segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Com o 28 de setembro de 1974, terminou o projeto pessoal de Spínola

 

O 28 de Setembro foi a primeira tentativa de vulto para conter a revolução abrilina e a democratização. Constituiu-se como mais uma investida do Presidente da República, general António Sebastião Ribeiro de Spínola, para tomar o poder, conjugando uma manifestação de rua com movimentações militares e a conspiração palaciana para a demissão do primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, a dissolução da Comissão Coordenadora (CC) do Movimento das Forças Armadas (MFA), a declaração de estado de sítio e o reforço dos poderes presidenciais.

Logo na noite de 25 de abril, Spínola tentou condicionar a dinâmica revolucionária dos “capitães de abril”, tentando que regressassem a quartéis e liderando ele o poder que “herdara” de Marcelo Caetano. Não o conseguindo, levou os capitães a tolerar-lhe a Presidência da Junta de Salvação Nacional (JSN) e a Presidência da República, que a CC do MFA queria para o general Francisco da Costa Gomes, que ficou chefe do Estado-Maior Geral das Forças Armadas (EMGFA).

Em crescente isolamento, ante o avanço da descolonização e o reconhecimento das independências, o poder do MFA e dos partidos de esquerda, a vaga de ações e lutas dos movimentos sociais e o que se constituía como um processo revolucionário, Spínola e os setores afetos, organizam uma manifestação da alegada “maioria silenciosa”, de apoio ao Presidente da República que legitimasse o reforço dos poderes presidenciais e a declaração de estado de sítio. Era uma ação global, com ramificações em Angola e Moçambique, passível de degenerar em violência e até em golpe de Estado. O objetivo era a contenção do processo revolucionário, pela viragem à direita e pelo recuo das liberdades, bem como pelo controlo da descolonização.

A democratização preconizada por Spínola, assente na limitação de direitos e liberdades, era descrita como “democracia musculada”, “marcelismo sem Marcelo” ou “presidencialismo militar”. Enfim, a negação do que movimentos sociais e o MFA preconizavam. Spínola advogava uma “via federal-presidencialista” sob controlo político da grande burguesia, assente em “táticas golpistas” e em “laivos de nacionalismo militar”, com uma centralidade inequívoca o neocolonialismo de tipo federalista. Porém, incapaz de evitar ou de retardar a descolonização, Spínola assinou, constrangido, a Lei n.º 7/74, de 27 de julho, que reconhecia o direito à independência das colónias. Não obstante, não desistiu de fomentar organizações africanas, de fazer visitas aos quartéis militares e de preconizar soluções assentes na autodeterminação e nos referendos. Assim, ao longo de cinco meses, tentou, de formas diferentes, garantir, para si, o controlo do poder político-militar, reforçando os seus poderes e aniquilar a CC do MFA.       

O braço-de-ferro nos dias imediatos ao golpe de 25 de abril, os embates de 8 e 13 de junho na Manutenção Militar, a crise Palma Carlos, a crise de agosto e os pelos à “maioria silenciosa” foram os cinco momentos de pressão de Spínola sobre o MFA.

Estes assaltos ao poder são complementados por discursos catastróficos da “teoria da terra queimada”, em que Spínola prepara o terreno para o apelo à “maioria silenciosa”.

A crise Palma Carlos, que era o primeiro-ministro (PM) do I Governo Provisório, suscitada pela situação económica caótica descrita por Vasco Vieira de Almeida, ignorando as consequências de qualquer Processo revolucionário, consistia numa alteração ao programa do MFA, sugerida por Sá Carneiro: legitimar Spínola como Presidente da República por eleição popular, com base numa lei constitucional “ad hoc”, constituir um governo de iniciativa presidencial, com ministros escolhidos pelo PM e não pelo PR, que preparava as eleições para a Assembleia Constituinte e, depois, para o Parlamento.  A CC do MFA não aceitou a alteração, Palma Carlos demitiu-se e Vasco Gonçalves assume-se, nomeado por Spínola, como PM do II Governo Provisório.    

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O projeto spinolista esbarra num dos profundos fenómenos abrilinos: a explosão revolucionária marcada por mobilizações coletivas, pelas práticas de democracia direta e pela militância de base. Em maio explode a onda de greves, de ocupações e de paralisações de empresas, com assembleias e manifestações reivindicativas dos direitos e liberdades fundamentais e do fim da guerra colonial.

Em Setúbal, em Lisboa ou no Porto, o movimento de moradores auto-organiza-se em comissões e arranca o movimento de ocupações de casas. Nos bairros urbanos e nos campos do Alentejo, empresas, escolas e universidades, órgãos locais e centrais do Estado e até nas Forças Armadas, estabelecem-se formas de organização popular e de luta reivindicativa.

Entre abril e setembro, a derrota spinolista é determinada pela dinâmica revolucionária. Em torno do general foram-se um campo político conservador, mas heterogéneo, com várias tendências de direita e de extrema-direita: monárquicos, católicos, aristocratas, gente da elite económica. Define-se mais pela oposição ao processo revolucionário, de democratização e de descolonização, do que pela afinidade ideológica. A questão africana é central, nomeadamente, a manutenção de uma ligação entre Portugal e as (ainda) colónias. Embora defendendo vias integristas ou independências brancas, muitos resignam-se ao federalismo spinolista.

A explosão de partidos no pós-25 de Abril passará também pelo centro-direita e pela extrema-direita, alguns com ligações a Spínola. Nos primeiros dias de maio, surgem o Partido Trabalhista Democrático Português (PTDP), apoiante da manifestação da “maioria silenciosa” e com ligações a grupos colonialistas em África, e o Partido Cristão Social-Democrata (PCSD), que se fundirá com o Partido Democrático Popular Cristão (PDPC). A 4 de maio, surge o Movimento Federalista Português (MFP), depois, denominado Partido do Progresso (PP); e, dias depois, o Movimento Popular Português (MPP). No dia 10, surgia o Partido da Democracia Cristã (PDC). Dias depois, foi a vez do Partido Popular Monárquico (PPM). E, a 28 de maio é fundado Partido Liberal (PL), o grande coordenador da manifestação.

No dia 15 de junho, surge o Partido Social-Democrata Português (PSDP) e, a 24, o Partido Nacionalista Português (PNP), extinto dias antes do 28 de Setembro. Sob o signo do antimarxismo, PL, PTDP e PP constituem, a 27 de agosto, a Frente Democrática Unida (FDU). PDC, Partido Cristão Social (PCS), Partido Social-Democrático Independente (PSDI) e elementos do PSDP formam a Aliança dos Portugueses para o Progresso Social, frente de direita de apoio ao Presidente da República, apesar das reservas que Spínola lhes suscitava.

A 10 de junho, Spínola é eleito presidente honorário do PTDP e realizam-se, em Lisboa e no Porto, manifestações das direitas em defesa do federalismo. E, na sequência da “crise Palma Carlos”, MFP, PTDP, PL e MPP sustentam que “a grande maioria do País tem sido silenciada”, e são recebidos por Spínola a 10 de julho.

Jornais da imprensa regional, como BandarraEconomia e FinançasTribuna Popular ou Tempo Novo serão determinantes na preparação da manifestação e no ataque a MFA, ao governo, aos partidos de esquerda e ao processo de descolonização.

Relatório sobre o 28 de Setembro situa o arranque de uma ofensiva orquestrada pela extrema-direita no encontro de 10 de julho de Spínola com delegações do MFP, PTDP, PL e MPP, e o início das movimentações tendentes à manifestação no fim do mês. A organização arranca no início de setembro. Spínola dirá que foi informado por Galvão de Melo da preparação da manifestação de apoio ao Presidente. Porém, Francisco Van Uden diz que foi Spínola, inspirado em De Gaulle, quem procurou os organizadores da manifestação, informando-os da necessidade de manifestação pública de apoio popular para combater a infiltração comunista no MFA. Deste encontro surgiu a comissão organizadora da manifestação presidida por Fernando Cavaleiro.

A 9 de setembro, elementos do PP, PDC e PL reúnem para preparar a manifestação. No dia 7, fora assinado o acordo de Lusaca que provoca o levantamento violento da comunidade branca em Lourenço Marques. Na cerimónia de reconhecimento da independência da Guiné, a 10 de setembro, Spínola, entre ataques à descolonização, apela à “maioria silenciosa”. E, a 14 de setembro, Spínola e Mobutu encontram-se para discutir o futuro de Angola.

No dia 15, a Associação Livre de Agricultores (ALA) convoca uma manifestação junto ao Palácio de Belém, para o dia 29, de modo a coincidir com as movimentações da “maioria silenciosa”.

