”].

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Quando a religião questiona os líderes políticos, mesmo que se afirmem religiosos e democratas, os leigos e clérigos comprometidos são ostracizados – criticados e ameaçados de deportação. Isto acontece nos EUA, a “Terra da Liberdade”!

2025.01.29 – Louro de Carvalho

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Estranha maneira de acabar com a guerra de Israel em Gaza

 
O presidente Donald Trump conversou, a 25 de janeiro, com o rei Abdullah II, da Jordânia, parceiro importante dos Estados Unidos da América (EUA) na região, sobre a possibilidade de construir moradias e de transferir mais de um milhão de Palestinianos de Gaza para países vizinhos. E declarou aos repórteres, a bordo da Força Aérea One: “Disse-lhe que adoraria que assumisse mais, porque estou a olhar para a Faixa de Gaza, agora, e está uma bagunça.”
A agência de notícias estatal da Jordânia Petra relatou a ligação com o presidente dos EUA, mas sem mencionar a realocação de Palestinianos. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o reino já abriga mais de 2,39 milhões de refugiados Palestinianos registados.
Há cerca de 5,9 milhões de refugiados Palestinianos no Mundo, a maioria deles descendentes de pessoas que fugiram com a criação de Israel, em 1948.
Trump disse que gostaria que a Jordânia e o Egito (que faz fronteira com o enclave) abrigassem pessoas, e que falaria com o presidente egípcio, Abdel Fattah el-Sisi, sobre o tema, no dia 26. Tendo observando que há conflitos centenários, na região, disse estar a falar de um milhão e meio de pessoas e que se limpava tudo. E prosseguiu o presidente e antigo promotor imobiliário: “Não sei, algo tem de acontecer, mas é, literalmente, um local de demolição, agora. Quase tudo está demolido, e as pessoas estão a morrer lá. Então prefiro envolver-me com algumas nações árabes e construir moradias num local diferente, onde acho que talvez possam viver em paz, para variar.” E referiu que tal habitação poderia ser temporária ou de longo prazo.
Porém, o Ministério das Relações Exteriores do Egito declarou, no dia 26, que rejeita qualquer deslocamento forçado de Palestinianos. Sem mencionar Donald Trump, reiterou a posição do Egito contra “o deslocamento de Palestinianos de suas terras, por meio de despejo forçado”. “Tais ações ameaçam a estabilidade, correm o risco de estender ainda mais o conflito na região e prejudicam as oportunidades de paz e coexistência”, reza a declaração.
A Jordânia está comprometida em “garantir que os Palestinianos permaneçam nas suas terras”, garantiu o seu ministro das Relações Exteriores, no dia 26. “A nossa recusa de deslocamento é posição firme que não mudará”, disse Ayman Safadi, vincando que “a Jordânia é para os Jordanianos e a Palestina é para os Palestinianos”, dizendo-se ansioso para trabalhar com a nova administração dos EUA e sustentando que Trump foi “claro, ao declarar que quer alcançar a paz na região”. Porém, reiterou a posição “firme e imutável” da Jordânia pela solução de dois estados e apelou à comunidade internacional para que apoie o objetivo da solução de dois estados para o conflito israelo-palestiniano.
Os comentários de Trump – rompendo com décadas de política externa dos EUA, que enfatizam, há muito, a solução de dois estados Israel e Palestina – vêm 15 meses após o início da guerra entre Israel e o Hamas, que reduziu a escombros grande parte de Gaza, danificando ou destruindo cerca de 60% dos edifícios, incluindo escolas e hospitais, e cerca de 92% das casas, de acordo com a ONU. Aproximadamente 90% dos moradores de Gaza foram deslocados, e muitos forçados a mudar-se repetidamente, alguns mais de 10 vezes. E Amit Segal, analista da rede israelita Channel 12 News, citando autoridades israelitas, frisou que a atitude de Trump “não foi um deslize, mas parte de um movimento muito mais amplo do que parece, coordenado com Israel”. Há muito, existe o medo, na região, de que Israel queira expulsar os Palestinianos de Gaza para os países vizinhos, premissa que o governo de Israel diz rejeitar, mas apoiada por fações de extrema-direita da coligação no governo.
