segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Jesus identifica-se com o alimento mais comum e quotidiano, o pão

 

A liturgia do 20.º domingo do Tempo Comum no Ano B insiste num tema recorrente nos últimos domingos: Deus acompanha cada passo dos seus filhos e filhas e não cessa, na caminhada, de lhes oferecer o alimento que dá a Vida eterna. E os homens devem optar por acolher esse dom.

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No Evangelho (Jo 6,51-58), Jesus reitera o objetivo da sua missão: oferecer aos homens o alimento da Vida eterna. Para receber essa Vida, os discípulos são convidados a “comer a carne” e a “beber o sangue” de Jesus. E só o fazem, se a aderirem à pessoa de Jesus, assimilando o seu projeto, interiorizando as suas atitudes e critérios de vida, vivendo d’Ele. Na celebração da eucaristia, a comunidade de Jesus senta-se com Ele à mesa e recebe d’Ele o alimento que dá Vida.

No seu comentário dominical, o Santo Padre sublinhou a simplicidade de Jesus a afirmar: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu.” Ante a multidão, o Filho de Deus identifica-se com o alimento mais comum e quotidiano, o pão. Entre os que ouvem, alguns discutem como pode Ele dar-nos a comer a sua própria carne. Também nós nos interrogamos, mas com admiração e gratidão diante do milagre da Eucaristia, duas atitudes para refletir e cultivar.

Maravilhosamente, as palavras de Jesus surpreendem-nos. Afinal, Ele surpreende sempre. O pão do céu é o presente que supera todas as expectativas. Os que não compreendem Jesus ficam desconfiados: parece impossível, mesmo desumano, comer a carne de outra pessoa. Porém, carne e sangue são a humanidade do Salvador, a sua vida oferecida como alimento para a nossa vida.

E a gratidão leva-nos a reconhecer Jesus onde Ele se faz presente para nós e connosco. O pão é feito para nós: “Quem come a minha carne permanece em mim e Eu nele”. Cristo, verdadeiro homem, sabe que devemos comer para viver, mas que isso não basta. Após ter multiplicado os pães terrenos, prepara um dom maior: Ele torna-Se verdadeiro alimento e bebida. Por isso, a nossa atitude deve ser de enorme gratidão.

O pão celeste, que vem do Pai, é o Filho que Se fez carne por nós. Este alimento é mais do que necessário para nós, porque sacia a fome de esperança, de verdade, de salvação, que todos sentimos, não no estômago, mas no coração. A Eucaristia é necessária para todos nós. Ora, Jesus cuida da maior necessidade: salva-nos, alimentando a nossa vida com a sua, e isto para sempre. E, graças a Ele, podemos viver em comunhão com Deus e uns com os outros. O pão vivo não é, portanto, algo mágico, que resolve, repentinamente, todos os problemas, mas é o Corpo de Cristo, que dá esperança aos pobres e supera a arrogância de quem se empanturra com os bens materiais. Por isso, Francisco exorta a que se interrogue cada um/a se tem fome e sede de salvação, não só para si, mas para todos/as os/as irmãos/ãs. De facto, quando recebemos a Eucaristia, o milagre da misericórdia, devemos ficar maravilhados com o Corpo do Senhor, que morreu e ressuscitou por nós. É bom pedirmos a Maria, Senhora do pão, que ajude a acolher o dom no sinal do pão.

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Depois de Se declarar “o pão vivo que desceu do céu”, para dar aos homens a Vida, Jesus identifica esse pão com a sua carne. O termo “carne” (em grego: “sárx”) designa a pessoa na sua condição terrena: o ser humano frágil e precário, que vive com a morte física no horizonte. Jesus tornou-Se carne, quando vestiu a fragilidade e a precariedade dos humanos e veio habitar com os homens (“a Palavra fez-se carne e veio habitar no meio de nós”). Jesus incarnado é o pão descido do céu que Se fez pessoa humana para nos mostrar, com palavras e gestos, com o amor até ao extremo, com a entrega na cruz, como devemos viver. O pão descido do céu tornou-Se carne (pessoa) para nos dar Vida. E esse pão (carne) deve ser comido, para se tornar fonte de Vida.

Os Judeus não entenderam as palavras de Jesus. Quando Ele Se apresentou como “pão vivo descido do céu para dar a vida ao Mundo”, entenderam que se arvorava em “mestre de sabedoria” que trazia aos homens palavras sábias, palavras de Deus (tinham dificuldade em aceitar, mas, ao menos, entendiam aonde queria chegar). Porém, Jesus fala em comer a sua carne. São palavras difíceis de entender, se não nos pusermos na ótica eucarística. Por isso, os Judeus não as entendem (quem as entende é a comunidade joânica, que as lê, considerando a prática da celebração eucarística e o seu significado).