Depois de, a 28 de agosto, elementos do MPP terem sido detidos por colarem cartazes da manifestação, na madrugada de 19 de setembro, são, de novo, afixados em Lisboa cartazes que são rasgados por militantes do Partido Comunista Português (PCP) e do Movimento Democrático Português (MDP) que entram em confronto com os apoiantes da manifestação.

O financiamento da manifestação terá sido organizado por Kaúlza de Arriaga e por Fernando Cavaleiro e suportado pelo Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, com quem elementos do PL e do PP tinham relação. As verbas são aplicadas em propaganda, em cartazes, em aluguer de avionetas para distribuição de panfletos, em fretes de táxis aéreos e em aluguer de cerca de mil camionetas no Norte do país destinadas ao transporte gratuito de pessoas para Lisboa.

Refletindo as imbricações da “maioria silenciosa” com a frente africana e as manobras tendentes à descolonização, Spínola chama, no dia 20, a Lisboa o governador-geral de Angola, Rosa Coutinho, e assume diretamente a descolonização de Angola e todas as negociações. O PCP alerta para a manifestação de reacionários e fascistas encapotados para destruir o processo de democratização. Denuncia o apoio da alta finança e apela à vigilância popular e à unidade e ação de todos os partidos. O MDP fala na “minoria tenebrosa” composta por ex-elementos da PIDE/DGS, ex-legionários, partidos fascistas e grandes capitalistas. Também o Partido Socialista (PS) denuncia as manobras de grupos fascistas. Já o Centro Democrático Social (CDS) desmentia qualquer ligação ao extinto PNP.

Na manhã do dia 27, em reunião do Conselho de Ministros, em Belém, Spínola tenta a declaração do estado de sítio. A resposta da CC do MFA é delineada nessa manhã, em reunião com Costa Gomes, ministros militares do MFA, comandante-adjunto do COPCON, Otelo Saraiva de Carvalho, e membros da 2.ª Divisão do EMGFA que apresentam uma lista de detenções. Os oficiais da CC do MFA contactam as principais unidades e a contagem de espingardas revelava-se favorável. Segue-se a reunião da JSN em que Spínola propõe, sem sucesso, a demissão de Vasco Gonçalves. No fim da tarde, em reunião do Conselho de Ministros, Spínola insiste na demissão do PM. O termo da reunião coincide com o início das prisões decididas pelo COPCON e com o arranque da constituição de barricadas nos acessos a Lisboa por sindicatos, por comissões de trabalhadores, por moradores e por partidos de esquerda.

Em nova reunião da JSN, em Belém, com a presença de Vasco Gonçalves, Costa Gomes e os ministros da Comunicação Social e da Defesa, Sanches Osório e Firmino Miguel, os spinolistas exigem a demissão do PM. Noutra sala do Palácio, o ministro da Comunicação Social é incumbido por Spínola de redigir um comunicado, sugerindo a necessidade da declaração de estado de sítio, rejeitado por Vasco Gonçalves e por Costa Gomes. Em novo comunicado, às três horas da madrugada de 28, redigido por Vasco Gonçalves e aprovado por Spínola, o governo apela ao levantamento das barricadas, permitindo a normal circulação e a passagem dos participantes na manifestação, que tinha condições para decorrer pacificamente.

O fim do dia 27 e o dealbar de dia 28 são de tensão e de receio de que a situação escale para algo próximo da guerra civil. Com Otelo, a quem Spínola retira o comando do COPCON, e Vasco Gonçalves detidos em Belém, a CC do MFA reage. Vasco Lourenço, pensando na rede conspirativa do 25 de Abril, contacta os capitães de várias unidades e diz-lhes para, se for preciso, porem o “25 de Abril sobre rodas”, prenderem os comandantes e assumirem o comando das unidades, que estavam quase todas com a CC do MFA, e não com Spínola, que permite que Vasco Gonçalves e Otelo abandonem Belém.

A CC do MFA, vendo que as coisas correm pelo lado do MFA, exige a demissão dos elementos spinolistas da JSN, que fica reduzida a Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo, Rosa Coutinho e Spínola. Este, não concordando, pede a Freitas do Amaral que redija uma declaração do estado de sítio e insiste na demissão do PM, sem sucesso. Às 13 horas, um comunicado da Presidência da República declara inconveniente a manifestação e, depois, outro comunicado, mas da 5.ª Divisão do EMGFA, proíbe-a taxativamente.  

Na manhã de 29, JSN e CC do MFA reúnem e debatem a possibilidade de institucionalização do MFA e Spínola tenta, mais uma vez, declarar o estado de sítio, sem sucesso.

No início da tarde, retomada a reunião, a CC do MFA apresenta as propostas da plataforma de entendimento. Confirma a demissão dos três generais da JSN referidos e encarrega Spínola e Costa Gomes de estudar a institucionalização do MFA. E, ao fim do dia 29, Spínola comunica ao PM, na presença de Costa Gomes, a intenção de renunciar ao cargo de Presidente da República.

Por fim, em reunião do Conselho de Estado, na manhã de 30 de setembro, Spínola, em dramática intervenção transmitida pela RTP, comunica a renúncia à Presidência da República.

Ficou, assim, tumulado o projeto pessoal de Spínola e avançou, embora com alguns solavancos, o processo de descolonização (com lutas internas), de democratização (com eleições para a Assembleia Constituinte, para o Parlamento, para a Presidência da República, para as autarquias locais e para as regiões autónomas) e de desenvolvimento (ainda não satisfatório, mas real).

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Se calhar, a democracia representativa quererá que se festeje o 28 de setembro.

2024.09.30 – Louro de Carvalho

Milhares de pessoas manifestaram-se pelo direito à habitação

 

Milhares de pessoas juntaram-se na Alameda Dom Afonso Henriques, em Lisboa, a exigir “casa para viver” e o cumprimento do direito à habitação, constitucionalmente consagrado, criticando a intervenção do atual governo, protesto que se estendeu a 22 cidades portuguesas.

A manifestação foi organizada pela plataforma Casa Para Viver, pelo movimento Porta a Porta, pelo Referendo pela Habitação, pelo Projeto Ruído, pela Vida Justa e pelo 1.º Esquerdo, face ao agravamento da crise na habitação e por não acreditarem nas medidas propostas pelo governo da Aliança Democrática (AD) para resolver o problema.

“Pôr fim aos despejos, desocupações e demolições que não tenham alternativa de habitação digna e, que não preservem a unidade da família na sua área de residência”, é outra das propostas, a que se junta a redução do valor das prestações bancárias, “pondo os lucros da banca a pagar”.

O combate à especulação imobiliária é uma das prioridades, reforçando a necessidade de colocar a uso já, “com preços sociais”, os imóveis devolutos do Estado, dos grandes proprietários, dos fundos e das empresas, assim como o aumento de habitação pública.

André Escoval, do movimento Porta a Porta, disse que “está pior ter casa para viver” e que se pretende dizer ao governo que é preciso baixar os preços da habitação, através de regulação e de “pôr em causa” os interesses dos proprietários e da banca. “Isto vai ser uma grande ação de luta”, afirmou André Escoval, acusando o governo de estar “refém” dos interesses dos proprietários e da banca e esperando que haja disponibilidade para serem ouvidos pelo executivo.

Filipa Roseta, vereadora socialdemocrata da Habitação na Câmara Municipal de Lisboa, marcou presença na manifestação, onde destacou o trabalho do atual executivo, afirmando que tem sido feito “muito mais do que fez na última década”, para responder à crise habitacional na cidade, com cerca de duas mil entregas de casas e de mil subsídios ao arrendamento. Além disso, defendeu a intervenção do atual governo e destacou o concurso de cooperativa “1. Habitação”.

Perante a presença e as declarações de Filipa Roseta, o representante do movimento Porta a Porta acusou-a de “puro oportunismo político”, indicando que “não é bem-vinda” nesta iniciativa de protesto pelo direito à habitação. E a vereadora abandonou a manifestação, não sem antes declarar à SIC Notícias: “Estou aqui pelo direito à habitação, como toda a gente. Queremos é que as pessoas vivam melhor. É uma manifestação sobre a habitação, como todos os anos em que este dia tem sido marcado, eu tenho falado todos os anos. Se desta vez é complicado… logo este ano que tenho tantos resultados para apresentar.”

Depois de concentrados todos os manifestantes na Alameda Dom Afonso Henriques, a partir das 15h00, a ação de protesto pelo direito à habitação fez um percurso a pé de cerca de 3,5 quilómetros até ao Arco da Rua Augusta, descendo pela Avenida Almirante Reis e terminando com a atuação do músico Filipe Sambado, do grupo BatukadeiraX e do artista Jhon Douglas, “porque a luta também se faz em festa”.