O deslocamento de Palestinianos da Faixa de Gaza para o Egito significa que ocorrerá situação similar, ou seja, a expulsão de Palestinianos da Cisjordânia para a Jordânia. Nesse caso, não fará sentido discutir um estado palestiniano, pois “a terra estará lá, mas o povo não”.
Bassem Naim, alto funcionário do Hamas, pensa que os Palestinianos “não aceitarão nenhuma proposta ou solução” de deixar a terra natal, mesmo que aparentemente bem-intencionada “sob o pretexto de reconstrução”. E o Dr. Mustafa Barghouti, político palestiniano independente, disse ter rejeitado completamente os comentários de Trump. “O que a ocupação não conseguiu alcançar, pelo seu bombardeio criminoso e pelo genocídio em Gaza não será implementado por meio de pressões políticas”, disse Barghouti, vincando: “A conspiração de limpeza étnica não terá sucesso em Gaza ou na Cisjordânia.”
Ao assumir a presidência dos EUA, Trump revogou as sanções de Joe Biden contra colonos israelitas considerados responsáveis ​​pela violência mortal na Cisjordânia ocupada, medida saudada pelo ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, que defende que Israel restabeleça os assentamentos judaicos em Gaza, abandonados por ordem israelita de 2005.
Smotrich endossou os comentários de Trump, dizendo que a ideia de ajudar os moradores de Gaza a encontrar outros lugares para começar vida nova e melhor é ótima ideia.
O presidente dos EUA disse que “poderia” ter um papel na reconstrução de Gaza, elogiando-a por ter “localização fenomenal, no mar” e “o melhor clima”. Tais comentários replicam observações, em 2024, do seu genro Jared Kushner, que chamou a propriedade à beira-mar, em Gaza, de muito valiosa e sugeriu que Israel deveria tirar os Palestinianos de Gaza e “limpá-la”.
Trump confirmou que havia revogado uma proibição da era Biden do fornecimento de bombas de duas mil libras a Israel. “Nós libertámo-los [os Palestinanos], hoje, e eles tê-los-ão. Eles pagaram por eles e estão esperando por eles há muito tempo”, disse aos repórteres.
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A proposta do presidente dos EUA de “limpar” a Faixa de Gaza, transferindo mais de um milhão de Palestinianos para países vizinhos atraiu duras críticas, com oponentes a condená-la como limpeza étnica e a alertar para o caos regional. A proposta, se adotada, marcaria rutura brusca com a posição do governo Biden de que Gaza não seria despovoada e poderia sinalizar mudança de uma posição de longa data dos EUA de que Gaza deveria fazer parte de um futuro estado palestiniano. Também alinharia o governo Trump com os políticos de extrema-direita mais radicais de Israel, que defendem a transferência de Palestinianos para fora do território, para abrir caminho aos assentamentos judaicos.
Ao invés dos países mencionados, que a rejeitaram, a proposta foi acolhida por políticos israelitas extremistas, incluindo o Ministro das Finanças Bezalel Smotrich, que gerou polémica, ao afirmar que “não existe povo palestiniano”, e o ex-Ministro da Segurança Nacional Itamar Ben Gvir, que já foi condenado por apoiar o terrorismo e incitar o racismo antiárabe.
Políticos palestinianos condenaram o plano como um plano de limpeza étnica dos moradores de Gaza. E, nos EUA, até o senador Lindsey Graham, um dos mais fervorosos apoiantes de Israel no Congresso, disse à CNN que não acreditava que a ideia fosse “excessivamente prática”.
Especialistas alertam que, além das preocupações morais e legais, o influxo de refugiados para países árabes vizinhos desestabilizaria e seria ameaça existencial. Concordar com a proposta de Trump provocaria raiva pública generalizada – risco insustentável para esses governos.
