Em entrevista ao ECO online, a 9 de agosto, o penalista Paulo de Sá e Cunha, presidente do Conselho
Superior da Ordem dos Advogados (OA) analisa alguns aspetos do modus operandi dos diversos operadores
da Justiça, de que respigo dados que me parecem pertinentes.
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À testa do referido organismo, percebeu que a OA,
instituição vetusta, no sentido descritivo do termo, é antiquada e funciona em
moldes do século XX, em muitos aspetos, e a ação disciplinar e a do Conselho
Superior ressentem-se disso. Aponta, por exemplo, que o regulamento disciplinar
“está cheio de armadilhas que levam a que os processos disciplinares se
arrastem demasiado tempo, quase tanto tempo como o dos processos penais”. Aí, a
recente Lei da Amnistia “permitiu resolver processos pendentes há muito tempo”.
Assinala que os processos, que são organizados em papel, ocupam muito espaço, que
é preciso aligeirar o formalismo das notificações, que é complicado, e que as
notificações aos advogados podiam ser feitas para o email da OA ou para um email
nela registado. Com efeito, muitas notificações não chegam aos destinatários, pois,
quando há muito tempo entre o início e o fim dos processos e se envia a
notificação, “o advogado do arguido ou o participante já não moram nas mesmas
moradas e as cartas são devolvidas”.
Dos procedimentos
disciplinares mais aplicados aos advogados, diz que “há comportamentos graves”, embora “poucos”. Depois, há
questões que seria bom não chegarem ao plano disciplinar, como os “pequenos
desentendimentos entre advogados”. Há clientela regular do Conselho Superior e
dos Conselhos de Deontologia, a dos litigantes compulsivos, em que 90% dos
casos têm escassa relevância, contra os 10% de grande relevância.
Refere que o Conselho Superior emite laudos de
honorários, havendo aí “grandes atrasos”, pela grande dificuldade em contratar
relatores-adjuntos dos conselheiros, já que a OA segue as regras da
contabilidade pública e os procedimentos concursais de admissão de pessoas.
Apesar de ter concorrido em listas diferentes, tem “excelente
relação” com a bastonária. Os presidentes de Conselho Superior que o
antecederam tiveram más relações com os bastonários. Porém, a bastonária e ele
privilegiam achamos as funções e a dignidade institucional. É certo que, por
vezes, depois de eleições na OA, os vencidos fazem “campanha eleitoral nas redes
sociais”, como uma das consequências das redes sociais, que “são um espaço
onde se diz tudo com grande facilidade” e, muitas vezes, se perde “o sentido
institucional”.
Por falha sua, não vai às assembleias-gerais, que “não
têm servido para grande coisa” e cujo modelo deve ser revisto, pois “não faze[m]
sentido assembleias gerais presenciais para um universo que é de mais de 30 mil
advogados”, devendo optar-se pela participação online.
É um dos defensores da Caixa de Previdência dos
Advogados e Solicitadores (CPAS),
que “deve manter-se autónoma, independente” (um dos pontos de divergência com a
bastonária). Não quer a integração da CPAS na Segurança Social, pois a
previdência destes profissionais não tem “cariz assistencialista”, dado que “foi
criada e pensada para que os advogados tivessem uma reforma condigna, através
de um sistema mutualista”. Porém, admite que os advogados estejam inscritos, ao
mesmo tempo, na CPAS e na Segurança Social. E recorda que, na pandemia, foram a
única classe profissional que não teve qualquer apoio do Estado e muitos “depararam
com uma grande insensibilidade, quer do bastonário quer da CPAS.
Sustenta que quem não tem condições para descontar
para a CPAS não pode ser advogado, pois não é aceitável que o vasto conjunto de
colegas cumpridor “veja a sustentabilidade da instituição e as suas próprias
reformas colocadas em risco por um conjunto vasto de advogados que não pagam”. Porém, como
há profissionais com mais capacidade do que outros, a cobrança
coerciva de dívidas à CPAS deve atender às diferentes situações. Por isso, fez
bem a CPAS permitir o recurso a uma linha de crédito favorável, que se pode prolongar
por 180 meses.
