segunda-feira, 31 de março de 2025

Líder de facto do Rassemblement National inelegível e condenada a prisão

 

A francesa Marine Le Pen, de 56 anos, oito eurodeputados franceses do Rassemblement National (RN) – partido de União Nacional – e 12 assistentes foram considerados, pelo Tribunal Penal de Paris, culpados de desvio de fundos públicos, pelo que a líder de extrema-direita foi condenada a quatro anos de prisão, dois dos quais domiciliária com pulseira eletrónica, e a cinco anos de inelegibilidade, com efeito imediato, o que a impossibilita de se candidatar às eleições presidenciais de 2027, de que resultará o sucessor do presidente Emmanuel Macron.

Além disso a ex-líder do RN foi também condenada a multa de 100 mil euros, contra os 300 mil euros propostos pelo procurador do Estado, que também pediu 10 anos de prisão.

“Vamos recorrer”, declarou aos jornalistas, entretanto, Rodolphe Bosselut, advogado de Le Pen, acrescentando que esta condenação é “um golpe para a democracia”.

Embora Marine Le Pen conserve o seu mandato de deputada pelo Pas-de-Calais, as consequências políticas da decisão são inescapáveis: enquanto aguarda a decisão futura, não poderá candidatar-se a nenhuma eleição, durante um período de cinco anos, ou seja, até depois das eleições presidenciais de 2027.

As sentenças foram detalhadas individualmente, mas sobressai que a juíza decretou inelegibilidade com execução provisória imediata para Le Pen. Por isso, em caso de recurso, até à decisão final, prevalece a sentença condenatória.

Le Pen não reagiu bem ao anúncio da sentença e saiu do tribunal, antes de ser declarado por quanto tempo tem esta pena, ficando impedida, para já, de se candidatar à presidência francesa.

“Parece necessário combinar sentenças de inelegibilidade com execução provisória”, declarou o presidente do tribunal, Bénédicte de Perthuis, considerando: Trata-se de garantir que os representantes eleitos, tal como todos os que estão sujeitos à lei, não beneficiam de um regime preferencial.”

Após um período de silêncio no tribunal, o tribunal começou a chamar os réus ao banco das testemunhas para anunciar suas sentenças.

Além dos membros do RN, o próprio partido foi multado em dois milhões de euros, dos quais um milhão seria imposto como penalidade, além do confisco de um milhão de euros apreendidos durante a investigação do caso dos assistentes parlamentares europeus.

A condenação lança dúvidas sobre o futuro político da principal figura da extrema-direita francesa. Apesar de ser considerada culpada, falta ainda conhecer a sentença final de Le Pen, que pode chegar a cinco anos de prisão com dois de cadeia efetiva e uma multa de 300 mil euros, como pedia o procurador do Estado, além da inelegibilidade imediata.

De acordo com o Le Monde, os doze assistentes julgados também foram considerados culpados de receção de bens roubados. O tribunal estimou que o dano total foi de 2,9 milhões de euros, ao fazer com que o PE “assumisse o controlo de pessoas que, na verdade, trabalhavam para o partido de extrema-direita”.

Na antevisão da sessão em tribunal, Le Pen descreveu o cenário como uma “morte política”.

A deputada negou as acusações de que estava à frente de um sistema destinado a desviar dinheiro do PE para beneficiar o seu partido, argumentando que era aceitável adaptar o trabalho dos assessores parlamentares às necessidades dos deputados do seu partido.

Durante o seu testemunho, Le Pen disse ao tribunal que não sentia ter “cometido a mais pequena irregularidade” ou “ação ilegal”.

As audições revelaram que uma parte do dinheiro foi utilizada para pagar o guarda-costas de Le Pen e para a sua assistente pessoal.

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A líder de facto da extrema-direita francesa não atirou a toalha ao chão, mas as suas ambições presidenciais estão comprometidas, devendo ser substituída por Jordan Bardella, seu delfim. A decisão judicial, condenada pelos principais aliados europeus do RN e pelo Kremlin, “aprofunda o argumento de que o sistema está viciado contra eles, narrativa que pode galvanizar a base e reforçar o apoio rumo a 2027”, como alertam alguns investigadores.

Depois de estar mais próximo do que nunca, o Palácio do Eliseu passou, a 31 de março, a estar mais longe do que alguma vez esteve, para Marine Le Pen. A sua candidatura presidencial em 2027 ainda não está irremediavelmente afastada, mas o caminho estreitou-se. Ora, depois do segundo lugar nas eleições de 2017 e de 2022, a candidata do RN era, segundo as sondagens, a favorita para suceder ao liberal Emmanuel Macron.

O investigador Yann Wernert, do Centro Jacques Delors / Escola Hertie, a decisão judicial é “inovadora” e há que “esperar um pouco, para que a poeira assente”. Os eleitores do RN tencionam manter a sua preferência de voto, independentemente de o seu candidato principal ser Marine Le Pen ou Jordan Bardella. Com 29 anos, Bardella “esforçar-se-á por cerrar as fileiras do partido e aproveitar a transição iniciada por Le Pen”, quando o tornou líder do partido, em 2022, para se concentrar na sua candidatura presidencial, e candidato a primeiro-ministro.

Se for Bardella a candidatar-se à presidência, em 2027 – tudo aponta para isso –, será a primeira vez, em 46 anos, que o candidato principal da extrema-direita, em França, não é membro da família Le Pen.

Camille Lons, a diretora adjunta do gabinete de Paris do grupo de reflexão European Council on Foreign Relations (ECFR), considera que “a condenação de Le Pen está a provocar ondas de choque no panorama político francês e europeu”, com implicações profundas na dinâmica política francesa e na batalha mais alargada de narrativas em torno da democracia no Ocidente.

Quanto a Bardella, continua a ser incerto se preencherá, efetivamente, o vazio deixado por Le Pen, visto que o partido foi, durante muito tempo, construído em torno da marca pessoal desta.

Embora Bardella tenha procurado tornar o RN mais apelativo, para as elites empresariais e para os conservadores moderados, abraçou elementos da base mais radical do partido. O seu recente contacto com a direita americana, a sua participação na Conservative Political Action Conference (CPAC) e a sua posição matizada sobre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) sugerem uma mudança estratégica que o distingue de Le Pen. Apesar da sua popularidade crescente – 60% dos eleitores do RN preferem-no a Le Pen –, esta independência pode criar tensões no partido, pois é pouco provável que Le Pen se afaste da vida política.

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O caso Le Pen remonta a 2015, ano em que o PE alertou as autoridades francesas sobre a possível utilização fraudulenta de fundos da então Frente Nacional, agora RN, devido ao grande número de contratos de assistentes parlamentares que trabalhavam a tempo inteiro ou parcial para o partido entre 2004 e 2016. A acusação alegou que muitos dos assistentes não trabalhavam para os eurodeputados a que estavam associados, mas para o partido, violando as regras da União Europeia (UE), segundo as quais os fundos parlamentares serão usados, exclusivamente, para atividades conexas com o PE. Alguns assistentes não conseguiram descrever as suas funções ou provar trabalho efetivo para os eurodeputados. O PE estimou o prejuízo financeiro em 4,5 milhões de euros, mas só reclama 2,7 milhões, porque um milhão já foi reembolsado. Porém, o advogado do RN garantiu que não se trata de uma confissão de culpa.

Em novembro, o Ministério Público (MP) francês pediu cinco anos de prisão e pena de inelegibilidade a aplicar imediatamente, mesmo em caso de recurso, aos 25 arguidos, acusados de “sistema organizado” e de cumplicidade.

As provas de que funcionários do RN utilizaram, conscientemente, fundos do PE, de forma abusiva, são esmagadoras. Com efeito, a própria Le Pen, no início da sua carreira, declarou que gostaria que os políticos condenados por utilizarem indevidamente as vantagens conferidas pelos seus cargos públicos fossem banidos da política para o resto das suas vidas.

Bardella, outras figuras do partido e aliados além-fronteiras começaram, de imediato, a pôr em causa a legitimidade e as motivações do tribunal. “Hoje, não é apenas Marine Le Pen que está a ser injustamente condenada: é a democracia francesa que está a ser executada”, sentenciou o líder do partido, na rede social X, passando, horas depois, a apelar à “mobilização popular e pacífica” contra o que descreveu como “um escândalo democrático”.

Também Marion Maréchal, do mesmo partido, afirmou, nas redes sociais, que a única culpa de Le Pen foi ter liderado no caminho para a vitória. A sobrinha de Le Pen acusa de golpe político os juízes, feito através da justiça. “Juízes que se julgam acima do povo soberano decidiram executar em tribunal a mesma pessoa que nunca conseguiram derrubar nas urnas”, afirmou.

O mencionado investigador do Centro Jacques Delors adverte que “o tiro pode sair pela culatra, já que o princípio de que ‘ninguém está acima da lei’ é um princípio republicano profundamente enraizado [em França], e as intenções de voto podem, consequentemente, deslocar-se para os partidos mais convencionais”. Ao mesmo tempo, “uma campanha de difamação contra o poder judicial poderá funcionar e permitir que o RN mantenha a sua posição de liderança nas sondagens”. E há ainda uma pequena hipótese de um recurso ser, pelo menos, parcialmente, bem-sucedido para Le Pen, a tempo de alterar a situação antes das próximas eleições presidenciais, caso em que “seria difícil organizar uma campanha eleitoral”.