Pelo menos 22 cidades portuguesas aderiram à manifestação convocada pela plataforma Casa Para Viver, em defesa do direito à habitação, com protestos a acontecer em simultâneo do Norte a Sul de Portugal continental e nos arquipélagos dos Açores e da Madeira.

Para a plataforma – que junta mais de cem organizações e mobilizou milhares de pessoas nas ruas de várias cidades em três manifestações (junho e setembro de 2023 e janeiro deste ano) –, o novo governo, liderado pelo social-democrata Luís Montenegro, “está bastante comprometido com aquilo que é o negócio imobiliário”.

Recorde-se que a manifestação pelo direito à habitação, a de 27 de janeiro, mobilizou 19 cidades.

“Os preços e as rendas das casas continuam a subir, a sobrelotação aumenta, assim como as barracas, as pessoas em situação de sem-abrigo e os despejos. A maior parte do nosso salário, senão todo (e, muitas vezes, este já não chega!), é gasta a pagar a casa. Desta forma, é inevitável que a pobreza aumente”, referiram os organizadores à Lusa.

No Porto, o protesto concentrou centenas de pessoas na Praça da Batalha. O movimento Porta a Porta entregava panfletos com as palavras de ordem para a manifestação, bem como cartazes, autocolantes e t-shirts onde se lê: “Porta a Porta”. A manifestação seguiu da Batalha para a rua de Santa Catarina, passou pela Rua Fernandes Tomás e terminou na Avenida dos Aliados.

Em declarações à Lusa, Raquel Ferreira, porta-voz do núcleo do Porto do movimento Porta a Porta, previu que a manifestação sofreria o atraso de uma hora. A hora prevista era às 15h00, mas a pedido da PSP, por causa da “mudança de turnos”, saiu da Batalha pelas 16h00.

O movimento Porta a Porta mobilizou em Faro cerca de três dezenas de pessoas. “Hoje estamos aqui numa luta específica para a habitação […]. O problema da habitação não é só os preços das casas, tem a ver também com […] a especulação, tem a ver também com os baixos salários”, disse à Lusa a porta-voz do movimento Porta a Porta, Ana Tarrafal.

Os manifestantes em Faro empunhavam cartazes onde se liam palavras de ordem a exigir “mais habitação pública”, “regular e rever as licenças de alojamento”, “combater a informalidade do arrendamento” ou “pôr o lucro dos bancos a pagar as prestações” da casa.

“A verdade é que PS [Partido Socialista] efetivamente esteve lá [no governo] o tempo suficiente para, pelo menos, tentar resolver este problema e não resolveu e acabou por camuflar um bocado o problema, porque não resolveu o cerne da questão, a própria especulação”, disse Ana Tarrafal.

Por outro lado, a porta-voz frisou que o atual “governo de direita não só não vai resolver o problema como o está a agravar”, exemplificando com “as medidas apresentadas, que têm apenas aumentado a especulação”. De acordo com Ana Tarrafal, no Algarve a falta de habitações está conexa com o facto de o peso do turismo ser grande e de a maioria dos trabalhadores ganhar o ordenado mínimo. Para o movimento Porta a Porta, o Estado não se pode demitir das suas responsabilidades e remeter para a mão invisível do mercado a decisão sobre “direito inalienável a uma habitação, mas deve definir políticas públicas que garantam o aumento do parque público habitacional, a baixa das taxas de juros nos empréstimos ou a travagem no aumento das rendas.

“Continua a luta para que alguma coisa seja feita pelas políticas de habitação”, disse à Lusa um dos manifestantes na capital algarvia, que sublinhou a necessidade de as pessoas continuarem a lutar e a exigir alterações à atual política. Segundo ele, “o PS fez pouco” pela habitação e “ainda é cedo para perceber o que irá fazer o atual governo”.

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A crise da habitação tem raízes na crónica escassez de habitação social e a preços acessíveis, situação agravada pela vinda de estrangeiros ricos para Portugal com a promessa de benefícios fiscais. O boom do turismo levou ao aumento do número de alugueres de Alojamentos locais para férias de curta duração, o que pôs mais pressão no mercado imobiliário para os residentes. Por isso, milhares de pessoas protestaram em cidades de todo o país contra os preços incomportáveis das casas e contra os custos de arrendamento, com muitos a dizerem que foram excluídos do mercado da habitação. Os manifestantes desfilaram com cartazes com palavras de ordem como: “Os nossos bairros não são da vossa conta” e “Tenho de escolher entre pagar uma casa ou comer”.

“O problema da habitação é um problema que se arrasta, há muitos anos, no nosso país e que agora está a chegar a uma situação que é para lá de insuportável”, disse um manifestante no Porto.

O governo de coligação de centro-direita de Portugal, liderado por Luís Montenegro, anunciou um pacote de dois mil milhões de euros para construir 33 mil casas até 2030, mas muitos manifestantes duvidam que consiga cumprir o prometido. Segundo André Escoval, é preciso dizer ao governo que é necessário tomar medidas para baixar o preço da habitação e colocar em primeiro lugar a vida de quem vive e trabalha no nosso país e precisa de um teto para que isso aconteça com qualidade”.

Na sua declaração de missão publicada online, o movimento Porta a Porta afirma que a crise de habitação em Portugal não é temporária, mas “crónica e estrutural”. Entre 2020 e 2021, os preços das casas em Portugal registaram um aumento de 157%. De 2015 a 2021, as rendas aumentaram 112%, segundo o Eurostat, a agência de estatísticas da União Europeia.

Portugal é um dos países mais pobres da Europa Ocidental e tem procurado investimentos com base numa economia de baixos salários. Pouco mais de metade dos trabalhadores ganha menos de mil euros por mês, de acordo com as estatísticas do Ministério do Trabalho relativas a 2022.

Também a maioria dos jovens espanhóis não tem dinheiro para comprar casa, sobretudo em cidades como Madrid. Por isso, cerca de 30 coletivos espanhóis convocaram uma grande manifestação para 13 de outubro, em Madrid, sob o lema “A habitação é um direito, não um negócio”. Segundo a plataforma, citada pelo jornal El Confidencial, as rendas na capital espanhola aumentaram mais de 60% e deixaram os inquilinos à beira do colapso financeiro. “A maioria de nós não aguenta mais, estamos a afogar-nos”, afirma o Sindicato de Inquilinas e Inquilinos de Madrid, em comunicado, criticando a falta de medidas efetivas da parte dos vários governos.

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No “apelo público” à participação no protesto, por parte da plataforma Casa Para Viver, refere-se que o “Programa + Habitação” do anterior governo não resolveu a crise, e que os poucos avanços que a legislação trouxe se devem à luta na rua, impondo o fim dos Vistos Gold, o fim dos Residentes Não Habituais e a regulação de preços das rendas (muito insuficiente) ou a construção (ainda tão limitada) de habitação pública. Porém, o atual governo tem propagandeado que vai resolver a crise de habitação com a ajuda dos promotores privados, que têm lucrado com a crise de habitação. Quer dar-lhes mais privilégios fiscais e subsídios, liberalizando a construção e promovendo parcerias público-privadas. Voltará a retirar barreiras ao Alojamento Local, defenderá a manutenção do regime dos Residentes Não Habituais, recuperará os vistos gold (com a denominação de Investimentos Solidários) e revogará o tímido controlo das rendas existente, passar as rendas anteriores a 1990 para o novo regime de arrendamento.

Não é só o aumento da construção privada que baixa os preços – sobretudo se a maioria da nova construção é para os setores do luxo ou do turismo. Sem a devida regulação, o preço da habitação continuará a aumentar. Também não é aceitável a culpabilização mentirosa das pessoas migrantes, narrativa que procura bodes expiatórios para desviar a atenção dos verdadeiros responsáveis pela crise – os que especulam com a habitação e os governantes que defendem e incentivam a tal. Muitos vivem em sobrelotação, por não poderem pagar uma casa. A política do governo não serve à grande maioria dos jovens e aos estudantes, ao invés do que a propaganda do governo diz.