Na sequência, Jesus reitera a sua afirmação, desta vez com mais desenvolvimentos: Ele não só dará a comer a sua carne, mas também a beber o seu sangue; e quem os aceitar recebe a Vida. A referência à carne é exprime a realidade de Jesus enquanto ser humano que veio ao nosso encontro para nos mostrar, com as suas palavras e gestos, com o seu estilo de vida e com a sua forma de acolher e cuidar dos mais frágeis, com o seu amor até ao extremo, como devemos viver. A referência ao sangue insere-nos no contexto da paixão de Jesus, contemplando o momento supremo da sua entrega, até à última gota de sangue, por amor. Carne e sangue resumem uma vida de entrega, de doação, de amor até ao extremo. É essa realidade que se manifestou em cada passo da vida de Jesus e, de forma radical, na cruz, que Ele convida a comer e a beber, a interiorizar, a assimilar.

Jesus não fala do seu corpo físico. A sua carne e o seu sangue não se podem comer ou beber materialmente. Pede que os discípulos assimilem a vida de amor, de dom, de entrega, que Ele mostrou na sua pessoa – nos seus gestos, no seu amor, na sua doação – e que teve a expressão mais radical na cruz, quando, por amor, ofereceu totalmente a sua vida, até à última gota de sangue. Para terem Vida, os discípulos de Jesus têm de se alimentar d’Ele, de se nutrir do seu alento vital, de interiorizar as suas atitudes e os seus critérios de vida. Quem assimilar essa Vida e aceitar viver assim – no amor e no dom total da vida, até à morte – terá Vida plena e definitiva. A Eucaristia é o memorial de tudo isto: da vida, da paixão, da morte e da ressurreição de Jesus. Atualiza esta realidade na comunidade cristã e na vida dos crentes. Jesus, que amou até ao extremo, que pôs a vida ao serviço dos homens, e Se deu na cruz, oferece-Se-nos como alimento.

Quem come a carne de Jesus e bebe o seu sangue assimila esta realidade. Compromete-se a viver e a amar como Jesus; e, como Jesus, encontra Vida, que a morte nunca poderá vencer. Por outro lado, quem come a carne de Jesus e bebe o seu sangue, identifica-se com Ele e torna-se um com Ele. Vive em comunhão íntima com Jesus, em total sintonia com Ele.

Mais tarde Jesus, para descrever esta realidade, usará a imagem da videira e dos ramos: o discípulo de Jesus – o que se alimenta da Vida que Jesus oferece – será como um ramo ligado à videira e que dela recebe Vida.

Outro dos efeitos de comer a carne e beber o sangue de Jesus é comprometer-se com o projeto que Ele, por mandato de Deus, concretizou. A Vida que o discípulo recebe de Jesus impele-o a testemunhar, com total dedicação, o desígnio do Pai para o Mundo dos homens.

Por fim, retoma-se o tema do maná. O alimento dado por Deus ao Povo no deserto alimentou fisicamente o Povo em caminho, mas não lhe assegurou a chegada à terra da liberdade. Já o alimento que Jesus oferece será, verdadeiramente, alimento de Vida eterna. É dele que nascerá o novo Povo de Deus, que se alimenta, na eucaristia, com a carne e o sangue de Jesus.

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primeira leitura (Pr 9,1-6) conta-nos a parábola de um banquete preparado pela “senhora Sabedoria”, destinado aos simples e aos que pretendem vencer a insensatez. É o convite a acolher a sabedoria de Deus e a construir a vida, à luz de Deus.

O Livro dos Provérbios contém coleções de ditos, de sentenças, de máximas, de provérbios (“mashal”) onde se cristaliza a reflexão e a experiência (“sabedoria”) de várias gerações de sábios antigos (israelitas ou não). O objetivo é definir uma espécie de ordem do Mundo e da sociedade que, apreendida e aceite pelo indivíduo, o levará à plena integração no meio em que está inserido.

Como cenário de fundo da parábola está a questão das opções de vida. Os sábios de Israel creem que o homem pode escolher, quando se trata de definir os seus horizontes, entre viver de acordo com a sabedoria e viver de acordo com a loucura. Conforme a opção que faça, o homem colherá êxito, realização, felicidade, vida ou, em contrapartida, inêxito, fracasso, desgraça, morte.

No trecho em apreço, a sabedoria é apresentada como dama importante, diligente e ativa, que construiu uma casa perfeita. Essa casa tem “sete colunas”. Como o número sete é, no universo cultural judaico, o número da plenitude, da perfeição, a casa da sabedoria é uma casa onde se pode encontrar a perfeição, a plenitude, a vida, a felicidade. Nela, a “senhora Sabedoria” organiza um banquete. Prepara comida e vinho em abundância e põe a mesa; envia as servas a proclamar, “nos pontos mais altos da cidade”, o convite para o banquete. Para os sábios tradicionais, esta casa seria, provavelmente, a escola onde se ensinava a sabedoria. A comida e o vinho referir-se-iam ao alimento sapiencial aí servido, isto é, às regras práticas ensinadas nas escolas sapienciais, destinadas a dotar os alunos das qualificações de que necessitavam para enfrentar os problemas do quotidiano, de forma a terem êxito nos seus empreendimentos e a serem felizes.