De acordo como a mencionada responsável do ECFR, em França, a condenação poderá “reforçar, perigosamente, as alegações, de longa data, do RN de parcialidade judicial e de perseguição política”. Já nas legislativas de 2024, o voto tático de outros partidos impediu o RN de garantir o cargo de primeiro-ministro, apesar de ter obtido 37% dos votos na segunda volta. E a presente decisão judicial só aprofunda o argumento do partido de que o sistema está viciado contra eles.

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, mostrou a sua solidariedade com Le Pen com um curto “Je suis Marine!”.

Matteo Salvini, vice-primeiro-ministro italiano, foi menos lacónico: “Os que temem o julgamento do eleitorado procuram, muitas vezes, tranquilidade nos tribunais. Em Paris, condenaram Marine Le Pen e gostariam de a afastar da vida política. Um mau filme que também se pode ver noutros países, como a Roménia. O que está a acontecer com Marine Le Pen é uma declaração de guerra de Bruxelas, numa altura em que as pulsões belicosas de [Ursula] von der Leyen e de Macron são aterradoras. Não nos vamos deixar intimidar, não vamos parar: a toda a velocidade, minha amiga!”

Em reposta a uma pergunta sobre a condenação de Le Pen, durante o seu briefing diário, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, afirmou tratar-se de “assunto interno de França”, mas adiantou que a Europa segue, “cada vez mais, o caminho da violação das normas democráticas”.

É comum partidos de extrema-direita e/ou iliberais lutarem contra o Estado de Direito e contra o poder de controlo do judicial inerentes às democracias ocidentais. Vê-se isso nos Estados Unidos da América (EUA), na Hungria e na Polónia, pelo que não é de admirar que políticos, como Orbán e Salvini já tenham tomado o partido do RN, nas críticas aos tribunais. O porta-voz do Kremlin, que não tem autoridade moral para dar lições de democracia, também se pôs do lado de Le Pen. É, pois, de esperar que os partidos de extrema-direita e iliberais se desmultipliquem na oposição ao poder de controlo dos tribunais, independentemente do nível a que estes operem.

Camille Lons também se mostra preocupada com as réplicas desta decisão para lá de França. O acórdão insere-se no crescente debate transatlântico sobre democracia e legitimidade política. Nos EUA, onde James David Vance e Donald Trump têm denunciado, repetidamente, a “democracia pelos juízes” e é provável que o veredicto seja enquadrado como mais uma prova do exagero europeu e da decadência democrática. Nestes termos, a responsável do ECFR antevê: “Tal como os conservadores americanos condenaram a intervenção judicial nas eleições anuladas da Roménia, é provável que aproveitem a condenação de Le Pen para argumentar que as elites centristas na Europa estão a utilizar mecanismos legais para suprimir a oposição de direita.

Por isso, no dizer de Camille Lons, “as consequências europeias mais vastas desta decisão não devem ser subestimadas: o impacto imediato poderá ser um aumento do apoio aos movimentos anti-establishment por toda a Europa”.

No plano interno, o caso Le Pen não é invulgar. Já houve condenações similares de políticos de grande visibilidade, como François Fillon, que foi condenado a 10 anos de inelegibilidade, em 2022, e Alain Juppé, que fora condenado a um ano de inelegibilidade, em 2004. Os tribunais não podem decidir ignorar a lei por alguém ser um político popular. Para evitar decisões arbitrárias do poder judicial, os tribunais têm de documentar e fundamentar as suas decisões e de dar a possibilidade de recurso. E, desde as primeiras alegações conexas com a utilização indevida de fundos do PE, Le Pen concorreu, por duas vezes, à presidência (em 2017 e em 2022).

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Não é só em Portugal que a Justiça funciona em modo lento. A França, embora melhor do que Portugal, no tratamento judicial às figuras de relevo político, não serve de modelo. A Justiça não pode vir nem por bombardeio, nem no antigo comboio do Texas.