Assim, a plataforma exige que o governo: baixe e regule as rendas para valores compatíveis com o rendimento do trabalho, dando estabilidade aos contratos de arrendamento; ponha fim a despejos, desocupações e demolições que não tenham alternativa de habitação e que não preservem a unidade da família na área de residência; baixe as prestações bancárias, pondo os lucros da banca a pagar; reveja todas as formas de licenças para a especulação turística; acabe com o Estatuto dos Residentes Não Habituais, com os incentivos para nómadas digitais, com as isenções fiscais para o imobiliário de luxo e fundos imobiliários, assim como não tenha nenhum regime similar de Vistos Gold; coloque a uso, com preços sociais, os imóveis devolutos do Estado, dos grandes proprietários, dos fundos e das empresas que têm como fim a especulação; aumente o parque de habitação pública, com qualidade, do Estado e a promova com a reabilitação dos bairros sociais; e crie formas de habitação cooperativa e outras que não entregues ao mercado.

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Protesto atípico: na contestação à política de habitação em perspetiva, houve pessoas a acreditar no governo e uma vereadora alfacinha propagandeou o milagre municipal da oferta de habitações surgido quase de súbito, ignorando o passado. É, pois, acertado o aviso: “Não se deixem enganar!”

2024.09.30 – Louro de Carvalho

domingo, 29 de setembro de 2024

Não somos donos do bem ou da verdade

 

Uma das lições significativas da liturgia do 26.º domingo do Tempo Comum no Ano B é que ninguém é dono exclusivo do bem e da verdade, mas que tem de ser capaz de reconhecer e de aceitar a presença e a ação do Espírito de Deus através das pessoas de boa vontade que, independentemente da situação e enquadramento eclesial, são sinais do amor de Deus no Mundo.

primeira leitura (Nm 11,25-29), a partir de um episódio ocorrido enquanto o Povo de Deus caminhava pelo deserto, convida a reconhecer e a acolher a ação do Espírito de Deus na vida dos homens, ainda que se concretize através de pessoas “improváveis”. O crente aceita sempre a iniciativa de Deus, seja como for que ela se apresente, e acolhe-a de coração agradecido.

O Livro dos Números, assim designado, na versão grega da Bíblia Hebraica, pelas listas de censos, de registos e de outras listas (começando inclusive com os números do recenseamento do Povo de Deus, tribo por tribo, feito por Moisés a mando de Deus), apresenta um conjunto de tradições sobre a estada no deserto dos hebreus libertados do Egito, tradições que os teólogos das escolas javista, elohista e sacerdotal utilizaram com fins catequéticos. Mais do que uma crónica de viagem do Povo de Deus desde o Sinai até às portas da Terra Prometida, o Livro dos Números é um livro de catequese a mostrar que a essência de Israel é ser povo reunido à volta de Deus e da Aliança, com os hagiógrafos a descrever como, por ação de Javé, o grupo de nómadas libertado do Egito foi ganhando uma consciência nacional e religiosa, até chegar a formar a “assembleia santa de Deus”. Israel faz uma caminhada espiritual, durante a qual se vai libertando da mentalidade de escravo, para adquirir a cultura de liberdade e de maturidade.

O episódio que a liturgia do 26.º domingo comum selecionou como primeira leitura acontece pouco depois da partida do Sinai. Em Tabera, o povo revoltou-se por não ter comida em abundância e murmurou contra Javé. Moisés, cansado e desiludido, queixou-se ao Senhor de não aguentar o fardo da condução deste povo rebelde. Então, Javé propôs a Moisés escolher setenta anciãos que, ungidos pelo Espírito de Deus, o ajudariam nas tarefas inerentes à condução do Povo.

Os anciãos (em Hebraico: “tzequenîm”) eram uma instituição no universo político e social do Povo de Deus. Eram os chefes de família que formavam, em cada cidade, um conselho e que presidiam à comunidade. Tinham prestígio ímpar e participavam, ativamente, nas deliberações e tomadas de decisão importantes. Alguns veem nesta instituição o embrião do futuro Sinédrio.

Ora, o livro faz remontar à época do deserto a instituição dos anciãos como referência comunitária: por indicação de Deus, foram designados 70 anciãos para ajudar Moisés na governação. É número simbólico que expressa a totalidade: eles representam a totalidade do povo.

Fortemente sugestiva é a descrição da forma como se deu a designação dos anciãos: Deus tirou uma parte do Espírito que estava em Moisés e derramou-o sobre os designados. Moisés possuía a plenitude do Espírito, enquanto dirigia sozinho o Povo de Deus; porém, quando foi dividida com os 70 anciãos a responsabilidade da governação, o Espírito que repousava em Moisés foi repartido por todos. A bizarra descrição dá a ideia da unidade do Espírito e da partilha do mesmo Espírito por todos aqueles que Deus chama a uma missão em prol da comunidade.

A presença do Espírito nos anciãos patenteia-se na capacidade de profetizar. Contudo, o exercício profético destes anciãos não se traduz na comunicação à comunidade de mensagem escrita ou falada, na linha dos profetas pregadores e escritores que Israel conhecerá mais tarde, mas exprime-se em manifestações extáticas percecionadas pela comunidade como sinais da presença e da força de Deus. Com os seus gestos e palavras arrebatados, os anciãos mostram ao Povo que Deus está ali; e isso é garantia de que Deus continua interessado em Israel e em conduzir Israel.

A saga tem, porém, um epílogo inesperado: Eldad e Medad, dois anciãos que faziam parte da lista dos escolhidos, mas que não estavam presentes aquando da receção do Espírito, também profetizavam. E Josué, ajudante de Moisés, interpretando isso como usurpação de competências lesiva da autoridade, pede a Moisés que lhe ponha cobro. A resposta de Moisés a Josué é de um homem magnânimo, livre, de espírito aberto: “Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!” Moisés mostra não estar preocupado em guardar para si os mecanismos de controlo do poder; a sua preocupação é que o povo faça uma experiência forte de Deus e sinta a presença e a ajuda de Deus. Assim, quantos mais membros do Povo experimentarem e sinalizarem a presença de Deus, mais facilmente a comunidade irá atrás de Deus e das suas propostas.

O carisma profético não é o bem de um líder; é dom que Deus distribui como entende. Moisés aceita que Deus aja onde quer, como quer, e através de quem quer; aceita que Deus escolha os seus colaboradores, até os mais improváveis, para concretizar o seu desígnio. O desejo de Moisés – um Povo inteiro que recebe o Espírito de Deus e que é animado por Ele – concretizar-se-á no Pentecostes, quando o Espírito de Deus se derramar sobre a totalidade do Povo da Nova Aliança.

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No Evangelho (Mc 9,38-43.45.47-48), Jesus desafia os discípulos a porem de lado os interesses pessoais e de grupo e a viverem na lógica do Reino. Exorta-os a não serem comunidade fechada, sectária, intransigente, ciumenta, arrogante, e a acolherem, de braços abertos, todos os que se dispõem a trabalhar por um Mundo mais humano e mais livre; exorta-os a não excluírem da dinâmica comunitária os pequenos e os pobres; e pede-lhes que arranquem da própria vida todos os sentimentos e atitudes incompatíveis com a opção pelo Reino.

Começamos por ouvir João a expor a Jesus o que acontecera um pouco antes e a forma como os discípulos lidaram com isso: “Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco”. É como no Livro dos Números.

Na opinião de João, a atuação dos discípulos parece justificável: a utilização do nome de Jesus por parte de alguém que não pertence ao grupo é abuso a não tolerar. João está muito decidido e cheio de certezas. Nem sequer pede a opinião de Jesus; apenas O informa de algo que os discípulos decidiram e fizeram. João fala de forma impositiva e arrogante, como se o grupo tivesse o direito de tomar as decisões que houvesse por bem, sem consultar o Mestre. Mais grave ainda: a atuação dos discípulos apresenta laivos de autoritarismo e de sectarismo, em total contradição com a proposta de Jesus. De facto, a ação do exorcista anónimo não beliscava o “bom nome” de Jesus, nem prejudicava o projeto do Reino; e mais importante do que o prestígio do grupo é a libertação dos seres humanos das cadeias que os impedem de ter Vida.

Tudo se percebe, se considerarmos que os discípulos andavam obcecados com os primeiros lugares, com as honras, com os privilégios, com os sonhos de poder e domínio. Tinham apostado tudo no seguimento de Jesus e queriam ter o exclusivo de Jesus, em compensação do investimento feito. Por isso, não estavam dispostos a partilhar Jesus com eventuais concorrentes. Aquele desconhecido que agia em nome de Jesus poderia revelar-se um concorrente que lhes disputaria os primeiros lugares na estrutura política do Reino. Portanto, era preciso neutralizá-lo. Os discípulos de Jesus estavam preocupados apenas em proteger os interesses pessoais ou de grupo. A sua atitude, que grassa hoje, na Igreja, mostra sectarismo, intransigência, intolerância, ciúmes, mesquinhez, inveja – valores incompatíveis com o dinamismo do Reino.

