O 28 de Setembro foi a primeira tentativa de vulto para
conter a revolução abrilina e a democratização. Constituiu-se como mais uma
investida do Presidente da República, general António Sebastião Ribeiro de
Spínola, para tomar o poder, conjugando uma manifestação de rua com
movimentações militares e a conspiração palaciana para a demissão do primeiro-ministro,
Vasco Gonçalves, a dissolução da Comissão Coordenadora (CC) do Movimento das
Forças Armadas (MFA), a declaração de estado de sítio e o reforço dos poderes
presidenciais.
Logo na noite de 25 de abril, Spínola tentou
condicionar a dinâmica revolucionária dos “capitães de abril”, tentando que
regressassem a quartéis e liderando ele o poder que “herdara” de Marcelo Caetano.
Não o conseguindo, levou os capitães a tolerar-lhe a Presidência da Junta de Salvação
Nacional (JSN) e a Presidência da República, que a CC do MFA queria para o general
Francisco da Costa Gomes, que ficou chefe do Estado-Maior Geral das Forças
Armadas (EMGFA).
Em crescente isolamento, ante o avanço da
descolonização e o reconhecimento das independências, o poder do MFA e dos
partidos de esquerda, a vaga de ações e lutas dos movimentos sociais e o que se
constituía como um processo revolucionário, Spínola e os setores afetos, organizam
uma manifestação da alegada “maioria silenciosa”, de apoio ao Presidente da
República que legitimasse o reforço dos poderes presidenciais e a declaração de
estado de sítio. Era uma ação global, com ramificações em Angola e Moçambique,
passível de degenerar em violência e até em golpe de Estado. O objetivo era a
contenção do processo revolucionário, pela viragem à direita e pelo recuo das
liberdades, bem como pelo controlo da descolonização.
A
democratização preconizada por Spínola, assente na limitação de direitos e liberdades,
era descrita como “democracia musculada”, “marcelismo sem Marcelo” ou “presidencialismo
militar”. Enfim, a negação do que movimentos sociais e o MFA preconizavam. Spínola
advogava uma “via federal-presidencialista” sob controlo político da grande
burguesia, assente em “táticas golpistas” e em “laivos de nacionalismo militar”,
com uma centralidade inequívoca o neocolonialismo de tipo federalista. Porém, incapaz
de evitar ou de retardar a descolonização, Spínola assinou, constrangido, a Lei
n.º 7/74, de 27 de julho, que reconhecia o direito à independência das colónias.
Não obstante, não desistiu de fomentar organizações africanas, de fazer visitas
aos quartéis militares e de preconizar soluções assentes na autodeterminação e
nos referendos. Assim, ao longo de cinco meses, tentou, de formas diferentes, garantir,
para si, o controlo do poder político-militar, reforçando os seus poderes e
aniquilar a CC do MFA.
O braço-de-ferro nos dias imediatos ao golpe de 25 de abril, os
embates de 8 e 13 de junho na Manutenção Militar, a crise Palma Carlos, a
crise de agosto e os pelos à “maioria
silenciosa” foram os cinco momentos
de pressão de Spínola sobre o MFA.
Estes assaltos ao poder são complementados por discursos catastróficos
da “teoria da terra queimada”, em que Spínola prepara o terreno para o apelo à “maioria
silenciosa”.
A crise Palma Carlos, que era o primeiro-ministro (PM) do I Governo Provisório,
suscitada pela situação económica caótica descrita por Vasco Vieira de Almeida,
ignorando as consequências de qualquer Processo revolucionário, consistia numa alteração
ao programa do MFA, sugerida por Sá Carneiro: legitimar Spínola como Presidente
da República por eleição popular, com base numa lei constitucional “ad hoc”, constituir
um governo de iniciativa presidencial, com ministros escolhidos pelo PM e não
pelo PR, que preparava as eleições para a Assembleia Constituinte e, depois,
para o Parlamento. A CC do MFA não
aceitou a alteração, Palma Carlos demitiu-se e Vasco Gonçalves assume-se,
nomeado por Spínola, como PM do II Governo Provisório.
***
O
projeto spinolista esbarra num dos profundos fenómenos abrilinos: a explosão
revolucionária marcada por mobilizações coletivas, pelas práticas de democracia
direta e pela militância de base. Em maio explode a onda de greves, de
ocupações e de paralisações de empresas, com assembleias e manifestações
reivindicativas dos direitos e liberdades fundamentais e do fim da guerra colonial.
Em
Setúbal, em Lisboa ou no Porto, o movimento de moradores auto-organiza-se em
comissões e arranca o movimento de ocupações de casas. Nos bairros urbanos e
nos campos do Alentejo, empresas, escolas e universidades, órgãos locais e
centrais do Estado e até nas Forças Armadas, estabelecem-se formas de
organização popular e de luta reivindicativa.
