A liturgia do 20.º domingo do Tempo
Comum no Ano B insiste num tema recorrente nos últimos domingos: Deus acompanha
cada passo dos seus filhos e filhas e não cessa, na caminhada, de lhes oferecer
o alimento que dá a Vida eterna. E os homens devem optar por acolher esse dom.
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No Evangelho (Jo 6,51-58), Jesus
reitera o objetivo da sua missão: oferecer aos homens o alimento da Vida
eterna. Para receber essa Vida, os discípulos são convidados a “comer a carne”
e a “beber o sangue” de Jesus. E só o fazem, se a aderirem à pessoa de Jesus,
assimilando o seu projeto, interiorizando as suas atitudes e critérios de vida,
vivendo d’Ele. Na celebração da eucaristia, a comunidade de Jesus senta-se com
Ele à mesa e recebe d’Ele o alimento que dá Vida.
No seu
comentário dominical, o Santo Padre sublinhou a simplicidade de Jesus a afirmar:
“Eu sou o pão vivo que desceu do céu.” Ante a multidão, o Filho de Deus
identifica-se com o alimento mais comum e quotidiano, o pão. Entre os que
ouvem, alguns discutem como pode Ele dar-nos a comer a sua própria carne.
Também nós nos interrogamos, mas com admiração e gratidão diante do milagre da
Eucaristia, duas atitudes para refletir e cultivar.
Maravilhosamente,
as palavras de Jesus surpreendem-nos. Afinal, Ele surpreende sempre. O pão do
céu é o presente que supera todas as expectativas. Os que não compreendem Jesus
ficam desconfiados: parece impossível, mesmo desumano, comer a carne de outra
pessoa. Porém, carne e sangue são a humanidade do Salvador, a sua vida
oferecida como alimento para a nossa vida.
E a gratidão
leva-nos a reconhecer Jesus onde Ele se faz presente para nós e connosco. O pão
é feito para nós: “Quem come a minha carne permanece em mim e Eu nele”. Cristo,
verdadeiro homem, sabe que devemos comer para viver, mas que isso não basta.
Após ter multiplicado os pães terrenos, prepara um dom maior: Ele torna-Se
verdadeiro alimento e bebida. Por isso, a nossa atitude deve ser de enorme
gratidão.
O pão celeste, que vem do Pai, é
o Filho que Se fez carne por nós. Este alimento é mais do que necessário para
nós, porque sacia a fome de esperança, de verdade, de salvação, que todos
sentimos, não no estômago, mas no coração. A Eucaristia é necessária para todos
nós. Ora, Jesus cuida da maior necessidade: salva-nos, alimentando a nossa vida
com a sua, e isto para sempre. E, graças a Ele, podemos viver em comunhão com Deus
e uns com os outros. O pão vivo não é, portanto, algo mágico, que resolve,
repentinamente, todos os problemas, mas é o Corpo de Cristo, que dá esperança
aos pobres e supera a arrogância de quem se empanturra com os bens materiais.
Por isso, Francisco exorta a que se interrogue cada um/a se tem fome e sede de
salvação, não só para si, mas para todos/as os/as irmãos/ãs. De facto, quando
recebemos a Eucaristia, o milagre da misericórdia, devemos ficar maravilhados
com o Corpo do Senhor, que morreu e ressuscitou por nós. É bom pedirmos a
Maria, Senhora do pão, que ajude a acolher o dom no sinal do pão.
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Depois de Se declarar “o pão vivo
que desceu do céu”, para dar aos homens a Vida, Jesus identifica esse pão com a
sua carne. O termo “carne” (em grego: “sárx”) designa a pessoa na sua condição
terrena: o ser humano frágil e precário, que vive com a morte física no
horizonte. Jesus tornou-Se carne, quando vestiu a fragilidade e a precariedade
dos humanos e veio habitar com os homens (“a Palavra fez-se carne e veio habitar
no meio de nós”). Jesus incarnado é o pão descido do céu que Se fez pessoa
humana para nos mostrar, com palavras e gestos, com o amor até ao extremo, com
a entrega na cruz, como devemos viver. O pão descido do céu tornou-Se carne (pessoa)
para nos dar Vida. E esse pão (carne) deve ser comido, para se tornar fonte de
Vida.
Os Judeus não entenderam as palavras
de Jesus. Quando Ele Se apresentou como “pão vivo descido do céu para dar a
vida ao Mundo”, entenderam que se arvorava em “mestre de sabedoria” que trazia
aos homens palavras sábias, palavras de Deus (tinham dificuldade em aceitar,
mas, ao menos, entendiam aonde queria chegar). Porém, Jesus fala em comer a sua
carne. São palavras difíceis de entender, se não nos pusermos na ótica
eucarística. Por isso, os Judeus não as entendem (quem as entende é a comunidade
joânica, que as lê, considerando a prática da celebração eucarística e o seu
significado).