Jesus, com paciência, procura levar os discípulos a ultrapassar esta visão sectária e egoísta: “Não o proibais, porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e, depois, dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós.” A Jesus só O preocupa a libertação do homem de tudo o que o desumaniza e lhe rouba a Vida. Quem luta pela justiça e faz obras em favor do homem, está do lado de Jesus, embora não esteja formalmente em determinado grupo. Quem for capaz de fazer qualquer gesto em favor de um irmão, pertence à comunidade do Reino e está vinculado a Jesus.

A comunidade de Jesus não pode ser fechada, exclusivista, monopolizadora, que amua e sente ciúmes quando alguém de fora faz o bem; nem pode sentir-se atingida pelo facto de o Espírito de Deus atuar fora das fronteiras institucionalmente definidas. Deve, antes, ser comunidade que põe, acima dos seus interesses, a preocupação com o bem do homem e ser comunidade que acolhe, apoia e estimula todos os que atuam em favor da libertação dos irmãos. O fator decisivo deve ser o bem dos irmãos, não a defesa de interesses pessoais ou corporativos.

Depois disto, a lição de Jesus orienta-se para outras temáticas. De facto, Marcos junta diversos ditos de Jesus que nem sempre apresentam uma linha de continuidade temática.

O primeiro desses ditos é um aviso a quem escandaliza os “pequeninos”. Entre nós, “escandalizar” é protagonizar mau exemplo ou facto revoltante que melindra ou fere a suscetibilidade dos que testemunham essa ação. Na linguagem de Marcos, porém, “escandalizar” tem significado diferente. O verbo grego “scandalídzô” está relacionado, em Marcos, com ser “pedra de tropeço” ou com ser obstáculo a que alguém tome determinada atitude. Neste contexto, escandalizar seria fazer algo que impedisse alguém de aderir a Jesus, de O seguir. Os “pequeninos” de que Jesus fala são os membros da comunidade que estão em situação de dependência, de debilidade, de necessidade. Os membros da comunidade devem, pois, abster-se de qualquer atitude que possa afastar alguém (especialmente, os pequenos, os débeis, os pobres) da adesão a Jesus e ao caminho que Ele propõe. Fazer algo que afaste alguém de Cristo e da comunidade é inadmissível e impensável (a quem fizer isso, “melhor seria que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao mar”).

O segundo dito de Jesus refere-se à necessidade de arrancar da vida todos os sentimentos e atitudes incompatíveis com a opção por Cristo. Quando Jesus fala em cortar a mão (a mão é, nesta cultura, o órgão da ação pelo qual se concretizam os desejos que nascem no coração) ou de cortar o pé ou de arrancar o olho que é ocasião de pecado (o olho é o órgão que dá entrada aos desejos), está a vincar a necessidade de atuar onde as ações más do homem têm origem e de eliminar, na fonte, as raízes do mal. Estando em jogo o destino do homem, não se podem adiar cortes importantes no egoísmo e na autossuficiência.

Há ainda, neste segundo dito, referências sucessivas a um castigo na Geena, “onde o verme não morre e o fogo não se apaga”, para os que recusarem cortar com as atitudes e com os sentimentos incompatíveis com o seguimento de Jesus. A palavra “Geena” vem do Hebraico “Ge Hinnon” (“Vale do Hinnon”), situado a Sudoeste de Jerusalém, onde eram enterrados os mortos e onde, dia e noite, ardia o lixo produzido pelos habitantes da cidade. Era, pois, um lugar, impuro, tenebroso, que convinha evitar. Jesus usa a imagem do “Ge Hinnon”, para falar de vida perdida, frustrada, destruída. Quem não for capaz de cortar com o egoísmo, com a autossuficiência, é como se, em lugar de viver num lugar livre e feliz, estivesse condenado a viver no “Ge Hinnon”.

O que é que une estes ditos de Jesus é, para Marcos, serem indicações dirigidas aos discípulos sobre a necessidade de purificarem os seus critérios de vida e os seus valores, a fim de integrarem a comunidade do Reino. Os discípulos que não conformarem a vida pelas orientações de Jesus não podem seguir atrás d’Ele no caminho para Jerusalém, que leva à cruz e à ressurreição.

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Na segunda leitura (Tg 5,1-6), um mestre cristão do século I, previne os crentes de que apostar a vida nos bens materiais é mau negócio: eles desaparecem e não asseguram a Vida. A obsessão pelos bens materiais é fonte de injustiças e de sofrimento; e Deus nunca abençoará quem, por cobiça e ambição, explora e fere os irmãos.

A primeira parte do trecho em referência refere-se ao destino infeliz que espera os ricos. Como em visão profética, o autor contempla o final dos tempos e descreve a sorte daqueles cujo objetivo na vida foi acumular bens. Os bens, o poder, a consideração de que gozaram não lhes servirá de nada, a quando do juízo final, momento em que se joga o destino definitivo do homem.

Os bens em que os ricos depositam a sua segurança e esperança são perecíveis (“as vossas riquezas estão apodrecidas e as vossas vestes estão comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se…”); é, pois, insensato basear neles a existência. Quando desaparecerem, nada ficará. Mais: serão testemunha de acusação, que denunciará o orgulho e a autossuficiência, a leviandade com que viveram, as injustiças e as violências que praticaram para os acumular. Então, o destino final dos ricos será o dos bens que endeusaram: desaparecerão numa nuvem de nada.

Na segunda parte, o epistológrafo refere-se à origem dos bens acumulados pelos ricos. A sua análise não admite dúvidas nem meio-termo: a riqueza provém da exploração dos pobres. Como exemplo, o autor cita o não pagamento dos salários devidos aos trabalhadores que ceifaram os campos dos ricos. É pecado que a Lei condena veementemente. Não pagar o salário ao trabalhador é condená-lo à morte, bem como a toda a família. Os luxos e os prazeres dos ricos vivem da morte dos pobres. Deus não pode pactuar com a injustiça e, por isso, não ficará indiferente ao sofrimento do pobre e do oprimido. O clamor dos injustiçados sobe da terra até junto de Deus e faz com que Deus atue. Com ironia mordaz, o autor compara o rico ao cevado que, engordando, apressa o dia da própria matança: os ricos, vivendo no luxo e nos prazeres à custa do sangue dos pobres, preparam para si próprios um destino de desgraça e de castigo.

A linguagem do epistológrafo é violenta e sarcástica, ao estilo dos pregadores epocais. Mas, além da veemência das palavras e do colorido das imagens, fica a mensagem essencial: quem vive para os bens materiais e põe neles o sentido da existência, dificilmente terá disponibilidade para acolher os dons de Deus e para acolher a Vida plena que Deus oferece aos homens. Por outro lado, Deus não tolera a exploração, a opressão do pobre; e quem conduzir a vida por caminhos de injustiça não poderá integrar a família de Deus. 

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Enfim, é preciso atender ao Espírito, que sopra onde e donde quer, e atender às necessidades dos irmãos. Esta é a grande mensagem acolhida a 29 de setembro de 1979 (há 45 anos), na ordenação presbiteral – em missa vespertina do 26.º domingo do Tempo Comum no Ano B – do Adriano Alberto Pereira, do António Lemos de Almeida, do Armindo Costa Almeida e minha.

2024.09.29 – Louro de Carvalho

Muitos estados-membros da UE querem políticas migratórias restritivas

 

A imigração está, novamente, no centro do debate na Europa, após o ataque, em Solingen, na Alemanha, realizado por um refugiado sírio que seria transferido para a Bulgária. Além de prometer deportações rápidas para os que não têm direito a permanecer no país, o chanceler alemão Olaf Scholz afirmou que algo tem de mudar nas “políticas europeias de migração”.

A ministra austríaca dos Assuntos Europeus, Karoline Edtstadler é da mesma opinião, que deve ser reforçada com a ascensão vitoriosa da extrema-direita nas eleições de 29 de setembro. E outros governos também parecem insatisfeitos com o Pacto de Migração e Asilo (PMA), a reforma da política de migração aprovada em maio de 2024, após quase quatro anos de negociações, mas gizado durante quase uma década.

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Apesar de o acordo em torno do novo PMA ter sido alcançado, apenas há alguns meses, e de prever um endurecimento das regras, sobretudo a nível de controlo de fronteiras e de repatriamento, já vários países União Europeia (UE) defendem a sua revisão, para dificultar mais a entrada de migrantes. Neste verão, Berlim e Paris juntaram-se ao grupo de capitais que defendem abordagem mais securitária. Assim, há cada vez mais estados-membros da UE, incluindo a Alemanha e a França – pesos pesados –, que pretendem definir políticas migratórias de restrição, com muitos a reclamarem a revisão do PMA, recentemente acordado.