2025.03.31 – Louro de Carvalho

A Quaresma é um apelo à opção pela vida que Deus quer para nós

 
A liturgia do 4.º domingo da Quaresma, no Ano C, através da parábola do Pai misericordioso, ensina como se recupera a vida de liberdade que se perdeu.
primeira leitura (Js 5,9a.10-12) mostra-nos o Povo de Deus a começar vida nova na terra de Canaã, postergando a escravidão do Egito e a desolação do deserto. Na Terra Prometida, Israel pode construir um futuro de liberdade e de felicidade. É essa experiência que somos instados a fazer, em todo o ano, mas, em especial, em tempo de Quaresma.
O Livro de Josué é uma reflexão sobre a História do Povo de Deus no período que vai desde a entrada em Canaã até à morte de Josué (por meados do século XII a.C.).
Em geral, a preocupação da “escola deuteronomista” é mais de índole teológica do que histórica. Por exemplo, a conquista da Terra é apresentada como campanha fulgurante e fácil em que as doze tribos a uma só voz, sob a liderança de Josué, se apoderaram facilmente de toda a Terra. Mas, historicamente, as coisas não aconteceram assim. O Livro dos Juízes, muito mais realista, fala de conquista lenta, difícil e incompleta, que não foi obra de um povo unido à volta de um chefe único, mas de tribos que fizeram a guerra isoladamente. Os autores do Livro de Josué estão interessados em afirmar o poder de Javé, posto ao serviço do seu Povo. Foi Deus – e não a capacidade militar das tribos – que ofereceu a Israel a Terra Prometida, devendo Israel, por sua vez, responder a esse dom, mantendo-se fiel à Aliança e aos mandamentos.
Cumprido o ritual da circuncisão, o povo celebrou a Páscoa, “no dia catorze do mês” de Nisan, em Guilgal. O cronista acrescenta que, nesse dia, o povo comeu os primeiros frutos da nova terra: “pães ázimos e espigas assadas”. O maná, alimento que Deus tinha dado ao povo, na etapa do deserto, cessou. Doravante, os filhos de Israel alimentar-se-ão dos frutos da terra de Canaã.
Para os Hebreus que, sob as ordens de Josué, atravessaram o Jordão, a entrada na Terra Prometida é o final feliz da longa viagem da escravidão para a liberdade. Para trás ficou o Egito, a terra da exploração e do sofrimento onde o povo vivia sem horizontes e sem esperança, e o deserto, terra de privação e de desolação, onde só o cuidado de Deus deu ao povo forças para sobreviver.
O gesto de Josué de ordenar a circuncisão de todos os “que nasceram no deserto, durante a viagem, depois do êxodo”, significa o ponto final no “opróbrio do Egito”, na era velha marcada pelo sofrimento e pela mentalidade de servidão de que o povo, nem depois de atravessar o mar Vermelho, se conseguira libertar. Porém, a gente que entrou na Terra Prometida é uma outra geração, um povo renovado, com olhar livre sobre o seu futuro e sobre as suas possibilidades. A circuncisão, sinal da Aliança de Deus com Abraão e da pertença ao povo eleito, é a reafirmação do compromisso do povo com o Deus que os conduziu a essa vida nova. A Páscoa, celebrada, pela primeira vez, na nova terra, é o ponto de partida para o caminho novo que agora começa e ao longo do qual o povo requer a presença e a assistência de Deus, para descobrir a rota a percorrer. O fim da “era do maná” e o aparecimento de outros alimentos, frutos da terra onde o povo se encontra, assinala outra forma de vida, o novo tempo, a nova História, a nova esperança.
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No Evangelho (Lc 15,1-3.11-32), a parábola do “pai misericordioso” ou do “pai que tinha dois filhos (é desviante a denominação de parábola do “filho pródigo”), mostra que Deus nunca nos fechará as portas: estará sempre à nossa espera de braços abertos, pronto para nos acolher e para nos reintegrar na família. “Voltar para Deus” é a opção certa para quem quiser dar sentido pleno à sua existência. Uma das “lições” do caminho para Jerusalém refere-se ao modo como Deus vê os homens e as mulheres que a sociedade marginaliza e condena. As “parábolas da misericórdia de Deus” dão conta da preocupação de Deus pelos filhos “perdidos” (cf Lc 15,1-32). Na ótica lucana, essas parábolas são a resposta de Jesus ao comentário escandalizado dos escribas e fariseus, que O querem experimentar: “Este homem acolhe os pecadores e come com eles” (Lc 15,2-3). Já os pecadores aproximavam-se para O ouvirem.
No grupo de gente pouco recomendável estavam os pecadores e os publicanos. O grupo dos pecadores incluía todos os que desobedeciam, notoriamente, à Lei e levavam vida desregrada: usurários, vigaristas, delinquentes, prostitutas, leprosos e publicanos. Os “publicanos” eram os cobradores de impostos, que colaboravam com os romanos na opressão do povo e tinham fama de roubar os pobres, cobrando mais do que o estipulado. As autoridades religiosas judaicas viam-nos como malditos e punham-nos à margem da salvação. Nenhuma pessoa de bem gostava de estar associada a essa gente. Ao invés, Jesus tinha amigos entre esses marginais e não tinha problema em sentar-se com eles à mesa. Não excluía ninguém e achava que todos eram bem-vindos à comunidade do Reino de Deus. A benevolência de Jesus para com aqueles que a moral, os bons costumes e a Lei condenavam, era inédita, escandalosa, vergonhosa, incompreensível.
A parábola do Evangelho desta dominga, exclusiva do Evangelho de Lucas, é uma das mais conhecidas. A tradução latina, “Vulgata”, notando o espaço que tem nela o filho mais novo – um jovem que dissipa os bens da família em vida dissoluta –, chama-lhe a “parábola do filho pródigo”; mas a maioria dos exegetas recentes, notando a centralidade do “pai” na parábola, chamam-lhe a “parábola do pai misericordioso”. Atendendo à ação das personagens, podemos designá-la como a “parábola do pai que tinha dois filhos”.
É uma história de família que tem os ingredientes habituais: discussão entre pais e filhos, esforço dos filhos para se libertarem da tutela paterna, conflito por causa de heranças, tensões que fazem perigar a unidade familiar, ciúmes e ressentimentos entre membros da família.
Nesta família, são relevantes três pessoas: o pai, o filho mais velho e o filho mais novo. O filho mais novo só pensa em ser livre, em gozar a vida, em afastar-se da vida certinha e regrada da casa do pai. Decide, então, pedir ao pai que lhe dê a parte da herança que lhe cabe, um pedido pouco comum, de acordo com as leis e práticas da época, pois “o pai ainda está vivo”. Não deve ter sido fácil, para o pai, lidar com o pedido do filho mais novo. Todavia, o pai procede à divisão dos bens, entregando ao filho mais novo o terço dos bens familiares (o mais velho, na qualidade de primogénito, teria direito ao resto dos bens paternos). Assim, o pai respeita a liberdade do filho e deixa-o seguir o caminho que ele elegeu. A liberdade é um dom, um direito, um dever e um risco.
O jovem afasta-se da casa familiar e vai para longe. Sem pormenores, é-nos dito que o jovem levou uma vida reprovável e não demorou a delapidar todos os seus bens, tendo ficado num beco sem saída. Para sobreviver, põe-se ao serviço de um estrangeiro, como guardador de porcos, (animais impuros). A degradação não poderia ter sido maior. Sem liberdade, nem dignidade, leva uma vida infra-humana. Nem sequer pode alimentar-se com o alimento dos porcos. Não se podia descer mais baixo.
Aqui, o narrador analisa os sentimentos do jovem. Desfeitas as ilusões, está cônscio de que fez má opção, ao deixar a casa do pai. Está bem pior do que os jornaleiros que trabalham para o pai, já que estes, pelo menos, têm o necessário para viver. Disposto a engolir o orgulho, abre a possibilidade de voltar ao encontro do pai e a pedir-lhe que o aceite, não como filho, mas como jornaleiro. Não sabe como o pai reagirá, mas não tem nada a perder. Resolve, pois, voltar.
Todos os ouvintes da parábola esperavam um reencontro difícil com um pai magoado e revoltado. Uma coisa parecia clara: o rapaz jamais poderia voltar a ocupar, na família, o lugar que tinha antes. Aquele filho tinha escolhido, por iniciativa própria, deixar de ser filho.