Na sequência, Jesus reitera a sua
afirmação, desta vez com mais desenvolvimentos: Ele não só dará a comer a sua
carne, mas também a beber o seu sangue; e quem os aceitar recebe a Vida. A
referência à carne é exprime a realidade de Jesus enquanto ser humano que veio
ao nosso encontro para nos mostrar, com as suas palavras e gestos, com o seu
estilo de vida e com a sua forma de acolher e cuidar dos mais frágeis, com o
seu amor até ao extremo, como devemos viver. A referência ao sangue insere-nos
no contexto da paixão de Jesus, contemplando o momento supremo da sua entrega,
até à última gota de sangue, por amor. Carne e sangue resumem uma vida de
entrega, de doação, de amor até ao extremo. É essa realidade que se manifestou
em cada passo da vida de Jesus e, de forma radical, na cruz, que Ele convida a comer
e a beber, a interiorizar, a assimilar.
Jesus não fala do seu corpo físico.
A sua carne e o seu sangue não se podem comer ou beber materialmente. Pede que
os discípulos assimilem a vida de amor, de dom, de entrega, que Ele mostrou na sua
pessoa – nos seus gestos, no seu amor, na sua doação – e que teve a expressão
mais radical na cruz, quando, por amor, ofereceu totalmente a sua vida, até à
última gota de sangue. Para terem Vida, os discípulos de Jesus têm de se
alimentar d’Ele, de se nutrir do seu alento vital, de interiorizar as suas
atitudes e os seus critérios de vida. Quem assimilar essa Vida e aceitar viver
assim – no amor e no dom total da vida, até à morte – terá Vida plena e
definitiva. A Eucaristia é o memorial de tudo isto: da vida, da paixão, da
morte e da ressurreição de Jesus. Atualiza esta realidade na comunidade cristã
e na vida dos crentes. Jesus, que amou até ao extremo, que pôs a vida ao
serviço dos homens, e Se deu na cruz, oferece-Se-nos como alimento.
Quem come a carne de Jesus e bebe o
seu sangue assimila esta realidade. Compromete-se a viver e a amar como Jesus;
e, como Jesus, encontra Vida, que a morte nunca poderá vencer. Por outro lado,
quem come a carne de Jesus e bebe o seu sangue, identifica-se com Ele e
torna-se um com Ele. Vive em comunhão íntima com Jesus, em total sintonia com
Ele.
Mais tarde Jesus, para descrever
esta realidade, usará a imagem da videira e dos ramos: o discípulo de Jesus – o
que se alimenta da Vida que Jesus oferece – será como um ramo ligado à videira
e que dela recebe Vida.
Outro dos efeitos de comer a carne e
beber o sangue de Jesus é comprometer-se com o projeto que Ele, por mandato de
Deus, concretizou. A Vida que o discípulo recebe de Jesus impele-o a
testemunhar, com total dedicação, o desígnio do Pai para o Mundo dos homens.
Por fim, retoma-se o tema do maná. O
alimento dado por Deus ao Povo no deserto alimentou fisicamente o Povo em
caminho, mas não lhe assegurou a chegada à terra da liberdade. Já o alimento
que Jesus oferece será, verdadeiramente, alimento de Vida eterna. É dele que
nascerá o novo Povo de Deus, que se alimenta, na eucaristia, com a carne e o
sangue de Jesus.
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A primeira leitura (Pr 9,1-6) conta-nos a parábola de um banquete preparado pela
“senhora Sabedoria”, destinado aos simples e aos que pretendem vencer a
insensatez. É o convite a acolher a sabedoria de Deus e a construir a vida, à
luz de Deus.
O Livro dos Provérbios contém coleções de ditos, de sentenças, de
máximas, de provérbios (“mashal”) onde se cristaliza a reflexão e a experiência
(“sabedoria”) de várias gerações de sábios antigos (israelitas ou não). O
objetivo é definir uma espécie de ordem do Mundo e da sociedade que, apreendida
e aceite pelo indivíduo, o levará à plena integração no meio em que está
inserido.
Como cenário de fundo da parábola
está a questão das opções de vida. Os sábios de Israel creem que o homem pode
escolher, quando se trata de definir os seus horizontes, entre viver de acordo
com a sabedoria e viver de acordo com a loucura. Conforme a opção que faça, o
homem colherá êxito, realização, felicidade, vida ou, em contrapartida,
inêxito, fracasso, desgraça, morte.
No trecho em apreço, a sabedoria é
apresentada como dama importante, diligente e ativa, que construiu uma casa perfeita.
Essa casa tem “sete colunas”. Como o número sete é, no universo cultural
judaico, o número da plenitude, da perfeição, a casa da sabedoria é uma casa
onde se pode encontrar a perfeição, a plenitude, a vida, a felicidade. Nela, a
“senhora Sabedoria” organiza um banquete. Prepara comida e vinho em abundância
e põe a mesa; envia as servas a proclamar, “nos pontos mais altos da cidade”, o
convite para o banquete. Para os sábios tradicionais, esta casa seria,
provavelmente, a escola onde se ensinava a sabedoria. A comida e o vinho
referir-se-iam ao alimento sapiencial aí servido, isto é, às regras práticas
ensinadas nas escolas sapienciais, destinadas a dotar os alunos das
qualificações de que necessitavam para enfrentar os problemas do quotidiano, de
forma a terem êxito nos seus empreendimentos e a serem felizes.