Se antes eram pequenos países com regimes mais autoritários, como a Hungria e a Eslováquia, a advogar uma política migratória com mão pesada – a que se juntou a Itália, desde a eleição, há cerca de dois anos, de um governo de direita e de extrema-direita liderado por Giorgia Meloni –, agora, vários os governos defendem um endurecimento das regras, no contexto de agravamento dos conflitos à escala global, de consequente aumento dos fluxos de refugiados e de subida dos partidos de extrema-direita que fazem do combate à imigração a sua grande bandeira.

A seguir, numa linha cada vez mais dura, vêm os Países Baixos e a Suécia. E há, cada vez mais, adeptos de acordos com países terceiros para externalizar os procedimentos de asilo, sendo apontado como exemplo o acordo estabelecido entre Itália e Albânia para a criação de dois centros de acolhimento em território albanês a gerir pelas autoridades italianas.

Berlim e Paris, até há pouco defensoras de políticas migratórias justas, humanistas e coordenadas, mudaram radicalmente o seu discurso, questionando as regras de Schengen, o espaço de livre circulação de pessoas, que agora consideram demasiado livre.

O governo alemão apresentou, recentemente, um pacote de medidas de “resposta clara aos problemas de segurança”, como sublinhou a ministra do Interior, Nancy Faeser. Ou seja, a decisão surge, assumidamente, em resposta ao ataque terrorista em Solingen, que fez três mortos e foi reivindicado pelo Estado Islâmico (EI), e à ascensão da extrema-direita no país. O plano do executivo liderado pelo socialista Olaf Scholz, que pretende aliviar a pressão interna, para travar a imigração ilegal, inclui medidas de segurança, restrições nos serviços aos requerentes de asilo e medidas para facilitar a expulsão de migrantes.

O estabelecimento de novos controlos nas fronteiras com a Bélgica, a Dinamarca, a França, os Países Baixos e o Luxemburgo, desde 16 de setembro, que se somam aos já existentes com a Polónia, a Chéquia, a Suíça e a Áustria, tem sido a mudança mais polémica. “Como governo federal, estamos a fazer o que é necessário e legalmente possível para garantir a segurança das pessoas na Alemanha. Estamos a alargar os instrumentos da nossa democracia orientada para a defesa, a fim de prevenir, resolver e sancionar as infrações penais”, apontou Nancy Faeser, garantindo que as autoridades passam a ter “mais facilidade em manter as armas longe das mãos de extremistas, de terroristas e de criminosos ou em retirá-las, melhorando também o intercâmbio de informações entre as agências envolvidas”.

Por exemplo, os requerentes de asilo, com algumas exceções, perderão a proteção do Estado, se saírem de férias para o país de origem; e deixarão de ter o reconhecimento do governo, se forem condenados por crimes graves, como antissemitismo, racismo, homofobia ou misoginia. Além disso, a iniciativa do governo acelera a expulsão de requerentes de asilo que se encontram na Alemanha e a sua entrada inicial foi registada noutro país da UE, de acordo com a Convenção de Dublin. “Quem recebe a nossa proteção não deve abusar dela, caso contrário terá de abandonar o nosso país”, declarou a ministra do Interior alemã.

Na mesma linha segue a França, sob o governo de direita, liderado por Michel Barnier, que assumiu a vontade de reabrir as negociações sobre o PMA e adotar posição mais rigorosa em matéria de migração, seguindo o exemplo dos vizinhos, a Alemanha e os Países Baixos. “Temos de rever as legislações da UE, que já não estão adaptadas. Estou a pensar, em primeiro lugar, na diretiva do regresso. É tempo de mudar as regras da UE”, defendeu Bruno Retailleau, o novo ministro do Interior de França.

Paris diz compreender a decisão de alguns países da UE de reintroduzirem controlos fronteiriços no espaço Schengen, tendo Michel Barnier observado que vários governos socialistas estão a ir nessa direção, dando como exemplo a Alemanha, a Dinamarca e ainda o Reino Unido. “Estamos a ver o que um chanceler socialista está a fazer [em matéria de controlos fronteiriços], o que um ministro socialista está a fazer na Dinamarca, o que um primeiro-ministro socialista está a fazer no Reino Unido, isto deveria ser um sinal de alerta para nós”, afirmou Michel Barnier.

O Reino Unido já não faz parte do bloco comunitário, mas é um ‘caso de estudo’, no atual contexto, pois, eleito em julho, o novo primeiro-ministro britânico, o líder trabalhista (esquerda) Keir Starmer, que rejeitou o plano do anterior governo conservador de expulsar migrantes para o Ruanda, assumiu-se, agora, como entusiasta do modelo italiano de Meloni. Depois de confrontado com os maiores motins no Reino Unido, desde 2011, que tiveram como alvo mesquitas e albergues de migrantes em todo o país, Keir Starmer admite, agora, replicar o modelo italiano, tendo-se deslocado a Roma, para perceber o que classificou como “progressos notáveis” de Itália no combate à imigração ilegal, afirmando concordar com “novas soluções” a serem aplicadas também no Reino Unido.

O primeiro-ministro britânico admitiu estar interessado nos acordos estabelecidos pelo governo de Meloni com as autoridades da Líbia e da Tunísia, para reduzir o número de partidas desde estes dois países do Magrebe, mas também foi abordado o polémico acordo estabelecido em novembro de 2023 entre Roma e Tirana com vista à criação de dois centros de migrantes na Albânia.

Entre os estados-membros da UE, já com políticas mais estritas, e além da Hungria de Viktor Orbán – desde há muito, crítica da política migratória europeia –, contam-se a Suécia, com o governo conservador apoiado pela extrema-direita, e os Países Baixos, com o governo dominado pela extrema-direita de Geert Wilders. E, na Suécia, que recebia um grande número de imigrantes desde a década de 1990, principalmente, de regiões assoladas por conflitos – incluindo a antiga Jugoslávia, a Síria, o Afeganistão, a Somália, o Irão e o Iraque –, a nova política de combate à imigração decretada pelo líder conservador Ulf Kristersson, que chegou ao poder em outubro de 2022, formando um bloco maioritário com o apoio do partido nacionalista Democratas Suecos, já está a “produzir frutos”, como o próprio governo anunciou recentemente.

Em agosto, Estocolmo anunciou que o número de pessoas que deixam a Suécia ultrapassará o número de imigrantes, em 2024, o que acontece, pela primeira vez, em mais de meio século. Além disso, os pedidos de asilo continuam a diminuir e atingiram o nível mais baixo, desde 1997.

Também na Dinamarca, outro país escandinavo, até há poucos anos, famoso pela sua política de acolhimento de migrantes, a política mudou, radicalmente, nos últimos anos, com o governo socialista a utilizar cada mais os termos “autossuficiência e retorno” em vez de “integração”, à medida que a opinião pública dinamarquesa se foi manifestando, cada vez mais, contra o grande número de migrantes no país e a extrema-direita poderia capitalizar esse descontentamento.

Nos Países Baixos, o governo, que chegou ao poder em julho, já anunciou o programa de ação para 2025, que inclui políticas mais rigorosas para reter ou expulsar os migrantes que não reúnam as condições necessárias para obter asilo, o que constitui uma reforma radical do sistema de asilo do país, prevendo a opção de “não participação” nas políticas de migração da UE.

É neste cenário de crescente número de estados-membros a advogar políticas migratórias mais restritivas – e com conflitos como a guerra na Ucrânia e no Médio Oriente às portas da Europa – que arranca a nova legislatura da UE na sequência das eleições de junho, que ameaça ficar marcada pela nova resposta do bloco comunitário aos desafios em termos de migrações e asilo.

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Alguns países, como a Suécia ou a Lituânia, pediram exceções, por razões de segurança nacional, enquanto o governo neerlandês gostaria que as novas regras sobre o acolhimento e a redistribuição de migrantes não fossem aplicadas no seu território, estando a considerar pedir uma cláusula de autoexclusão. “Muitos governos da UE estão obcecados com a dimensão securitária da imigração. Vêem-na como ameaça à segurança e à identidade da UE”, sustenta Juan Fernando López Aguilar, eurodeputado membro Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas.