O jovem estava ainda longe, quando o pai o “viu”. Não é uma indicação casual: o narrador quer dizer que o pai vivia a olhar para o caminho por onde o filho tinha desaparecido, à espera de o ver regressar, epidermicamente, para lhe fechar a porta, para lhe fazer o sermão. Ao invés, o pai, ao ver o filho ao longe, sentiu revolver-se-lhe o coração. O verbo grego “splagknídzomai”, traduzido habitualmente como “compadecer-se”, indica a comoção interior que sentimos quando vemos alguém a quem amamos muito. Aliás, o nome “splágknon”, da família deste verbo, significa “seio materno”, barriga da mãe. E o verbo serve para expressar o amor da mãe pelo filho que trouxe no ventre. O pai, ao ver o filho que regressa, sente uma “comoção interior”, “sente revolver-se-lhe o coração”, como a mãe ao abraçar o filho que ama ternamente. É um estremecimento que resulta do amor. Neste quadro, não há lugar a censuras, a amuos, a zangas, a palavras amargas. Quando se ama desta maneira, tudo o resto desaparece. Não é por acaso que chamos pai e mãe a Deus.
O pai abraça o filho reencontrado e “cobre-o de beijos”. A sua forma de agir, mais do que um comportamento de pai, é um comportamento de mãe. Não há qualquer prevenção contra o filho ingrato: no coração apenas há amor. E, quando o filho tenta explicar-se, o pai nem o deixou acabar o discurso (na casa paterna, ninguém deixa de ser filho). Quem ama assim, não carece de explicações, nem de pedidos de desculpa.
A cena completa-se com o pai a restabelecer o filho na sua dignidade de filho e de irmão: vestiu-o com a melhor roupa que havia em casa; pôs-lhe no dedo um anel – o anel com o selo familiar restituía ao jovem o título de filho –; fê-lo calçar as sandálias, para que o jovem caminhe como um homem livre e não como escravo. E o filho retoma o seu lugar como membro de pleno direito da família que tinha renegado, ao abandoná-la. A festa que se seguiu – matou-se e comeu-se o vitelo gordo, que se guardava para as grandes ocasiões – é a expressão da imensa alegria que inunda o coração do pai, por ter, de novo, ao seu lado o filho reencontrado, que fez bem, quando resolveu partir e ir ter com o pai.
Se é difícil um pródigo resolver voltar, é comum reagir como o filho ou o irmão mais velho, o que permanecera sempre ao lado do pai. Ficou revoltado com a partida do irmão e com a traição à família. E, ao invés do pai, não voltara a olhar para o caminho por onde o irmão tinha desaparecido, à espera de o ver voltar a casa. Para ele, o irmão mais novo tinha feito a sua escolha e tinha deixado de pertencer à família. Era como se tivesse morrido.
Quando, voltando do trabalho, percebe que há festa e que a razão da festa é o regresso daquele irmão que tinha deixado pela lama o bom nome da família, o mais velho amua e recusa entrar em casa. Sente-se revoltado pela injustiça gritante. A leviandade é mais bem paga do que a vida honrada e correta que ele sempre levou. Movido pela inveja, não concorda com a fraqueza do pai e não quer, com a sua presença, caucionar a irresponsabilidade do irmão. O filho mais velho é um jovem certinho e bem-comportado, mas o seu coração não tem amor pelo irmão, nem pelo pai. Funciona segundo rígidos critérios de justiça, de severas obrigações, de retribuição lógica, não segundo critérios de amor. Cumpre regras, mas não ama. Serve um patrão, não ama o pai
O pai – em cujo coração há um amor sem medida pelos filhos – não estranha a revolta do filho mais velho para com o irmão, mas vem falar com ele e, com todo o carinho (chama-lhe “téknon”, “meu querido filho”), procura explicar-lhe a forma como vê as coisas: não podia receber o filho irmão de outro modo, pois continua a ser seu filho, um filho muito amado; está muito feliz por ele ter voltado a casa, onde terá sempre lugar; ama muito os filhos e, aconteça o que acontecer, eles terão sempre lugar em casa; o que mais deseja como o pai é ver todos os seus filhos sentados à mesa familiar, partilhando, fraternalmente, a alegria e a felicidade, numa festa sem fim.  
Não se diz se o filho mais velho aceitou e compreendeu os sentimentos do pai. Talvez o narrador tenha deixado o final em aberto para que dêmos a resposta ao pai que ama demasiado.
O pai cheio de amor é Deus, que arrisca dar-nos a liberdade, que respeita; os filhos somos nós. A parábola do pai misericordioso é um extraordinário poema ao amor de Deus pelos seus filhos, por nós. Muitas vezes, nós somos o irmão mais velho: até exageramos a enumerar os erros dos mais novos, para legitimarmos a exclusão. O pródigo levara vida dissoluta, mas o mais velho aponta: “Frequentou mulheres de má vida.” Na conversa com o pai, diz “esse teu filho” (pretensão de afastamento), ao que o pai responde com “este teu irmão” (desejo de proximidade).
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Na segunda leitura (2Cor 5,17-21), Paulo de Tarso, recorrendo ao conceito de “reconciliação”, lembra-nos que Cristo derrotou o egoísmo e o pecado e sanou a separação entre Deus e os homens.
Quem aceita ligar-se a Cristo e caminhar atrás d’Ele, está reconciliado com Deus.
Os detratores do apóstolo (pregadores procedentes das comunidades cristãs palestinenses, a certa altura chegados a Corinto) sustentam que este não tem autoridade para anunciar o Evangelho, pois nem sequer conviveu com Jesus, enquanto Ele andou pela Galileia e pela Judeia a anunciar o Reino de Deus. No entanto, Paulo encontrou-se com Cristo ressuscitado na estrada de Damasco e, a partir daí, deu toda a sua vida a Cristo. O amor de Cristo absorve-o completamente. Paulo quer anunciar a toda a gente que “Cristo morreu por todos, a fim de que, os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou”. Ele vive para Cristo e para dar testemunho de Cristo.
Paulo diz isso claramente aos Coríntios. Tudo o que tem feito – desvalorizado por aqueles que o atacam – tem por objetivo ajudar os Coríntios a encontrarem-se com Cristo. Ele sabe que, “se alguém está em Cristo, é uma nova criatura”; e o apóstolo quer muito que os Coríntios estejam em Cristo e possam tornar-se Homens novos.
Por trás de tudo isto, está a iniciativa de Deus. Deus não se conformava ao ver os seres humanos escolherem, dia após dia, caminhos de pecado; não se resignava a ver os homens imersos na velha realidade, que não levava a lado nenhum; por isso, enviou-lhes o seu Filho Jesus. Cristo, cumprindo o mandato que recebera do Pai, pela sua ação, pelo seu amor até ao extremo, pela sua entrega na cruz, mudou a situação dos homens. Entregou a própria vida para nos mostrar o amor de Deus; e convidou os homens a reaproximarem-se de Deus. Eliminando a autossuficiência e o egoísmo que impediam que os homens se aproximassem de Deus, Cristo acabou com a situação de rutura entre os homens e Deus.
Para descrever o que Cristo fez para reaproximar os homens de Deus, Paulo usa a palavra “reconciliação” (cinco vezes repetida nos vv. 18-20). Havia a situação de rutura entre o homem e Deus, mas, através de Cristo, a situação foi reparada e superada. O passado de separação entre Deus e o homem existiu, mas já não existe mais. A ação de Cristo fez com que o homem se reaproximasse de Deus; e Deus, no seu amor, não quis atirar-lhe à cara as escolhas erradas que o homem tinha feito. A vida velha ficou para trás; agora começou, para aqueles que aceitaram ligar-se a Cristo, a nova realidade, a vida nova, o tempo novo.
Paulo tornou-se junto dos Coríntios, “embaixador de Cristo” e arauto desta “reconciliação”. Foi esse o mandato que recebeu de Deus. Será esse o papel que Paulo desempenhará junto dos seus filhos de Corinto, digam o que disser quem o acusam de usurpar funções que não são dele.
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Paulo, vendo que Jesus assumiu o ser do pai misericordioso da parábola, fez-Se seu imitador e quer que nós também sejamos imitadores de Jesus Cristo.