No entanto, os círculos religiosos de Israel ultrapassarão, rapidamente, a perspetiva profana da sabedoria, cultivada pelos sábios tradicionais, e falarão dela como a primeira criação de Deus, que veio habitar Jerusalém e deitou raízes no Povo de Deus, manifestando-se sob a forma concreta da Lei. Quem aceitar viver de acordo com a Lei, é sábio: terá sucesso na vida, será feliz, encontrará a Vida verdadeira.

Os destinatários do convite da “senhora Sabedoria” são os “simples” (“os inexperientes”) e os “insensatos”. Estes últimos, porém, devem previamente estar dispostos a deixar a insensatez e a seguir o caminho da prudência. Os “simples” equivalem aos pobres da literatura bíblica: os pequenos, os humildes, os que não vivem instalados em esquemas de orgulho e de autossuficiência e têm sempre o coração aberto a Deus. Os “insensatos” que querem seguir o caminho da prudência são os que não se conformam com a sua fragilidade e debilidade e estão dispostos a fazer um esforço no sentido de reformular a sua vida. Uns e outros têm o coração aberto ao convite da “sabedoria” e estão dispostos a acolher os seus dons.

As ressonâncias da parábola do “banquete da senhora Sabedoria” chegaram ao Novo Testamento. Jesus contou, Ele próprio, uma parábola sobre um banquete das núpcias de um filho de um rei, para o qual foram convidados os pobres e os marginalizados. É possível que a parábola contada por Jesus tenha sido influenciada pela parábola do “banquete da senhora Sabedoria”. Jesus, aquele a quem a catequese primitiva designa como “sabedoria de Deus”, veio ao encontro dos homens para lhes oferecer o “pão vivo descido do céu”, que dará a Vida eterna.

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segunda leitura (Ef 5,15-20) lembra aos cristãos a sua opção por Cristo. Exorta-os a não adormecerem, a repensarem continuamente as suas opções e compromissos, a não se deixarem tentar pelo caminho da facilidade e do comodismo, a viverem, com entusiasmo empenhado, o seguimento de Cristo, a empenharem-se no testemunho dos valores em que acreditam.

O texto é antecedido pelo fragmento de um antigo hino cristão que convida os crentes a redescobrirem a luz de Cristo: “Desperta, tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo brilhará para ti” (Ef 5,14). Os discípulos não podem instalar-se numa fé morna e acomodada; necessitam de revitalizar, a cada passo do caminho que percorre o compromisso com Cristo.

Na ótica paulina, acordar de novo para a luz, ou viver como “filho da luz”, significa encontrar em Cristo a verdadeira sabedoria. Cristo ensinou-os a viver de uma forma nova, mais livre, mais humana, mais feliz. Ora, depois dessa bela experiência, seria insensato prescindir dos valores que Cristo preconizou e voltar aos valores do homem velho. É certo que os tempos não são favoráveis e não ajudam a que se viva, com coerência, a fé, isso não é razão para optar por caminhos que são beco sem saída. O cristão, mesmo em ambientes difíceis e adversos, mantém-se fiel à verdade, dá testemunho daquilo em que acredita, vive de acordo com as recomendações do Senhor Jesus.

“Não vos embriagueis com vinho, que leva à vida desregrada, mas deixai-vos encher do Espírito” – aconselha Paulo. Já o livro dos Provérbios avisava contra o vinho, que “morde como uma serpente, pica como uma víbora” e leva a pronunciar “palavras incoerentes”. O conselho de Paulo pode, à primeira vista, parecer desfasado neste contexto. Porém, o vinho representa, aqui, todos os valores materiais que seduzem os homens e os levam ao desregramento, à insensatez, à perda de controlo sobre atitudes e comportamentos (inclusive em contextos litúrgicos cristãos; em contrapartida, o Espírito significa a Vida de Deus, a Vida nova que os crentes receberam no dia do Batismo e que deve levá-los a viverem animados por um dinamismo de Vida nova (“como eleitos de Deus, revesti-vos de sentimentos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente”).

Os que vivem animados pelo Espírito devem praticar um culto digno de Deus, “com salmos, hinos e cânticos espirituais” que exprimam a gratidão, o louvor, a ação de graças. Uma comunidade que se junta à volta de Deus para rezar é uma comunidade vigilante, fraterna, piedosa, ciente dos dons de Deus, que caminha unida na descoberta dos planos de Deus para os homens e para o Mundo.

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Convictos da força da “Palavra” do “Pão descido do céu”, que nos garante “Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue permanece em mim e Eu nele”, acedamos ao sábio apelo do Salmista: “Saboreai e vede como o Senhor é bom!”

2024.08.19 – Louro de Carvalho

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