No atinente às questões dos novos
estatutos dos advogados e da lei dos atos próprios, sustenta que é “muito cedo para notar as diferenças, porque o novo
regime entrou em vigor agora”. Porém, o ponto mais crítico é o de a OA ter nos
seus órgãos, inclusive nos órgãos disciplinares e num órgão de supervisão que é
criado, membros não advogados. E o nível dos atos próprios dos advogados é outro
ponto preocupante, porque não é por acaso que a OA é uma instituição pública
que certifica profissionais. Permitir que um licenciado em Direito exerça
consulta jurídica é perigoso, porque o faz sem nenhum controlo disciplinar e
porque a consulta jurídica não é só aplicar a lei, mas perceber se a situação é
de pré-litígio e com que provas.
Sobre os estágios, admite
que 18 meses de estágio sejam excessivos e que há entraves à entrada na profissão que têm de ser
aligeirados, mas que não se deve abrir, indiscriminadamente, a porta a quem
quer que seja. E, quanto à remuneração, diz que o problema não se coloca numa
sociedade grande, porque os estagiários são sempre remunerados. Porém, trata-se
de pequena minoria. Já em estruturas mais pequenas ou em advogados em prática
individual, é difícil assegurar estágios remunerados. Assim, por um lado, é
justo remunerar o estagiário; por outro, o trabalho dos estagiários, durante um
certo período, é imprestável. O estágio é um custo.
***
Questionado a propósito dos casos mediáticos na
Justiça, frisa a crise grave na justiça penal de há muitos anos. E muitos
despertaram para isso, agora. Numa entrevista de há cerca de sete anos, afirmou
preferir um Ministério Público (MP) controlado a um MP descontrolado, pois, já
então “estava descontrolado”. Confundimos duas magistraturas diferentes. A
magistratura judicial é “verdadeira e própria magistratura”, não sendo por
acaso que os tribunais são considerados, na nossa ordem constitucional, órgãos
de soberania. Já o MP “podia ser um órgão da administração pública com caraterísticas
especiais”. Assim, entende que a nossa estrutura constitucional “é boa, mas
funciona mal”. No MP, “não há propriamente uma hierarquia”, pois “quem está no
topo da hierarquia não a assume”. Há interferências na opinião pública de
entidades que não têm legitimidade para tal. Por vezes, o Sindicato dos
Magistrados do Ministério Público (SMMP) é uma espécie de porta-voz do MP, que ultrapassa
o titular legítimo da hierarquia do MP.
Contudo, o principal problema do MP não está no
estatuto, nem no que se diz “corporativismo dos magistrados”, que não é diverso
do de outras profissões. Há divergências entre grupos de magistrados do MP. Uns
veem a instituição de um modo e outros de outro. E há descoordenação
hierárquica forte e presente, bem com péssima gestão de recursos disponíveis.
Teremos sempre poucos recursos. Portugal não é rico.
Portanto, temos de gerir os recursos disponíveis da investigação criminal,
definir prioridades e desenvolvê-las de forma consequente e eficaz. Por
exemplo, segundo o penalista, a recente operação da Madeira revela excesso de
meios. Depois, a política criminal não é definida pela Procuradoria-Geral da
República (PGR) nem pelo MP. E esta magistratura, ao invés dos tribunais, não é
órgão de soberania,
No atinente ao segredo de
justiça, critica o uso da comunicação social junto
da opinião pública, para obter determinados efeitos, o que vem longa data. Considera
que têm de ser criteriosamente usados e geridos os meios disponíveis. E refere
que, após busca espetacular com transportes em C-130 da Força Aérea e com
grandes apreensões, o material apreendido estará, anos a fio, depositado em
qualquer lado, à espera de análise dos peritos.
Diz que, se fosse
procurador-geral da República, não teria incluído o parágrafo que deu azo à
demissão de António Costa, sustentando que há confusão entre corrupção e fenómenos próximos da
corrupção, que não são rigorosamente corrupção: por exemplo, conflito de
interesses ou portas giratórias, realidades a defrontar e a regular melhor. E
há confusão entre decisão política e ilícito criminal. Por exemplo, é legítimo o
poder político acarinhar um projeto de investimento em área do território que precise
de ser desenvolvida. Ora, decisões dessas não são escrutináveis pelo MP, que
não tem legitimidade constitucional para interferir em decisões políticas.
E essas interferências do MP
não são de agora. O Dr.