2025.03.31 – Louro de Carvalho


domingo, 30 de março de 2025

A Síria, devastada por conflitos, tem novo governo de transição

 
A 29 de março, foi empossado o novo governo de transição da Síria, quatro meses após a destituição de Bashar al-Assad, que esteve no poder durante 24 anos.
A formação de tal governo fora anunciada, como sendo o propulsor de um período de transição de cinco anos, com o objetivo de restaurar a estabilidade e a paz, num país devastado por mais de uma década de guerra.
O gabinete de 23 membros é o primeiro formado na fase de transição de cinco anos, sucedendo ao governo provisório criado, imediatamente, após a remoção de Bashar al-Assad do poder, no início do dia 8 de dezembro, e reflete a mistura de origens religiosas e étnicas. Porém não inclui representantes das Forças Democráticas Sírias (FDS), apoiadas pelos Estados Undos da América (EUA) e lideradas pelos Curdos, nem da administração civil autónoma do Nordeste da Síria. No início deste mês, em Damasco, al-Sharaa e o comandante das FDS, Mazloum Abdi, chegaram a um acordo histórico sobre um cessar-fogo, a nível nacional, e sobre a integração das forças apoiadas pelos EUA no exército sírio.
Em vez do referido governo provisório, nos termos da constituição temporária aprovada pelo presidente interino, Ahmad al-Sharaa, no início deste mês, foi constituído o governo, que será chefiado por um secretário-geral.
Anunciado pouco antes do Eid-al-Fitr (celebração que encerra o mês sagrado muçulmano do Ramadão, com início na Síria, a 31 de março) o governo apresenta vários elementos novos, além dos ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, que se mantêm nos cargos. Já Anas Khattab, o novo ministro do Interior, dirigia, anteriormente, o departamento dos serviços secretos.
Vincando o significado do novo governo, Ahmad al-Sharaa considerou: “A formação de um novo governo, hoje, é uma declaração da nossa vontade conjunta de construir um novo Estado.”
O ministro da Defesa, Murhaf Abu Qasra, afirmou que o seu principal objetivo era desenvolver um exército profissional “do povo e para o povo”.
Entre os ministros recém-nomeados, encontra-se Hind Kabawat, ativista cristã que se opôs a al-Assad, desde o início do conflito, em março de 2011, nomeada ministra dos Assuntos Sociais e do Trabalho. Raed Saleh, que dirigiu a Defesa Civil, conhecida como Capacetes Brancos, foi nomeado ministro para as Catástrofes de Emergência. Além disso, Mohammed Terko, curdo sírio radicado em Damasco, foi nomeado ministro da Educação. E Mohammed al-Bashir, que tem sido o chefe do governo interino, desde a queda de Assad, foi nomeado ministro da Energia, para revitalizar os setores da eletricidade e do petróleo, fortemente afetados pelo conflito.
A principal missão do novo governo é trabalhar para pôr termo à guerra e restabelecer a estabilidade num país que, recentemente, viveu confrontos e atos de retaliação na região costeira, violência de que resultou na morte de mais de mil pessoas, na sua maioria alauitas e leais a al-Assad, que pertenciam ao grupo minoritário.
A maioria dos grupos insurretos que, atualmente, governam a Síria são predominantemente sunitas, mas a inclusão de indivíduos de seitas minoritárias – uma mulher e um alauita – assinala a mensagem deliberada de mudança de al-Sharaa para as nações ocidentais, que têm defendido o envolvimento das mulheres e das minorias na paisagem política da Síria.
A formação deste governo, religiosamente variado, parece a tentativa de persuadir os países ocidentais a reconsiderarem as duras sanções económicas que têm estado em vigor contra al-Assad, há mais de uma década, pois, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 90% da população síria vive abaixo do limiar da pobreza e milhões de pessoas sofrem reduções na ajuda alimentar, devido ao conflito em curso.
Poucas horas antes do anúncio do governo, o Departamento de Estado dos EUA emitiu um aviso aos cidadãos americanos sobre o elevado risco de ataques, no feriado de Eid-al-Fitr, indicando que tais ataques poderiam visar embaixadas, organizações internacionais e instituições públicas, em Damasco, com ameaças possivelmente provenientes de atores solitários, de grupos armados ou da utilização de dispositivos explosivos.
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Ahmad al-Sharaa estimava, em entrevista à rede de televisão saudita Al-Arabiya, nos fins de dezembro, que seriam necessários três anos para redigir a nova constituição, precisando que “quaisquer eleições válidas exigirão um recenseamento exaustivo da população”. Por isso, a realização de eleições no país poderá demorar até quatro anos e o presidente interino tenciona dissolver, numa cimeira de diálogo nacional, o Hayat Tahrir al-Sham (HTS), o grupo islamista, a que preside, que liderou a insurreição e que lidera a nova autoridade síria.
A entrevista surgiu quase um mês depois de o grupo ter desencadeado a insurreição relâmpago que derrubou o presidente al-Assad e pôs fim à revolta do país que se transformou em guerra civil, iniciada em 2011.
A dissolução do HTS ocorrerá depois de anos a funcionar como o grupo rebelde dominante no país, que detinha um enclave estratégico no Noroeste da Síria.
Além da necessidade de proceder a um exaustivo recenseamento, a realização de eleições demorará também, devido à necessidade de as diferentes forças sírias manterem um diálogo político, após cinco décadas de regime ditatorial da dinastia al-Assad (uma vez que se pretende que “a Constituição dure o maior tempo possível”), bem como à necessidade de reconstruir as infraestruturas do país devastado pela guerra.
Al-Sharaa dizia permanecer como líder de facto da Síria até 1 de março, data em que as diferentes fações da Síria deveriam dialogar, para delinear o futuro político do país e estabelecer um governo de transição que reúna o país dividido.
Já depois da deposição de al-Assad, continuaram os ataques israelitas armas e infraestruturas militares, entre os quais se destaca um ataque aéreo israelita nos arredores de Damasco, que matou, pelo menos, 11 pessoas (na sua maioria civis), de acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDH), sediado no Reino Unido, segundo o qual, teve como alvo um depósito de armas que pertencia às forças de al-Assad, perto da cidade industrial de Adra, a Nordeste da capital. Porém, Israel, que lançou centenas de ataques aéreos, em toda a Síria, desde que a revolta do país se transformou em guerra civil, em 2011, raramente os reconhece. Diz que os seus alvos são grupos apoiados pelo Irão que apoiaram al-Assad.
Ao invés das suas críticas ao Irão, principal aliado de al-Assad, al-Sharaa espera manter “relações estratégicas” com a Rússia, cuja força aérea desempenhou papel fundamental na manutenção de Assad no poder, durante mais de uma década de conflito.
O grupo liderado pelos Curdos, com o qual o líder do HTS fez um acordo histórico, como já foi referido, é o principal aliado de Washington, na Síria, onde está fortemente envolvido no combate às células adormecidas pertencentes ao denominado Estado Islâmico.
Os rebeldes sírios, apoiados pela Turquia, tendo entrado em confronto com as FDS, mesmo depois da insurreição, tomaram a cidade-chave de Manbij, dando a Ancara a esperança de criar uma zona tampão perto da sua fronteira no Norte da Síria.
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Ahmed al-Sharaa, líder do HTS, antigo grupo rebelde, que foi, em tempos, afiliado da Al-Qaeda, tem estado, de facto, no comando do país, como presidente interino, desde que as forças da oposição invadiram Damasco, no início do dia 8 de dezembro, na sequência da ofensiva-surpresa que durou menos de duas semanas.