O governo egípcio e o jordaniano “enfrentariam uma oposição interna avassaladora, se fossem vistos pelos seus povos como complacentes com uma segunda Nakba palestiniana”, disse Hasan Alhasan, pesquisador sénior de política do Médio Oriente no Instituto Internacional de Estudos Estratégicos no Bahrein, referindo-se a 1948, quando cerca de 700 mil Palestinianos fugiram ou foram expulsos de suas casas, na Palestina histórica, aquando da criação de Israel. Israel impediu que eles e os seus descendentes retornassem, deixando milhões de refugiados em países vizinhos sem cidadania ou sem perspetivas de reassentamento permanente.
“Dado que é altamente improvável que os Palestinianos de Gaza saiam voluntariamente, o deslocamento forçado em direção ao Egito ou à Jordânia representaria várias ameaças existenciais para os dois países”, disse Alhasan, referindo que, na Jordânia, que já abriga milhões de Palestinianos, uma demografia alterada ameaçaria o poder da monarquia Hachemita.
O Egito e a Jordânia são dois dos aliados mais próximos dos EUA no Médio Oriente e grandes recetores de ajuda dos EUA que, durante décadas alinharam as suas políticas regionais com os interesses dos EUA. Foram os primeiros países árabes a assinar tratados de paz com Israel, com quem mantiveram relações cordiais, incluindo a coordenação de segurança, apesar do generalizado descontentamento público. Resta saber até onde esses países irão, para enviarem clara mensagem a Washington de que o deslocamento em massa não extinguirá o conflito.
Durante a guerra, a Jordânia e o Egito ignoraram os apelos domésticos para romper laços com Israel, e o Egito desempenhou papel fundamental de mediação entre Israel e o Hamas.
Em outubro de 2023, eclodiram protestos, em ambos os países, em apoio aos Palestinianos em Gaza, com muitos a mostrar descontentamento com a cooperação dos seus governos com Israel, dado o alto número de vítimas humanas causadas pela guerra israelita.
Timothy Kaldas, do Instituto Tahrir, disse que aceitar a transferência de população palestiniana seria mais custoso para os dois países do que perder a ajuda americana de que ambos os países dependem. Com efeito, o Egito e a Jordânia já acolhem um número considerável de refugiados.
Em janeiro, havia 877 mil refugiados e requerentes de asilo registados no Egito, segundo o ACNUR, a agência de refugiados da ONU. De acordo com a Reuters, em maio, Diab al-Louh, embaixador palestiniano no Cairo, disse que cerca de 100 mil moradores de Gaza cruzaram para o Egito desde o início da guerra. Na Jordânia, mais de 2,39 milhões de refugiados palestinianos estão registados na UNRWA, a agência da ONU para refugiados palestinianos.
Ambos os países podem ter problemas de segurança, se os seus territórios forem locais de preparação para ataques a Israel, o que prejudicaria os tratados de paz com Israel. “Ao tentar despovoar Gaza dos habitantes palestinianos, Trump faz o que os fanáticos de extrema-direita de Israel querem”, vincou Hasan Alhasan, sustentando que a proposta de Trump, a concretizar-se, seria “autodestrutiva”, pois desestabilizar o Egito e a Jordânia “favoreceria forças políticas islâmicas, nomeadamente, a Irmandade Muçulmana”, que “provariam ser muito menos amigáveis ​​com os EUA e mais simpáticas com o Hamas”.
Tendo levantado a ideia, pela primeira vez, no dia 25, Trump entusiasmou-se com ela, no dia 27, afirmando, do povo de Gaza, que gostaria de que vivesse numa área onde pudesse viver “sem tanta perturbação, revolução e violência”. Porém, não especificou se a migração seria voluntária, pois forçar o deslocamento de civis “pode constituir crime de guerra e/ou crime contra a Humanidade”, segundo a ONU. “Acho que é possível fazer com que as pessoas vivam em áreas muito mais seguras, talvez muito melhores e talvez muito mais confortáveis”, disse.