Cunha Rodrigues, que esteve, muitos anos, à frente do MP já tinha uma interessante
gestão “política” dos casos. Por exemplo, nos anos 90, um processo atingiu uma
alta personalidade do Partido Social Democrata (PSD), a Dra. Leonor Beleza, que
teria ambições a uma carreira política mais auspiciosa do que a que teve, em parte,
em consequência disso. Pouco tempo depois, os casos do fax de Macau e do Fundo Social Europeu (FSE) atingiram figuras do
Partido Socialista (PS). Havia, assim, uma gestão equilibrada entre a
responsabilidade criminal de políticos do PS e do PSD. Mas já havia a ideia de
que os políticos eram perseguidos pela Justiça. Agora, o exagero decorre da
excessiva mediatização dos casos, pela necessidade de produzir conteúdos e de conquistar
a opinião pública. Por outro lado, houve excesso para lá do que é possível
esperar e “uma confiança cega na ação da justiça penal como elemento
moralizador da classe política”, com os magistrados a sentirem-se imbuídos do “espírito
justicialista”, na ideia de que “os bons são os da justiça penal, os outros são
todos uns corruptos”.
Na opinião do penalista, a culpa disto é da classe política,
que não respeita o princípio da presunção de inocência, um dos princípios
constitucionais mais mal tratado, a todos os níveis. Durante anos, a classe política
embarcou nesta onda e a ideia era que, se alguém é constituído arguido ou se é
suspeito, deve abandonar, de imediato, as funções públicas em que está
investido. Isto é um problema sério a debater e de ponderação pessoal do
visado. Ora, se nós tratássemos o direito à greve como tratamos a presunção de
inocência, haveria nova revolução. E “a presunção de inocência é um princípio
fortíssimo que deve ser preservado”.
É verdade que a subida do discurso radical de partidos como o Chega
significa “abrandamento da cultura democrática”, mas esse abrandamento tem a
ver com o desrespeito pela presunção de inocência, desde logo pela comunicação
social. E não se pode alegar que é “um princípio lá para os tribunais”. “É um
princípio constitucional que se aplica a todos”, assegura o penalista.
Também não é válida a ideia de que o aumento das penas
resolve tudo, pois elas podem ser de enorme dimensão, mas, se não forem
aplicadas ou se não forem aplicadas em tempo útil, não servem para nada. Por
isso, é eficaz a Justiça que atue em tempo útil e a Justiça que se arraste
penosamente, durante anos a fio, gera a sensação de impunidade.
Não acha que o Conselho Superior do Ministério Público
(CSMP) tenha de ter mais membros que não sejam do MP, mas que esta magistratura
tem défice de escrutínio democrático. Não defende a eleição dos procuradores,
como no sistema americano, mas tem de se reforçar a fiscalização por parte do
poder político e a prestação de contas pelos resultados e pela gestão de meios,
que deve ser exercida de forma mais eficaz e mais visível, para a opinião
pública perceber o que se faz, como se gasta o dinheiro e com que resultados. Para
tanto, é importante que execução da política criminal e o desempenho do procurador-geral
da República sejam escrutinados pelo Parlamento, como são os reguladores. E é pertinente
a questão de se recorrer a iniciativas como a de chamar o procurador-geral da
República ao Parlamento, para ter o titular da investigação criminal e da ação
penal a prestar contas, sem ter de falar dos processos em concreto.
É inconcebível o procurador-geral da República ser tão
silencioso tão inábil para comunicar. Falar diretamente não é fazer comunicados
do gabinete de imprensa; é declarar, dar entrevistas e abandonar “a ideia de
que os juízes e os procuradores têm que ser pessoas muito austeras”.
O CSMP está a fazer um
esforço em comunicar, enquanto o MP está como há 20 anos. E é preciso que saiba
comunicar, como é preciso afastar a ideia de que não é democrática a exigência
de o MP prestar contas no Parlamento.
Por fim, o penalista sustenta que aqueles que andam,
há muito tempo, a falar destas coisas deviam ser mais escutados, sob pena de se
chegar à situação atual. E os políticos que geraram a erosão do princípio da
presunção de inocência não são as principais vítimas da sua atuação (são outros),
porque, nos momentos em que deviam ter saído da política baixa para a política
mais elevada, o que fizeram foi “política partidária de nível mais ou menos
rasteiro”. É a vida!
2024.07.12
– Louro de Carvalho
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