O coronel Hassan Abdul Ghani, porta-voz militar do governo provisório, disse que al-Sharaa formaria um conselho legislativo temporário. A constituição vigente durante o regime de Bashar al-Assad foi cancelada e dissolvido o parlamento do país.
Al-Sharaa, que usava, anteriormente, o nome de guerra Abu Mohammed al-Jolani, num discurso em que envergava uniforme militar, disse que ele e os colegas enfrentavam uma “tarefa pesada e uma grande responsabilidade”, ao tentarem reconstruir um país devastado por mais de 13 anos de guerra civil. “Se o vencedor for arrogante, após a sua vitória, e esquecer a graça de Deus sobre ele, isso levá-lo-á à tirania”, afirmou.
As prioridades da administração interina são “preencher o vazio de poder, de forma legítima e legal”, e “manter a paz civil, procurando a justiça transitória e evitando ataques de vingança”.
O Qatar foi o primeiro país a reagir à nomeação de al-Sharaa, sustentando que se tratava de um passo em direção à “transferência pacífica de poder, através de um processo político abrangente”.
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A 9 de março, verificou-se que mais de mil pessoas foram mortas, após dois dias de confrontos entre as forças de segurança sírias e os partidários de Bashar al-Assad.
Vários assassinatos, por vingança, se sucederam, tornando-se um dos atos de violência mais mortíferos do país, em mais de uma década, de acordo com um grupo de monitorização da guerra.
O OSDH afirmou que, além dos quase 750 civis mortos, na sua maioria em tiroteios à queima-roupa, foram mortas 125 forças de segurança do governo e cerca de 150 militantes de grupos armados afiliados a Assad, acrescentando que a eletricidade e a água potável foram cortadas em grandes áreas em torno da cidade costeira ocidental de Latakia. Por sua vez, o governo afirmou que estava a responder a ataques das forças remanescentes de Assad e culpou “ações individuais” pela violência desenfreada.
Os Alauitas constituíram uma grande parte da base de apoio de Assad, durante décadas. Agora, residentes de aldeias e de cidades alauitas relataram que homens armados abriram fogo contra Alauitas nas ruas ou nos portões das suas casas, que muitas das suas casas terão sido saqueadas e incendiadas, em diferentes zonas, e que os ataques a Baniyas foram indiscriminados e tiveram como objetivo vingar-se da minoria alauita, pelas atrocidades cometidas pelo regime de Assad.
O incidente chocante suscitou reações e preocupações por parte de responsáveis ocidentais. Além das reações dos enviados especiais da Alemanha e da União Europeia (UE) no território, a França manifestou “a sua profunda preocupação” com tais atos de violência e condenou, de forma veemente, as atrocidades cometidas contra civis, por motivos religiosos, e contra prisioneiros.
A 10 de março, o presidente interino constituiu uma comissão para investigar as vagas de violência entre as forças de segurança e os Alauitas fiéis ao presidente deposto Bashar al-Assad.
O porta-voz do Ministério da Defesa, coronel Hassan Abdel-Ghani, informara, ainda no dia 9, que as forças de segurança restabeleceram o controlo da região e continuariam a perseguir os líderes da insurreição. Todavia, apesar de as autoridades terem apelado ao fim do choque entre os grupos islâmicos, os confrontos tornaram-se mortais e muitos civis foram mortos.
Segundo o OSDH, 745 civis foram mortos, na sua maioria, em tiroteios; foram mortos 125 membros das forças de segurança do governo e 148 militantes de grupos armados afiliados a Assad. Entretanto, o presidente interino apelava à unidade e prometia que o país faria a transição para um sistema que inclua o mosaico de grupos religiosos e étnicos da Síria, no âmbito de eleições justas, mas os céticos questionam se isso irá, realmente, acontecer.
Responsabilizando os remanescentes do antigo governo pelo surto de violência e alguns partidos estrangeiros que os apoiam, Al-Sharaa formou uma comissão composta, maioritariamente, por juízes, para investigar a violência, e exigiu a responsabilização de todos os que ferem civis e maltratam prisioneiros.
Marco Rubio, secretário de Estado norte-americano, instou as autoridades sírias a “responsabilizar os autores destes massacres” e garantiu que os EUA “estão ao lado das minorias religiosas e étnicas da Síria, incluindo as comunidades cristã, drusa, alauita e curda”.
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A Síria enfrenta enormes desafios, desde a necessidade de reconstrução de uma economia e de infraestruturas destruídas pela guerra, até ao estabelecimento de uma nova constituição e de mecanismos de justiça para os indivíduos acusados de crimes de guerra.
Embora os incidentes de retaliação e punição coletiva tenham sido menos generalizados do que se esperava, muitos membros das comunidades minoritárias da Síria – incluindo curdos, cristãos, drusos e membros da seita alauita de Assad – estão preocupados com o seu futuro e ainda não estão convencidos das promessas de governação inclusiva dos novos governantes.
Os organizadores da conferência de Damasco, iniciada a 25 de fevereiro, sob a égide do presidente interino, afirmaram que foram convidadas todas as comunidades da Síria. E as forças participantes (cerca de 600 pessoas) deram ideias para delinear o futuro do país. Entre os participantes, encontravam-se mulheres e membros de comunidades religiosas minoritárias. O objetivo era formular recomendações não vinculativas, relativamente à legislação provisória do país, em antecipação à elaboração da nova constituição e à formação do novo governo.
Os líderes islâmicos da Síria enfrentam também o desafio de transformar as antigas fações insurretas no único exército nacional, que deverá controlar todo o território.
Alguns grupos armados, principalmente as FDS, apoiadas pelos EUA e lideradas pelos Curdos, que dominam o Nordeste da Síria, recusaram aderir ao desarmamento e desmantelar as suas unidades. Assim, os dirigentes das FDS não foram convidados para a Conferência de Damasco e um grupo de partidos políticos maioritariamente curdos afirmou, em comunicado, que a conferência “não reflete a realidade das componentes sírias”.
Para lá das tensões internas, as novas autoridades sírias enfrentam ameaças externas. Por exemplo, O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, afirmou que o seu país não permitirá que o novo exército sírio ou o HTS, “entrem na zona a Sul de Damasco”. O objetivo de Israel é proteger os Drusos, minoria religiosa que vive no Sul da Síria e nos Montes Golã, em Israel.
Após a queda de al-Assad, as forças israelitas deslocaram-se para o território, no Sul da Síria, adjacente aos Montes Golã, anexados por Israel, e deixaram claro que tencionam aí permanecer indefinidamente. Porém, os novos governantes sírios não responderam, diretamente, ao aviso de Netanyahu, embora al-Sharaa tenha afirmado, na conferência de Damasco, que a Síria deve “confrontar, firmemente, qualquer pessoa que queira interferir com a nossa segurança e unidade”.
O ministro interino dos Negócios Estrangeiros, Asaad al-Shibani, afirmou, por sua vez, que as novas autoridades sírias “não aceitarão qualquer violação da soberania ou da independência” das suas decisões nacionais”. E elogiou o esforço do governo para restabelecer os laços diplomáticos com os países árabes e ocidentais e para levantar as sanções impostas no regime de Assad.
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Enfim, apesar das disputas internas e externas, já não é sem tempo que a martirizada Síria parece retomar caminhos de futuro, para o que precisa de apoio da comunidade internacional.