Entre
abril e setembro, a derrota spinolista é determinada pela dinâmica
revolucionária. Em torno do general foram-se um campo político conservador, mas
heterogéneo, com várias tendências de direita e de extrema-direita:
monárquicos, católicos, aristocratas, gente da elite económica. Define-se mais
pela oposição ao processo revolucionário, de democratização e de
descolonização, do que pela afinidade ideológica. A questão africana é central,
nomeadamente, a manutenção de uma ligação entre Portugal e as (ainda) colónias.
Embora defendendo vias integristas ou independências brancas, muitos
resignam-se ao federalismo spinolista.
A
explosão de partidos no pós-25 de Abril passará também pelo centro-direita e
pela extrema-direita, alguns com ligações a Spínola. Nos primeiros dias de maio, surgem o Partido
Trabalhista Democrático Português (PTDP), apoiante da manifestação da “maioria
silenciosa” e com ligações a grupos colonialistas em África, e o Partido
Cristão Social-Democrata (PCSD), que se fundirá com o Partido Democrático
Popular Cristão (PDPC).
A 4 de maio, surge o Movimento
Federalista Português (MFP), depois, denominado Partido do Progresso (PP); e,
dias depois, o Movimento Popular Português (MPP). No dia 10,
surgia o Partido da Democracia Cristã (PDC). Dias depois, foi a vez do Partido
Popular Monárquico (PPM). E, a 28
de maio é fundado Partido Liberal
(PL), o grande coordenador da manifestação.
No dia 15 de
junho, surge o Partido Social-Democrata Português (PSDP) e, a 24, o Partido
Nacionalista Português (PNP), extinto dias antes do 28 de Setembro. Sob o signo do antimarxismo, PL, PTDP e PP constituem, a 27 de agosto, a
Frente Democrática Unida (FDU).
PDC, Partido Cristão Social (PCS),
Partido Social-Democrático Independente (PSDI) e elementos do PSDP formam a
Aliança dos Portugueses para o Progresso Social, frente de direita de apoio ao
Presidente da República, apesar das reservas que Spínola lhes suscitava.
A 10 de
junho, Spínola é eleito presidente honorário do PTDP e realizam-se, em Lisboa e
no Porto, manifestações das direitas em defesa do federalismo. E, na sequência da
“crise Palma Carlos”, MFP, PTDP, PL e MPP sustentam que “a grande maioria do
País tem sido silenciada”, e são recebidos por Spínola a 10 de julho.
Jornais da
imprensa regional, como Bandarra, Economia e Finanças, Tribuna
Popular ou Tempo Novo serão determinantes na
preparação da manifestação e no ataque a MFA, ao governo, aos partidos de
esquerda e ao processo de descolonização.
O Relatório sobre o 28 de Setembro situa
o arranque de uma ofensiva orquestrada pela extrema-direita no encontro de 10
de julho de Spínola com delegações do MFP, PTDP, PL e MPP, e o início das
movimentações tendentes à manifestação no fim do mês. A organização arranca no
início de setembro. Spínola dirá que foi informado por Galvão de Melo da
preparação da manifestação de apoio ao Presidente. Porém, Francisco Van Uden
diz que foi Spínola, inspirado em De Gaulle, quem procurou os organizadores da
manifestação, informando-os da necessidade de manifestação pública de apoio
popular para combater a infiltração comunista no MFA. Deste encontro surgiu a
comissão organizadora da manifestação presidida por Fernando Cavaleiro.
A
9 de setembro, elementos do PP, PDC e PL reúnem para preparar a manifestação. No
dia 7, fora assinado o acordo de Lusaca que provoca o levantamento violento da
comunidade branca em Lourenço Marques. Na cerimónia de reconhecimento da independência
da Guiné, a 10 de setembro, Spínola, entre ataques à descolonização, apela à “maioria
silenciosa”. E, a 14 de setembro, Spínola e Mobutu encontram-se para discutir o
futuro de Angola.
No dia 15, a
Associação Livre de Agricultores (ALA) convoca uma manifestação junto ao
Palácio de Belém, para o dia 29, de modo a coincidir com as movimentações da “maioria
silenciosa”.
Depois de, a
28 de agosto, elementos do MPP terem sido detidos por colarem cartazes da
manifestação, na madrugada de 19 de setembro, são, de novo, afixados em Lisboa
cartazes que são rasgados por militantes do Partido Comunista Português (PCP) e
do Movimento Democrático Português (MDP) que entram em confronto com os apoiantes
da manifestação.
O
financiamento da manifestação terá sido organizado por Kaúlza de Arriaga e por Fernando
Cavaleiro e suportado pelo Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, com quem
elementos do PL e do PP tinham relação. As verbas são aplicadas em propaganda, em
cartazes, em aluguer de avionetas para distribuição de panfletos, em fretes de
táxis aéreos e em aluguer de cerca de mil camionetas no Norte do país
destinadas ao transporte gratuito de pessoas para Lisboa.