No entanto, os círculos religiosos
de Israel ultrapassarão, rapidamente, a perspetiva profana da sabedoria,
cultivada pelos sábios tradicionais, e falarão dela como a primeira criação de
Deus, que veio habitar Jerusalém e deitou raízes no Povo de Deus, manifestando-se
sob a forma concreta da Lei. Quem aceitar viver de acordo com a Lei, é sábio:
terá sucesso na vida, será feliz, encontrará a Vida verdadeira.
Os destinatários do convite da
“senhora Sabedoria” são os “simples” (“os inexperientes”) e os “insensatos”.
Estes últimos, porém, devem previamente estar dispostos a deixar a insensatez e
a seguir o caminho da prudência. Os “simples” equivalem aos pobres da
literatura bíblica: os pequenos, os humildes, os que não vivem instalados em
esquemas de orgulho e de autossuficiência e têm sempre o coração aberto a Deus.
Os “insensatos” que querem seguir o caminho da prudência são os que não se
conformam com a sua fragilidade e debilidade e estão dispostos a fazer um
esforço no sentido de reformular a sua vida. Uns e outros têm o coração aberto
ao convite da “sabedoria” e estão dispostos a acolher os seus dons.
As ressonâncias da parábola do
“banquete da senhora Sabedoria” chegaram ao Novo Testamento. Jesus contou, Ele
próprio, uma parábola sobre um banquete das núpcias de um filho de um rei, para
o qual foram convidados os pobres e os marginalizados. É possível que a
parábola contada por Jesus tenha sido influenciada pela parábola do “banquete
da senhora Sabedoria”. Jesus, aquele a quem a catequese primitiva designa como
“sabedoria de Deus”, veio ao encontro dos homens para lhes oferecer o “pão vivo
descido do céu”, que dará a Vida eterna.
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A segunda leitura (Ef 5,15-20) lembra aos cristãos a
sua opção por Cristo. Exorta-os a não adormecerem, a repensarem continuamente
as suas opções e compromissos, a não se deixarem tentar pelo caminho da
facilidade e do comodismo, a viverem, com entusiasmo empenhado, o seguimento de
Cristo, a empenharem-se no testemunho dos valores em que acreditam.
O texto é antecedido pelo fragmento
de um antigo hino cristão que convida os crentes a redescobrirem a luz de
Cristo: “Desperta, tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo
brilhará para ti” (Ef 5,14). Os
discípulos não podem instalar-se numa fé morna e acomodada; necessitam de revitalizar,
a cada passo do caminho que percorre o compromisso com Cristo.
Na ótica paulina, acordar de novo
para a luz, ou viver como “filho da luz”, significa encontrar em Cristo a verdadeira
sabedoria. Cristo ensinou-os a viver de uma forma nova, mais livre, mais
humana, mais feliz. Ora, depois dessa bela experiência, seria insensato
prescindir dos valores que Cristo preconizou e voltar aos valores do homem
velho. É certo que os tempos não são favoráveis e não ajudam a que se viva, com
coerência, a fé, isso não é razão para optar por caminhos que são beco sem
saída. O cristão, mesmo em ambientes difíceis e adversos, mantém-se fiel à
verdade, dá testemunho daquilo em que acredita, vive de acordo com as
recomendações do Senhor Jesus.
“Não vos embriagueis com vinho, que
leva à vida desregrada, mas deixai-vos encher do Espírito” – aconselha Paulo. Já
o livro dos Provérbios avisava contra o vinho, que “morde como uma serpente,
pica como uma víbora” e leva a pronunciar “palavras incoerentes”. O conselho de
Paulo pode, à primeira vista, parecer desfasado neste contexto. Porém, o vinho
representa, aqui, todos os valores materiais que seduzem os homens e os levam
ao desregramento, à insensatez, à perda de controlo sobre atitudes e
comportamentos (inclusive em contextos litúrgicos cristãos; em contrapartida, o
Espírito significa a Vida de Deus, a Vida nova que os crentes receberam no dia
do Batismo e que deve levá-los a viverem animados por um dinamismo de Vida nova
(“como eleitos de Deus, revesti-vos de sentimentos de misericórdia, de bondade,
de humildade, de mansidão, de paciência, suportando-vos uns aos outros e
perdoando-vos mutuamente”).
Os que vivem animados pelo Espírito
devem praticar um culto digno de Deus, “com salmos, hinos e cânticos
espirituais” que exprimam a gratidão, o louvor, a ação de graças. Uma
comunidade que se junta à volta de Deus para rezar é uma comunidade vigilante,
fraterna, piedosa, ciente dos dons de Deus, que caminha unida na descoberta dos
planos de Deus para os homens e para o Mundo.
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Convictos da força da “Palavra” do “Pão
descido do céu”, que nos garante “Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue permanece
em mim e Eu nele”, acedamos ao sábio apelo do Salmista: “Saboreai e vede como o
Senhor é bom!”
2024.08.19 – Louro de Carvalho
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