2025.03.30 – Louro de Carvalho


A abstinência e o jejum eclesiais como práticas de penitência

 
Fazer penitência não consiste, basicamente, em fazer mortificações corporais, mas em arrepender-se dos pecados e disponibilizar-se à conversão (metanoia) a uma vida sempre melhor, do ponto de vista espiritual. É este o sentido do pregão: “Se não fizerdes penitência [se não vos arrependerdes], todos vós perecereis” (Lc 13,15).    
Contudo, as ditas práticas são admissíveis e recomendáveis para induzir o arrependimento, em conformidade com a fé no Evangelho, a que somos chamados, e com a conversão permanente (revisão de vida), que se torna imperativa para o crente.
A Quaresma, anualmente celebrada, é um caminho de conversão e de graça, que reponde às exigências da fé, alicerça a esperança e promove a caridade na justiça.
Nas lições de catequese, aprendemos que o 4.º preceito da Igreja é “guardar abstinência e jejuar nos dias determinados pela Igreja”. Por sua vez, o Catecismo da Igreja Católica (CIC) explica, no n.º 2040, que o sentido do preceito é assegurar “os dias de ascese e de penitência que nos preparam para as festas litúrgicas e contribuem para nos fazer adquirir domínio sobre os nossos instintos e a liberdade do coração”.
Em concreto, a Igreja estabelece o jejum e a abstinência.
Código de Direito Canónico (CDC), no cânon 1251, estipula que se devem guardar “a abstinência e o jejum na Quarta-feira de Cinzas”, que dá início à Quaresma, “e na sexta-feira da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”, que precede a solenidade do Domingo de Páscoa. Atualmente, são esses os únicos dois dias em que os fiéis estão obrigados a guardar o jejum eclesial.
O jejum eclesial (em Latim, era o adjetivo “ieiunus, a, um”: vazio, magro, sem comer) que se deve observar, nos dois dias assinalados (antes, eram mais), consiste em tomar uma única refeição completa até a saciedade (o que não significa empanturrar-se, mas comer o suficiente, segundo a própria condição). Além dessa refeição única, que pode ser feita à hora do almoço, do jantar ou no pequeno-almoço, a disciplina tradicional da Igreja reconhece a possibilidade de se tomarem duas outras refeições, ligeiras e modestas – colações, tapas ou parvas (pequenas) –ao longo do dia, que devem equivaler a um pequeno lanche. Embora possa ser feito a qualquer hora, é costume, inclusive por razões de conveniência, reservar o primeiro desses lanches para o desjejum da manhã; e, à hora do jantar, é possível tomar o segundo, como uma comida mais robusta, mas longe de saciar.
Este é o mínimo que a Igreja nos pede. Nada impede os que, por terem boa saúde ou se sentirem mais generosos, de se absterem, por completo, de toda a comida ou de, à hora das refeições, se alimentarem somente de pão e água.
Porém, o CDC, no cânon 1252, estabelece que “à lei do jejum estão sujeitos todos os maiores de idade”, isto é, a partir dos 18 anos completos, até terem começado os sessenta anos”, isto é, até terem completado os 59 anos. Estão dispensados da observância do jejum, além dos menores de idade e dos maiores de 59 anos, as pessoas que têm alguma dificuldade de saúde ou os que têm como ofício alguma forma de trabalho braçal. “Todavia”, continua o mesmo cânon, “os pastores de almas e os pais procurem que, mesmo os que, por motivo de idade menor não estão obrigados à lei da abstinência e do jejum, sejam formados no sentido genuíno da penitência”.
Quanto à abstinência (em Latim, “abstinentia, ae: ação de se abster – do verbo “abstinere –, temperança, domínio dos apetites) é o ato de se abster ou de se privar de algo), à qual estão obrigados todos os que completaram 14 anos, a Igreja prescreve que são dias de penitência todas as sextas-feiras do ano, dias em que, salvo o caso de coincidirem com alguma solenidade, os fiéis estão obrigados a abster-nos de carne “ou de outro alimento segundo as determinações da Conferência episcopal” (cânon 1251) de cada país: “A conferência episcopal pode determinar, mais pormenorizadamente, a observância do jejum e da abstinência, bem como substituir outras formas de penitência, sobretudo obras de caridade e exercícios de piedade, no todo ou em parte, pela abstinência ou jejum” (cânon 1253).
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Enquanto, o jejum consiste em reduzir a quantidade de alimentos consumidos durante o dia, a abstinência não diz respeito à quantidade de comida, mas ao seu tipo, significando não consumir carne de animais de sangue quente (bovinos, suínos, aves, cordeiro, etc.). No entanto, é permitido o consumo de peixe, frutos do mar, ovos e laticínios.
E é aqui que bate o ponto. A evolução dos tempos permitiu que os alimentos considerados menos nutritivos, menos apetitosos e menos caros, se tornassem mais apetitosos, mais caros e tão nutritivos como as carnes. Por isso, a disciplina eclesial deixou de se focar na abstinência das carnes, mas a sugerir uma atitude autoausteritária, passando, por exemplo, por uma prática espiritual (missa, rosário, leitura da Bíblia, meditação), uma prática de ascese (não tomar café, não fumar, não ver uma novela ou um filme, prescindir de um prato apetitoso, etc.), por uma poupança em favores de pobres (pessoas ou obras de beneficência) ou por outro ato de solidariedade material ou social. Até se vulgarizou o uso, nas paróquias e em outras comunidades eclesiais, da recolha de fundos para o contributo penitencia, em favor de necessitados do bairro, das Missões, das obras diocesanas ou de obras de beneficência.
É óbvio que estas privações impendem sobre as pessoas em condições normais de saúde e de vida.
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Em termos históricos, é de referir que o jejum e a abstinência já vêm de outras culturas e religiões, como contraponto ao excesso. E os cristãos têm essa herança do Antigo Testamento. Porém, já os profetas e os salmistas censuravam estes ritos, enquanto vazios de sentido e de fingimento, vindo Deus a pedir o jejum do coração, o jejum dos pecados e das situações de opressão e de repressão dos mais pobres e dos mais fracos, bem como de todas as formas de discriminação, nomeadamente, de doentes, de servos, de estrangeiros, de mulheres e de crianças. 
Com a estabilização da vida eclesial e, sobretudo, numa Europa de contrastes geográficos e sociais, a abstinência consignada na privação de carnes, em prol do peixe, tinha um efeito social e económico, com vista ao esbatimento mínimo das desigualdades. Os povos do interior, supostamente, mais ricos e mais nutridos, eram instados a fazer chegar as carnes dos animais cujo habitat era terrestre aos povos do litoral, mais pobres; e os povos do litoral, a fazer chegar o peixe, conservado pela salga, aos povos do interior.
Assim, às segundas-feiras, às quartas-feiras e às sextas-feiras, comia-se peixe; às terças-feiras, às quintas-feiras e aos sábados, comia-se carne. E aos domingos e em outos dias de festa, não havia estas limitações, o que ainda hoje sucede em dias festivos.   
Tudo isto se alterou com a perda do sentido de espiritualidade do comum dos fiéis, cujo fito era desobrigarem-se, pagando, se tal fosse exigido.
Por outro lado, as Cruzadas medievais e o espírito de cruzada na expansão dos povos ibéricos, sob a bênção da hierarquia, deram cabo do verdadeiro sentido da penitência. 
“Bula da Cruzada” ou “Bula da Santa Cruzada” foi a designação dada às sucessivas concessões de indulgências aos fiéis da Igreja Católica, em Portugal e nas suas possessões, que contribuíssem com os seus bens para fins considerados como de interesse para a expansão do catolicismo.
Inicialmente criada no tempo da Reconquista Cristã no território português, concedia indulgências aos fiéis, mediante compra, a quem ajudasse, com os seus bens, na luta contra os Sarracenos, nos mesmos termos que eram concedidas a quem apoiasse as Cruzadas na Terra Santa.
A sua aquisição implicava a dispensa de certos rituais católicos, como jejuns e abstinências. A sua normalização aproximou-se de um certo mercadejar da religião.  
Terminada a re­con­quis­ta, a concessão de indulgências contra pagamento para a Bula da Cruzada manteve-se, passando os rendimentos obtidos a ser aplicados na ma­nu­ten­ção das ordens militares religiosas, nas conquistas ultramarinas e no resgate de cativos.
A Bula da Cruzada foi extinta a 31 de dezembro de 1914, pelo Papa Bento XV, que a substituiu pelos Indultos Pontifícios, ligados à disciplina penitencial e cujos rendimentos revertiam para a fundação e manutenção de seminários. Estes indultos foram extintos em 1966, com a disciplina penitencial decretada pela Constituição Apostólica “Poenitemini”, do Papa São Paulo VI.
A bula (em Latim, “bulla”, com o significado de bo­lha ou de bola) era um selo de metal usado nas chancelarias dos Estados, para au­ten­ticar os documentos mais solenes. Hou­ve bulas de ouro e de prata. A chan­celaria da Santa Sé passou a usar bu­l­as de chum­bo em forma de medalhão, desde o século VI. Depois, o nome de bula passou para o docu­men­to assim autenticado.
Hoje, a Santa Sé produz vários tipos de documentos pontifícios (distintos dos documentos conciliares: constituições, decretos e declarações); constituições apostólicas, cartas apostólicas, cartas, encíclicas, exortações apostólicas, bulas, motu proprio, decretos, quirógrafos, declarações, instruções, etc.    
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É importante lembrar que todas as sextas-feiras do ano são dias de penitência,
O jejum é obrigatório para todos os católicos entre 18 e 59 anos. A abstinência é obrigatória para todos os católicos, a partir dos 14 anos. No entanto, existem exceções: estão isentos os doentes, as mulheres grávidas, as mães que amamentam, os que realizam trabalhos fisicamente exigentes ou que seguem dietas especiais por motivos de saúde.
O jejum e a abstinência não podem ser apenas regras externas ou práticas vazias, pois têm profundo significado espiritual. Consistem em atos de penitência e de reparação e são exercícios de autocontrolo.
Jesus ensina que certos males só podem ser vencidos “com oração e jejum” (Mc 9,29). Quando jejuamos, reconhecemos a nossa fragilidade e unimo-nos à Cruz de Cristo, oferecendo os nossos pequenos sacrifícios em reparação por nossos pecados e pelos do Mundo.
Vivemos numa sociedade marcada pelo consumismo e pela busca constante do prazer imediato. O jejum e a abstinência ajudam a fortalecer a vontade, a aprender a dizer “não” a nós mesmos e a praticar a virtude da temperança.
O jejum e a abstinência devem comportar um gesto de solidariedade para com os pobres. A Igreja sempre viu o jejum como oportunidade para a caridade na justiça. São Leão Magno dizia: “Um jejum sem misericórdia é apenas uma aparência de penitência.” Aquilo que economizamos, ao jejuar, pode ser partilhado com os pobres.
Quando nos preparamos para uma grande celebração, fazemos esforços para que tudo seja perfeito. Da mesma forma, a Quaresma é tempo de preparação para a grande celebração da Ressurreição do Senhor. Por isso, a abstinência quaresmal deve ser um meio de preparar a Páscoa.
O jejum e a abstinência devem ser praticados com espírito renovado. Não se devem fazer por obrigação, pois não se trata de seguir, mecanicamente, uma regra, mas de a viver com amor.
Devem ser acompanhados com oração. Um jejum sem oração é uma dieta. Para que seja verdadeira experiência de crescimento espiritual, deve ser acompanhado por momentos de oração.
Podem ser oferecidos por uma intenção especial. Cada jejum e cada abstinência podem ser oferecidos pela conversão de uma pessoa, pela paz no Mundo ou por uma necessidade especial.
Deve evitar-se a hipocrisia e as lamentações. Jesus adverte em Mateus 6,16-18: “Quando jejuardes, não fiqueis com o rosto triste como os hipócritas. Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os outros não percebam que estás jejuando, mas apenas teu Pai, que vê o que está oculto.”
Podemos usar o que economizamos em alimentos para ajudar alguém necessitado, ou seja, unir-se à caridade eclesial, que deve enformar a justiça, e não substituí-la.
Enfim, a oração, a privação de comida ou de outro prazer lícito e a esmola fazem-nos renascer em Cristo. O jejum e a abstinência são disciplinas que, bem vividas, podem transformar o coração. Ajudam a afastar o pecado, a fortalecer o relacionamento com Deus e a preparar para a alegria da Ressurreição.
Santo Agostinho exortava: “Mata, em ti, o que é mau, e o que é bom ressuscitará.”
Não podemos limitar-nos ao jejum de alimentos, mas devemos fazer o de maus hábitos, de julgamentos desnecessários, de palavras ofensivas e de tudo o que nos afasta de Deus. E, em seu lugar, preenchamo-nos com oração, com amor, com justiça e com caridade.
Para tanto, há que evitar a simplificação, ou seja, fazer o mínimo, apenas para ter a sensação do cumprimento. Com efeito, a simplificação pode ter efeito perverso. Por exemplo, antigamente servia-se o cálice com vinho e água (embora com menos água do que vinho), à boa maneira judaica; com o rolar do tempo, reduziu-se a porção de água a uma gota através de uma minúscula colherinha.
Via-se nessa mistura a união da divindade de Cristo com a nossa humanidade, com o contrassenso de Ele descer na abundância da sua divindade e de Lhe oferecermos nós apenas um avo da nossa humanidade.     
Também há casos de ampliação indevida. Por exemplo, consta que se generalizou a veneração de um dente (relíquia) de São Januário para conforto das parturientes na dor. Um Papa, intrigado com a suposta abundância de dentes do santo, mandou proceder à sua recolha. Recolheu-se um alqueire de dentes de São Januário, em vez dos 32. Ainda, há dias um jornal noticiava o negócio com relíquias. E são de duvidosa autenticidade muitos “santo lenho” que andam por aí. Aliás, Eça de Queirós satirizou o negócio das relíquias com o romance “A Relíquia”.   
É ainda de censurar a comercialização da religião, por exemplo, pagando em compensação pela falta de penitência e pagando para que outros satisfaçam promessas que nós fizemos.
São contrafações que não invalidam a religião, mas que lhe causam prejuízo, a nível da credibilidade. O conteúdo da fé não está aí.  