Refletindo
as imbricações da “maioria silenciosa” com a frente africana e as manobras tendentes
à descolonização, Spínola chama, no dia 20, a Lisboa o governador-geral de
Angola, Rosa Coutinho, e assume diretamente a descolonização de Angola e todas
as negociações. O PCP alerta para a manifestação de reacionários e fascistas
encapotados para destruir o processo de democratização. Denuncia o apoio da alta
finança e apela à vigilância popular e à unidade e ação de todos os partidos. O
MDP fala na “minoria tenebrosa” composta por ex-elementos da PIDE/DGS,
ex-legionários, partidos fascistas e grandes capitalistas. Também o Partido
Socialista (PS) denuncia as manobras de grupos fascistas. Já o Centro Democrático
Social (CDS) desmentia qualquer ligação ao extinto PNP.
Na manhã do
dia 27, em reunião do Conselho de Ministros, em Belém, Spínola tenta a
declaração do estado de sítio. A resposta da CC do MFA é delineada nessa manhã,
em reunião com Costa Gomes, ministros militares do MFA, comandante-adjunto do
COPCON, Otelo Saraiva de Carvalho, e membros da 2.ª Divisão do EMGFA que apresentam
uma lista de detenções. Os oficiais da CC do MFA contactam as principais
unidades e a contagem de espingardas revelava-se favorável. Segue-se a reunião
da JSN em que Spínola propõe, sem sucesso, a demissão de Vasco Gonçalves. No
fim da tarde, em reunião do Conselho de Ministros, Spínola insiste na demissão
do PM. O termo da reunião coincide com o início das prisões decididas pelo
COPCON e com o arranque da constituição de barricadas nos acessos a Lisboa por
sindicatos, por comissões de trabalhadores, por moradores e por partidos de
esquerda.
Em nova
reunião da JSN, em Belém, com a presença de Vasco Gonçalves, Costa Gomes e os
ministros da Comunicação Social e da Defesa, Sanches Osório e Firmino Miguel, os
spinolistas exigem a demissão do PM. Noutra sala do Palácio, o ministro da
Comunicação Social é incumbido por Spínola de redigir um comunicado, sugerindo
a necessidade da declaração de estado de sítio, rejeitado por Vasco Gonçalves e
por Costa Gomes. Em novo comunicado, às três horas da madrugada de 28, redigido
por Vasco Gonçalves e aprovado por Spínola, o governo apela ao levantamento das
barricadas, permitindo a normal circulação e a passagem dos participantes na
manifestação, que tinha condições para decorrer pacificamente.
O fim do dia
27 e o dealbar de dia 28 são de tensão e de receio de que a situação escale
para algo próximo da guerra civil. Com Otelo, a quem Spínola retira o comando
do COPCON, e Vasco Gonçalves detidos em Belém, a CC do MFA reage. Vasco
Lourenço, pensando na rede conspirativa do 25 de Abril, contacta os capitães de
várias unidades e diz-lhes para, se for preciso, porem o “25 de Abril sobre
rodas”, prenderem os comandantes e assumirem o comando das unidades, que estavam
quase todas com a CC do MFA, e não com Spínola, que permite que Vasco Gonçalves
e Otelo abandonem Belém.
A CC do MFA,
vendo que as coisas correm pelo lado do MFA, exige a demissão dos elementos
spinolistas da JSN, que fica reduzida a Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo, Rosa
Coutinho e Spínola. Este, não concordando, pede a Freitas do Amaral que redija
uma declaração do estado de sítio e insiste na demissão do PM, sem sucesso. Às
13 horas, um comunicado da Presidência da República declara inconveniente a manifestação
e, depois, outro comunicado, mas da 5.ª Divisão do EMGFA, proíbe-a
taxativamente.
Na manhã de
29, JSN e CC do MFA reúnem e debatem a possibilidade de institucionalização do
MFA e Spínola tenta, mais uma vez, declarar o estado de sítio, sem sucesso.
No início da
tarde, retomada a reunião, a CC do MFA apresenta as propostas da plataforma de
entendimento. Confirma a demissão dos três generais da JSN referidos e
encarrega Spínola e Costa Gomes de estudar a institucionalização do MFA. E, ao
fim do dia 29, Spínola comunica ao PM, na presença de Costa Gomes, a intenção
de renunciar ao cargo de Presidente da República.
Por fim, em
reunião do Conselho de Estado, na manhã de 30 de setembro, Spínola, em
dramática intervenção transmitida pela RTP,
comunica a renúncia à Presidência da República.
Ficou,
assim, tumulado o projeto pessoal de Spínola e avançou, embora com alguns
solavancos, o processo de descolonização (com lutas internas), de
democratização (com eleições para a Assembleia Constituinte, para o Parlamento,
para a Presidência da República, para as autarquias locais e para as regiões autónomas)
e de desenvolvimento (ainda não satisfatório, mas real).
***
Se calhar, a
democracia representativa quererá que se festeje o 28 de setembro.
2024.09.30 – Louro de Carvalho