A nova Comissão Europeia terá de lidar com estas exigências: de acordo com Alberto-Horst Neidhardt, analista do Centro de Política Europeia, o grupo irá concentrar-se, sobretudo, na dimensão externa, começando pela política de regresso. Alguns estados-membros pretendem estabelecer regras que regulem o regresso dos requerentes de asilo rejeitados aos países de origem ou a outros países de trânsito. A própria presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, afirmou, de forma explícita, que pretende definir uma nova abordagem em matéria de regressos.

O Regulamento relativo aos procedimentos de asilo (APR), um dos textos fundamentais do PMA, prevê novo procedimento para os regressos nas fronteiras: as decisões de regresso seguir-se-ão, imediatamente, às respostas negativas aos pedidos de asilo, ao passo que, atualmente, existe um grande lapso de tempo entre as duas decisões, o que dificulta os regressos. Falta, porém, uma lista europeia de países terceiros seguros, ou seja, países para onde os migrantes podem ser reenviados sem risco para a sua segurança. Atualmente, cada país europeu tem a sua lista. “As novas regras permitem a criação de uma lista comum, mas não há consenso sobre quais os países terceiros que devem constar dessa lista”, afirma Alberto-Horst Neidhardt.

Outro aspeto das políticas de migração diz respeito aos acordos com os países do Norte de África, para impedir a partida de migrantes irregulares, em troca de apoio económico. A UE já assinou vários acordos (os mais recentes foram com a Mauritânia, a Tunísia e o Egito) e é provável que a nova Comissão siga a mesma linha. “É muito provável que, na próxima legislatura, se assista a um forte impulso no sentido da externalização de responsabilidades para países terceiros”, diz o especialista, que sustenta: “Dito isto, há dois lados da questão. É necessário cooperar com os países terceiros nestas questões e muito poucos deles estão dispostos a cooperar porque, a nível interno, estes acordos são vistos como divisivos e impopulares.”

Horst Neidhardt prevê investimentos económicos e diplomáticos nesta direção, mas os resultados não são um dado adquirido. “Esta política pode levar a uma redução das chegadas a curto prazo, mas não necessariamente a uma melhor gestão da migração a longo prazo”, considera.

Entretanto, é provável que se assista a novo endurecimento da retórica securitária sobre a imigração e a novos apelos a medidas para limitar as chegadas irregulares. São as exigências a que temos assistido nos últimos anos. O resultado pode ser que o eleitorado espera – a redução drástica das chegadas, o que é difícil de conseguir – e, depois, exige medidas ainda mais rigorosas.

Assim, na Europa, muitas propostas, outrora consideradas tabu, estão agora a ser consideradas (ou já adotadas) por alguns países, como a externalização dos pedidos de asilo para outro país ou muros para impedir as chegadas por terra. Entretanto, muitas fronteiras internas entre países europeus também continuam a ser controladas: atualmente, oito estados suspenderam as regras de livre circulação do espaço Schengen em algumas das suas fronteiras.

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Em Portugal, o governo decretou, antes das eleições europeias, normas restritivas à imigração, alegando que as vigentes foram produzidas de forma irrefletida. Porém, apercebendo-se da importância dos imigrantes na reposição da população (os óbitos aumentam e a natalidade decresceu drasticamente) e para o trabalho (com os subsequentes pagamentos de impostos e contribuições para a Segurança Social), tratou de resolver os 400 mil processos pendentes, para o que pensou em mobilizar 1200 advogados.  

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Enfim, as migrações, que são fenómeno natural, acarretam problemas para os países de acolhimento, mas, se bem geridas, podem constituir considerável mais-valia para esses países. Por outro lado, é preciso atender à vertente humanitária: quando são pessoas que, por força de conflitos ou de catástrofes naturais se veem privadas de tudo, não se lhes pode virar as costas.

2024.09.29 – Louro de Carvalho

sábado, 28 de setembro de 2024

Guerra: uns matam, outros temem, mas outros aprovam

 

O grupo militante Hezbollah confirmou, a 28 de setembro, a morte do seu líder, horas após as Forças de Defesa Israelitas (FDI) garantirem que Sayyed Hassan Nasrallah tinha morrido num ataque aéreo israelita em Beirute. Efetivamente, numa publicação na rede social X, o exército israelita escreveu que “Hassan Nasrallah deixará de aterrorizar o Mundo”.

Segundo o exército israelita, também foram mortos, no referido ataque, Ali Karki, o comandante da Frente Sul do Hezbollah, e outros comandantes do Hezbollah. 

Sayyed Hassan Nasrallah liderava o Hezbollah há mais de três décadas.

As forças armadas israelitas afirmaram ter efetuado um “ataque aéreo preciso”, enquanto o comando do Hezbollah se reunia no seu quartel-general em Dahiyeh, a Sul de Beirute, no dia 27.

O Ministério da Saúde libanês afirmou que seis pessoas morreram e 91 ficaram feridas nos ataques, que arrasaram seis edifícios de apartamentos. Horas antes, alguns meios de comunicação social norte-americanos afirmavam que o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, tinha sido alvo de um ataque, mas as autoridades israelitas ainda não tinham dado a confirmação.

A embaixada do Irão, em Beirute, disse que os ataques mudarão as “regras do jogo” e o líder supremo do Irão, Khamenei, escreveu no X: “Por um lado, a matança de civis indefesos no Líbano revelou, mais uma vez, a todos a natureza selvagem dos sionistas raivosos. Por outro lado, provou como são míopes e insanas as políticas dos dirigentes do regime de ocupação.”

Após o anúncio da morte de Nasrallah, Khamenei foi levado para uma zona segura em parte incerta do Irão. Horas antes dos ataques, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, dirigiu-se às Nações Unidas, prometendo que a campanha de Israel contra o Hezbollah continuaria, diminuindo mais as esperanças de um cessar-fogo apoiado internacionalmente. Netanyahu não se encontrou com António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), pois interrompeu abruptamente a visita aos Estados Unidos da América (EUA), para regressar a Israel.

Israel levou a cabo uma série de ataques aéreos contra o Hezbollah, no dia 27 e na madrugada do dia 28, enquanto aquela formação político-militar respondia com dezenas de rockets contra Israel.

As forças armadas israelitas afirmaram que estavam a mobilizar soldados de reserva adicionais à medida que as tensões aumentavam com o Líbano. Efetivamente, o exército, na manhã do dia 28, disse estar a ativar três batalhões de soldados de reserva, depois de ter enviado duas brigadas para o Norte de Israel, no início da semana, para treinar para uma possível invasão terrestre.

De acordo com o Ministério da Saúde libanês, de 23 de setembro a 28, mais de 720 pessoas foram mortas no Líbano. Segundo a ONU, o número de pessoas deslocadas do Sul do Líbano, devido ao conflito, mais do que duplicou, sendo atualmente mais de 211 mil. Pelo menos, 20 centros de cuidados de saúde primários foram encerrados em zonas duramente atingidas do Líbano, segundo informou o Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas. E, de acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), mais de 200 mil pessoas foram deslocadas no Líbano, desde que o Hezbollah começou a disparar rockets contra o Norte de Israel, em apoio ao Hamas, desde o início da guerra em Gaza.

O Ministério da Saúde libanês informou que um total de 1540 pessoas foram mortas dentro das suas fronteiras, durante esse período – quase metade das quais durante a última semana, quando os ataques aéreos israelitas devastaram partes do país.

Israel intensificou, drasticamente, os ataques contra alvos libaneses, afirmando que tenciona eliminar as capacidades militares do Hezbollah e os seus comandantes de topo. Portanto, a morte do líder do Hezbollah e dos comandantes referidos não foi acidental. Altos responsáveis israelitas tinham ameaçado repetir a destruição de Gaza, no Líbano, se os ataques aéreos do Hezbollah continuassem. E os disparos do Líbano contra Israel prosseguiram no dia 27, tendo um homem sofrido ferimentos provocados por estilhaços.

O exército israelita afirmou que quatro drones atravessaram a fronteira, mas que todos foram intercetados. No início do dia 27, mais dez projéteis chegaram a Israel vindos do Líbano, tendo alguns sido intercetados e outros caído em campos abertos. Entretanto, durante a noite, um ataque aéreo israelita na Síria matou cinco soldados do exército sírio e feriu outro, de acordo com a agência noticiosa estatal síria SANA.

Os EUA, a França e outros aliados apelaram, conjuntamente, a um cessar-fogo de 21 dias, tendo o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Líbano saudado a proposta e condenado a “destruição sistemática de aldeias fronteiriças libanesas”, por parte de Israel. Porém, Benjamin Netanyahu afirma que Israel está a atacar o Hezbollah “com toda a força” e que não vai parar até atingir os seus objetivos. Veículos militares israelitas foram vistos a transportar tanques e veículos blindados rumo à fronteira Norte do país com o Líbano, e os comandantes convocaram reservistas.