Embora não tenha havido resposta do gabinete do primeiro-ministro israelita, a ideia foi aplaudida por políticos israelitas de extrema-direita. Bezalel Smotrich, líder do partido Sionismo Religioso, disse que Trump reconheceu que Gaza era “um terreno fértil para o terror” e “não há dúvida de que, a longo prazo, incentivar a migração é a solução que trará paz e segurança aos moradores de Israel e aliviará o sofrimento dos moradores árabes de Gaza”.
Bezalel Smotrich, que tem uma posição ministerial no Ministério da Defesa, disse que tra balhanum plano para implementar a visão de Trump. “Quando ele quer algo, isso acontece”, disse Smotrich, que tem defendido o que chama de “emigração voluntária de Árabes de Gaza para países ao redor do Mundo”, desde 2023.
Como a Dinamarca espera que os EUA abandonem o controlo da Groenlândia, os estados árabes moderados rezam para que se esqueçam de transferir os habitantes de Gaza. A este respeito, o ministro das Relações Exteriores iraniano, Abbas Araghchi, declarou, em entrevista à Sky News, no dia 28, que “a Palestina não pode ser destruída e os Palestinianos não podem ser expulsos” e atirou, ironicamente, que levem, antes, os Israelitas para a Groenlândia.
A Jordânia e o Egito parecem propensos a unirem-se aos seus aliados no Golfo, especialmente, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos (EAU), para apresentarem uma frente unida.
Até agora, os Sauditas e os Emiradenses permaneceram em silêncio sobre o plano de Trump. O rei Abdullah II, da Jordânia, nada disse sobre o telefonema de Trump. Mas o tribunal jordaniano divulgou uma leitura da sua ligação telefónica com o secretário de Estado, Marco Rubio, que pode ter sido um esforço para limitar os danos. Discutiram maneiras de “melhorar a segurança e a estabilidade regionais e meios para fortalecer a parceria estratégica entre a Jordânia e os EUA, bem como o interesse em manter a coordenação e a consulta sobre várias questões”.
Um alto funcionário egípcio negou que o presidente Abdel Fattah al-Sisi tenha falado com Trump, apesar da afirmação deste, no dia 27, de que tinham falado. Trump recusou dizer se o presidente egípcio tinha opinião sobre receber refugiados Palestinianos adicionais.
Após um ano de agitação no Médio Oriente, até a ideia de que milhões de Palestinianos podem ser removidos de suas casas é fonte de instabilidade, pois acolher moradores de Gaza ameaçaria o acordo de paz do Egito com Israel, devido ao risco de alguns voltarem a lutar contra o estado judaico de dentro das fronteiras do seu país. Além disso, o Egito é o terceiro maior beneficiário da ajuda dos EUA na região, com 1,5 bilião de dólares entregue em 2023.
O risco é existencial para a Jordânia, que tem mais de um milhão de refugiados de países vizinhos e cerca de 2,4 milhões de refugiados palestinianos registados. Mais de metade dos seus habitantes descendem de Palestinianos, e a sua demografia seria transformada por novo influxo. Porém, não pode descartar a ajuda de Trump, de imediato. É país de poucos recursos, com défice orçamental de 5,1% da sua produção económica e com 20% da força de trabalho desempregada. Depende da ajuda externa e é o segundo maior beneficiário de ajuda dos EUA no Médio Oriente, depois de Israel, com mais de 1,7 biliões de dólares entregues em 2023.
Trump já pôs a ajuda externa e as tarifas no centro da política externa cujos princípios foram mais punição do que recompensa. O governo jordaniano e o egípcio percebem isso.
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O plano constitui uma estranha maneira de querer acabar a guerra – desalojar um povo do território que lhe pertence tradicionalmente, originando uma ação contra a Humanidade e configurando ameaça a décadas de consenso internacional sobre o direito dos Palestinianos a uma pátria. Assim, deixará de fazer sentido equacionar a ideia de dois estados. Bastaria só que Israel recolonizasse, sem qualquer entrave, todo o território da Palestina. A iteração do êxodo equivaleria a levar a cabo, a tolerar e a apoiar a limpeza étnica. Ou será desígnio do promotor imobiliário Trump edificar um empório imobiliário sobre as ruinas de Gaza? 

2025.01.28 – Louro de Carvalho