2025.03.29 – Louro de Carvalho


sábado, 29 de março de 2025

Está em causa a disputa geoestratégica do Ártico


 
A apetência do presidente Donald Trump, em relação à Gronelândia, não é mais do que um modo desajeitado de reconhecer que os Estados Unidos da América (EUA) chegaram atrasados ao palco da disputa das riquezas do Ártico e à consecução de uma posição territorial muito importante, em termos geoestratégicos, até por não disporem de uma longa zona costeira sobre aquele oceano glacial. Com efeito, apenas confinam com ele através do Alasca.    
Com o degelo progressivo causado pelo aquecimento global, a região ártica apresenta novas possibilidades, como rotas de transporte terrestres, marítimas e áreas, além de imensos recursos minerais a explorar, o que lhe conferiu importância geopolítica, numa disputa que envolve potências como a Rússia, os EUA e a China, bem como outros atores regionais, com menor influência, como o Canadá e os países escandinavos.
Em 2009 a Rússia fincou uma bandeira de titânio no solo oceânico do Ártico. O gesto integrou uma expedição científica para solicitar direitos sobre o leito do Ártico, em conformidade com a legislação marítima internacional, mas foi entendido como demonstração de força e de posicionamento geopolítico no extremo norte do planeta.
A Rússia vem a desenvolver uma via marítima pelo seu mar territorial do Ártico para ligar a Europa e a Ásia. O crescente degelo, resultante do aquecimento global, viabiliza tal investimento, com a vantagem de criar a capacidade de suportar um número maior de navios do que o Mar Vermelho ou o Canal do Panamá. A costa ártica russa tem 25 portos e o país dispõe de quase 50 navios quebra-gelos, alguns dos quais movidos a energia nuclear, de que dependem, por ora, os deslocamentos. E a Rússia é o único país do Mundo com embarcação que tem a energia nuclear como propulsor. Os demais países dispõem navios quebra-gelos convencionais de propulsão a gasóleo. Ora, com o seu projeto de exploração económica, a Rússia, aproveitando a geografia que lhe é favorável (tem a maior costa banhada pelo Oceano Ártico), vem lançando navios para a exploração dos recursos naturais.
A fim de proteger estas atividades, posicionou-se estrategicamente, antes dos rivais, implantou 21 bases militares na região e posicionou submarinos nucleares de ataque. É o país com maior capacidade militar na região, o que lhe confere relevância geoestratégica. Com saídas para o mar a Sul (Mar Negro) e a Leste (Mar Báltico) em zonas mais disputadas e sem acesso direto aos oceanos Atlântico e Índico, o Ártico significa, para a estratégia russa, importante área de projeção do poder naval e elemento de garantia da segurança.
Para o desenvolvimento da “Northern Sea Route” (Rota Marítima do Norte), a Rússia tem parceria com a China, interessada na viabilização desta rota. Os Chineses têm tanto interesse neste novo corredor como em fornecer insumos e equipamentos para a infraestrutura necessária, como navios quebra-gelos, navios de escolta, satélites, portos, etc. E podem prover seguros aos navios russos, operações impossibilitadas pelas sanções ocidentais a Moscovo, pela invasão da Ucrânia. Por isso, os Chineses serão compradores permanentes dos serviços da infraestrutura russa. É certo que os Europeus, os Japoneses, os Coreanos e outras nações asiáticas serão clientes desta rota, mas os Chineses serão os principais.
A China denomina a sua estratégia para o Ártico como parte da “Belt and Road Initiative” ou “Cinturão e Rota da Seda”, no caso “Rota da Seda do Ártico”, expressão que cita no seu último “livro branco”, com as diretrizes estratégicas. A viagem por esta via demora 40% menos tempo do que pelo Canal de Suez, no Egito, um ganho logístico de tempo e grande economia de combustível. Na verdade, as opções de rotas são poucas e com potenciais problemas. O Canal de Suez está saturado e está localizado no Médio Oriente, área instável, como se vê no conflito em Gaza e com os ataques dos Houthis no Mar Vermelho; a Rota do Noroeste passa por águas reivindicadas pelo Canadá e sob influência estratégica direta dos EUA; e o Canal do Panamá serve para o comércio com o continente americano.
A região é muito rica em recursos naturais. De acordo com o US Geological Survey, o serviço geológico do governo dos EUA, o Ártico contém cerca de 90 biliões de barris de petróleo, 13% das reservas globais e cerca de 44 biliões de barris líquidos de gás natural. Assim, a China tem grande interesse tanto na rota do Ártico como na exploração dos recursos naturais. Por isso, em associação com a Rússia, os Chineses já investiram 90 biliões de dólares em projetos ligados a combustíveis fósseis e minerais.
Num movimento unilateral, os EUA reivindicaram, em dezembro de 2023, a expansão da sua plataforma oceânica continental em mais de um milhão de quilómetros quadrados no Ártico e no Mar de Bering. Washington quer assegurar direitos sobre o leito do mar e sobre os seus recursos. Porém, o não reconhecimento internacional destas demandas e a inclusão da Finlândia e da Suécia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), juntando-se aos demais países nórdicos a Noruega, a Islândia e a Dinamarca (que tem soberania sobre a Groelândia) na organização militar liderada pelos EUA, apontam para o risco de militarização da região.
As disputas do Ártico deviam ser arbitradas pela Comissão de Limites da Plataforma Continental, da Organização das Nações Unidas (ONU). Porém, os EUA não ratificaram a Convenção das Nações Unidas para Direito do Mar (UNCLOS). A falta de acordos entre os participantes deste tabuleiro geopolítico leva a preocupações ambientais, dada a sensibilidade dos ecossistemas da região. A exploração de petróleo, de gás e de outros minerais sem limites claros e regras para operacionalização, aceites por todos os participantes, comporta sérios riscos para uma fauna bastante sensível, dados os graves efeitos do degelo da calota polar.
Em relação à Rússia e também à China (não banhada por esse oceano, mas com importante presença na região, inclusive com exercícios conjuntos da sua marinha com a marinha russa), os EUA estão bastante atrasados. E a persistente firmeza das reivindicações de Donald Trump, sem qualquer proposta de mediação ou de negociação, tendem a tornar, nos próximos anos, o Ártico uma região de forte disputa geopolítica entre as grandes potências.
A elevação da aliança económica entre a Rússia e a China a patamares superiores talvez seja o grande efeito colateral do conflito na Ucrânia, o qual, além de acelerar a generalizada desconfiança no dólar como moeda de reserva internacional e de modificar a geografia económica do Mundo com a ampliação de sistemas locais de pagamento baseado em moedas locais, traz outra repercussão, a plena integração dos territórios económicos russo e chinês na União Eurásica, que terá o poder de influenciar o futuro sistémico com a mesma força mostrada pela unificação do território económico dos EUA, no último quartel do século XIX.
Não se trata do capitalismo como se desenvolveu no século XX, nem do socialismo que redundou, primeiro, numa economia continental unificada, no final da primeira década do século XXI, na China, e no lançamento da Iniciativa Cinturão e Rota, depois. A primeira grande consequência do processo está na integração movida por centenas de biliões de dólares em centenas de projetos, em dezenas de áreas, entre as economias chinesa e russa. E está para ser aprofundado um novo capítulo desta cooperação, com o desenvolvimento de uma extensão da Iniciativa Cinturão e Rota, passando pelo desenvolvimento de uma rota, não só comercial, que inclui o Oceano Glacial Ártico, com repercussões nada pequenas.  
É de salientar que, se o aquecimento global é questão humana existencial, também abre possibilidades de cooperação entre a China e a Rússia. Por exemplo, a Sibéria poderá pôr limites no acesso brasileiro ao mercado de alimentos na China, tal como a navegação e a exploração no Ártico abrem grandes possibilidades, por motivos diferentes, aos Chineses e aos Russos.
Aos Chineses, a abertura de uma rota marítima pela “Passagem do Noroeste”, bem como pela Rota Marítima do Norte, permitirá que as suas empresas economizem tempo e custos de transação no transporte de mercadorias para o Ocidente. O aquecimento das águas do Ártico transformará a Rota Marítima do Norte numa alternativa à maior rota transcontinental que atravessa os mares meridionais da Eurásia, bem como a África, pelo Canal de Suez. Por exemplo, a passagem de um navio de carga, de Xangai a Hamburgo, pela Rota Marítima do Norte, será 2800 milhas mais curta do que a viagem pelo Canal de Suez. Se a China encontrar uma rota de transportes mais segura do que as que passam pelo Oceano Índico e pelo Mar do Sul da China, poderá obter mais acesso a recursos energéticos vitais para a continuidade do seu processo de desenvolvimento. Da mesma forma, os Russos encontrarão, nos Chineses, as possibilidades de financiamento e de cooperação negadas, hoje, pelo Ocidente.
Também é de salientar que o derretimento do permafrost abriu a verdadeira corrida, por parte dos países árticos, pela exploração dos enormes depósitos identificados de petróleo e de gás natural, bem com dos diamantes, da platina, do chumbo, do manganês, do níquel, do ferro, do urânio, do cobre, do lítio, das pedras preciosas e de muitos outros recursos, incluindo mais uma zona de piscicultura, na região.
Trata-se de mais uma fronteira aberta à ação política e militar por parte de uma série de atores. Porém, o impacto da cooperação entre Rússia e China na construção desta “Rota do Norte”, além de ser parte da expansão da União Eurásica – mais um sinal da mudança de eixo do poder mundial do Atlântico Norte à Ásia –, gera tensões como a recente negativa de países, como a Islândia e a Dinamarca, por cooperação chinesa em temas conexos com o Ártico, mas a China não desiste da aproximação com esses países: planeia uma investida política sobre a Islândia para a construção de dois portos, assim como um porto na Noruega (Kirkenes), como parte da roadway initiative.
Temos, pois, de passar a ocupar-nos mais com esta região. O Mundo está a mudar mais rápido do que se imaginava e a exploração do Ártico pela China é um grande sinal do processo.
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Depois deste excursus geopolítico, será oportuno ver o que se passa com a ciência, que espevita a política, mas que pode ser por ela condicionada.  
O International Arctic Science Committee (IASC) é uma organização científica internacional não-governamental. Os Artigos Fundadores comprometeram o IASC na missão de encorajar e de facilitar a cooperação em todos os aspetos da pesquisa do Ártico, em todos os países envolvidos na pesquisa do Ártico e de todas as áreas da região do Ártico. No geral, o IASC promove e apoia pesquisas interdisciplinares de ponta, para promover maior compreensão científica da região e o seu papel na Terra. E, em vez de definir limites humanos e ambientais, tenta transpô-los.
O IASC está comprometido em reconhecer que o conhecimento tradicional, o conhecimento indígena e o conhecimento científico “ocidental” são sistemas de conhecimento coiguais e complementares, podendo e devendo, por isso, enformar o trabalho do IASC.  
Para atingir a missão, o IASC: inicia, coordena e promove atividades científicas a nível circum-ártico ou internacional; fornece mecanismos e instrumentos de apoio ao desenvolvimento científico; fornece aconselhamento científico objetivo e independente, sobre questões científicas no Ártico, e comunica informações científicas ao público; procura garantir que sejam salvaguardados, livremente intercambiáveis ​​e acessíveis dados e informações científicas do Ártico; promove o acesso internacional a todas as áreas geográficas e o compartilhamento de conhecimento, de logística e de outros recursos; provê à liberdade e à conduta ética da ciência; promove e envolve a próxima geração de cientistas a trabalhar no Ártico; e promove a cooperação polar, por meio da interação com organizações científicas relevantes.
O IASC foi fundado, em 1990, por representantes de organizações científicas nacionais dos oito países do Ártico: o Canadá, a Dinamarca, a Finlândia, a Islândia, a Noruega, a Rússia (naquela época União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), a Suécia e os EUA, que formam o Conselho do Ártico. Os Artigos Fundadores do IASC foram assinados em Resolute Bay, no Canadá.
Ao longo dos anos, o IASC evoluiu para a principal organização científica internacional do Norte e os seus membros incluem, hoje, 24 países envolvidos em todos os aspetos da pesquisa do Ártico, nomeadamente, 16 países não árticos (a Áustria, a Bélgica, a China, a Chéquia, a França, a Alemanha, a Índia, a Itália, o Japão, a Holanda, a Polónia, Portugal, a Coreia do Sul, a Espanha, a Suíça e o Reino Unido).
No contexto do 25.º aniversário, em 2015, o IASC publicou um histórico abrangente abrangendo as primeiras reuniões de planeamento, no final da década de 1980: Rogne, O., Rachold, V., Hacquebord, L., Corell, R. (2015) “IASC após 25 anos – Um quarto de século de cooperação internacional em pesquisa no Ártico. Comité Internacional de Ciência do Ártico”, 125 páginas.
O IASC realiza as suas principais atividades, através de cinco grupos de trabalho, organizados com base em diferentes temas: Terrestre, Criosfera, Marinho, Humano e Social e Atmosfera. Além disso, dá apoio especial a projetos que promovam a colaboração entre os grupos de trabalho.
O seu escritório fica instalado no Centro de Investigação da Islândia (Rannis), em Borgur, um edifício de investigação e inovação nas dependências da Universidade de Akureyri, onde existem algumas organizações especializadas em investigação, em monitorização e em divulgação de informações sobre questões árticas, constituindo uma forte comunidade ártica sob o mesmo teto, que pode criar várias formas de sinergia com o escritório do IASC.
As atividades do escritório do IASC na Islândia (o coração do Ártico) podem trazer, entre outros, os seguintes benefícios: dar à comunidade científica islandesa acesso à rede mais poderosa de cientistas da região nórdica, aumentando as possibilidades de os cientistas islandeses trabalharem com colegas estrangeiros, no âmbito de conferências e de projetos de investigação; aumentar o interesse de cientistas de outras nações na cooperação científica com a Islândia; fortalecer as atividades do Ártico, em Akureyri; e facilitar o estabelecimento de mais centros de pesquisa internacionais no país.
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Enfim, uma região que, pela abundância e pela diversidade dos seus recursos, deveria constituir uma poderosa mais-valia para a riqueza do Mundo, a distribuir equitativamente, e para o progresso do conhecimento, está prestes a transformar-se em palco de disputa dos grandes, ficando à mercê de quem disponha de meios mais abundantes e poderosos e podendo gerar guerras, bem como novos ataques à Natureza.
2025.03.29 – Louro de Carvalho