De facto, soube-se, a 26 de setembro, que os EUA e a França lideraram um grupo de 12 países que se juntaram, no dia 25, para apelarem a um cessar-fogo de 21 dias, no Líbano, após a reunião de líderes mundiais, na Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. A pausa nos ataques permitira iniciar negociações para aliviar as tensões crescentes no Médio Oriente, após os ataques israelitas terem incendiado o Líbano.

Em resposta, o gabinete do primeiro-ministro israelita, que viajava para Nova Iorque para participar na Assembleia Geral da ONU, garantia que não houve qualquer acordo, pedindo aos militares que continuassem a lutar com “toda a força” no Líbano. “As notícias sobre um cessar-fogo não são verdadeiras. Trata-se de uma proposta americano-francesa, à qual o primeiro-ministro nem sequer respondeu. As notícias sobre a suposta diretiva para moderar os combates no norte também são o oposto da verdade”, lia-se no comunicado, citado pelo jornal Haaretz, que especificava: “O primeiro-ministro deu instruções às FDI para prosseguirem os combates com toda a força e de acordo com os planos que lhe foram apresentados. Além disso, os combates em Gaza vão continuar até que todos os objetivos da guerra sejam alcançados.”

Numa conferência de imprensa, o ministro do Interior libanês, Bassam Mawlawi, informou que cerca de 70100 pessoas deslocadas no Líbano estão alojadas em 533 abrigos e que cerca de 27 mil pessoas deixaram o Líbano, nos últimos três dias. Metade dessas pessoas são cidadãos sírios que regressaram ao país de origem, através dos postos fronteiriços oficiais.

Na verdade, desde 8 de outubro de 2023, tem havido fogo transfronteiriço quase diário entre Israel e o Hezbollah. E, nos últimos dias, os resultados catastróficos da guerra resultam do propósito, anunciado no dia 25, de Israel de proceder a uma eventual operação terrestre contra o Líbano, em retaliação dos rockets dali mandados contra objetivos israelitas.

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Hassan Nasrallah, de 64 anos, liderou o grupo militante libanês nas últimas três décadas, transformando-o num dos mais poderosos grupos paramilitares do Médio Oriente. Sob a sua liderança, o Hezbollah tem travado guerras contra Israel e participado no conflito na Síria, ajudando a fazer pender a balança do poder a favor do presidente Bashar Assad.

Estratega astuto, Nasrallah transformou o Hezbollah num arqui-inimigo de Israel, cimentando alianças com os líderes religiosos xiitas do Irão e com grupos palestinianos como o Hamas. Idolatrado pelos seus seguidores xiitas libaneses e respeitado por milhões de pessoas em todo o Mundo árabe e islâmico, Nasrallah é “Sayyid”, título honorífico que significa que a linhagem do clérigo xiita remonta ao profeta Maomé, o fundador do Islão.

Orador inflamado, visto como extremista nos EUA e o Ocidente, é tido como pragmático, em comparação com os militantes que dominaram o Hezbollah após a sua fundação em 1982, na guerra civil do Líbano. Apesar do seu poder vivia semiclandestino, por receio de assassinato.

Nascido em 1960 numa família xiita pobre do subúrbio de Sharshabouk, no Norte de Beirute, Nasrallah foi, mais tarde, para o Sul do Líbano. Estudou Teologia e aderiu ao movimento Amal, organização política e paramilitar xiita, antes de se tornar um dos fundadores do Hezbollah.

O Hezbollah foi formado por membros da Guarda Revolucionária Iraniana que chegaram ao Líbano, no verão de 1982, para combater as forças invasoras israelitas. Foi o primeiro grupo que o Irão apoiou e utilizou para exportar a sua marca de islamismo político.

Nasrallah construiu uma base de poder, à medida que o Hezbollah se tornou parte dum grupo de fações e de governos apoiados pelo Irão, conhecido como o Eixo da Resistência. Dois dias depois de o líder, Sayyed Abbas Musawi, de 39 anos, ter sido morto no ataque de um helicóptero israelita no Sul do Líbano, o Hezbollah escolheu Nasrallah como secretário-geral, em fevereiro de 1992. Cinco anos mais tarde, os EUA designaram o Hezbollah como organização terrorista.

Sob o comando de Nasrallah, o Hezbollah foi responsável pela guerra de desgaste que levou à retirada das tropas israelitas do Sul do Líbano, em 2000, após a ocupação de 18 anos. Hadi, o seu filho mais velho, foi morto em 1997, em combate contra as forças israelitas.

Após a retirada de Israel do Sul do Líbano, em 2000, Nasrallah ganhou estatuto icónico no Líbano e no mundo árabe. As suas mensagens eram transmitidas pela rádio e pela estação de televisão por satélite do Hezbollah. Esse estatuto foi reforçado, quando, em 2006, o Hezbollah lutou contra Israel até um impasse, na guerra de 34 dias. E, quando a guerra civil síria eclodiu, em 2011, os combatentes do Hezbollah foram em apoio das forças de Assad, apesar de a popularidade do Hezbollah ter caído a pique, quando os Árabes ostracizaram Assad.

Um dia depois do início da guerra entre Israel e o Hamas, o Hezbollah passou a atacar os postos militares israelitas fronteiriços, numa “frente de apoio” a Gaza. Em discursos, Nasrallah aduziu que os ataques transfronteiriços do Hezbollah tinham afastado as forças israelitas que, de outro modo, estariam concentradas no Hamas em Gaza e insistiu que o Hezbollah não pararia os ataques a Israel, enquanto não fosse alcançado um cessar-fogo em Gaza.

Nasrallah tem mantido um tom desafiador, mesmo quando as tensões aumentaram, com Israel a anunciar uma nova fase do conflito, destinada a afastar o Hezbollah da fronteira e a permitir o regresso de milhares de deslocados do Norte de Israel.

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Enquanto países da União Europeia (UE) instam os seus cidadãos a abandonar, imediatamente, o Líbano e Portugal já retirou os seus, o presidente dos EUA considerou “uma medida de justiça” o assassinato do líder do Hezbollah. “Hassan Nasrallah e o grupo terrorista que liderou, o Hezbollah, mataram centenas de americanos, num reino de terror que durou quatro décadas. A sua morte num ataque aéreo israelita é uma medida de justiça para muitas das suas vítimas, incluindo milhares de civis americanos, israelitas e libaneses”, afirmou o chefe de Estado norte-americano, em mensagem divulgada pela Casa Branca, reiterando que os EUA “apoiam totalmente o direito de Israel se defender do Hezbollah, dos Houthis e de qualquer outro grupo terrorista apoiado pelo Irão” e revelando ter ordenado, no dia 27, às forças norte-americanas no Médio Oriente que adotem uma “postura defensiva reforçada” destinada a “dissuadir agressões e reduzir o risco de uma guerra regional mais alargada”.

“O nosso objetivo é desescalar os conflitos que decorrem em Gaza e no Líbano pela via diplomática”, indicou Joe Biden na mensagem divulgada no site da Casa Branca.

Os EUA dizem querer, no Líbano, “um acordo que permita o regresso a casa” das populações no Norte de Israel e no Sul do Líbano, onde milhares de pessoas tiveram de abandonar as suas casas, devido aos confrontos entre as FDI e o Hezbollah. “Está na altura de fechar estes acordos, de retirar as ameaças a Israel e de trazer maior estabilidade ao Médio Oriente”, frisou Biden.

O presidente Biden sustenta que a morte de Nasrallah se insere num contexto mais lato iniciado com o massacre do Hamas, a 7 de outubro de 2023. “No dia seguinte, Nasrallah tomou a decisão fatídica de dar as mãos ao Hamas e abrir o que chamou uma ‘frente norte’ contra Israel”, afirmou.

Segundo as autoridades libanesas, mais de mil pessoas morreram, desde que Israel intensificou os ataques contra alegados alvos do Hezbollah. E, na Faixa de Gaza, o Ministério da Saúde controlado pelo Hamas acusa os militares israelitas de terem feito mais de 41500 mortos.

Por sua vez, o chefe da política externa da UE, Josep Borrell, alertou para o facto de o Médio Oriente estar a caminhar para uma “guerra total”, na mesma noite em que Israel lançou ataques aéreos contra o quartel-general do Hezbollah na capital do Líbano.

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Enfim, é a guerra com os ingredientes próprios do belicismo refinado do século XXI!

2024.09.28 – Louro de Carvalho