Apesar das nossas más disposições e
dos frequentes murmúrios contra Deus e contra o seu Cristo, somos alimentados, carinhosamente,
pelos abundantes e sublimes manjares da era messiânica, em grau infinitamente superior
ao povo de Israel, como nos garante a liturgia do 18.º domingo do Tempo Comum
no Ano B.
O caminho do nosso quotidiano é
tecido, muitas vezes, de privações e de carências que nos deixam o travo da
insatisfação e do desencanto. Tudo nos parece precário e incapaz de satisfazer a
nossa fome de vida. O alimento que tomamos cria-nos mais fome e a bebida que
bebemos gera mais sede. Porém, Deus dispõe de recursos, que saciarão a nossa fome
de Vida verdadeira e eterna. Deus sempre fará tudo para saciar a nossa fome de
Vida, preparando e distribuindo por nós o pão que nos alimenta na caminhada
terrena e que “dura até à Vida eterna”.
A primeira leitura (Ex
16,2-4.12-15) mostra-nos como Deus distribuiu ao Povo o maná, o alimento
diário de que o Povo necessitava para enfrentar as dificuldades da caminhada
entre a opressão e a liberdade. Esse pão, além de satisfazer a fome física do
Povo e de lhe permitir a sobrevivência no deserto, ajudou-o a a amadurecer, a
superar mentalidades estreitas e egoístas, a encarar a vida com fé e confiança
em Deus.
A secção de Ex 15,22-18,27
desenvolve um dos grandes temas do Pentateuco: a marcha pelo deserto dos Hebreus
libertos da escravidão no Egito. É a primeira etapa da marcha, que vai da passagem
do mar ao Sinai e ao longo da qual a murmuração do Povo contra Moisés e contra
Deus surge em três episódios. O tema desenvolve-se em esquema semelhante: ante as
dificuldades, o Povo murmura, revolta-se contra Moisés e acusa Deus pelo
desconforto da caminhada; Moisés intervém e intercede junto de Deus; e Deus
concede ao Povo os bens de que este precisa. Os relatos apresentam-se de forma
dramática, num crescendo até ao seu desfecho. A crise resolve-se com a
intervenção prodigiosa de Deus em benefício do Povo.
Estes relatos terão por base as dificuldades
concretas sentidas pelos Hebreus no caminho pelo deserto para a Terra
Prometida, que ficaram na memória coletiva e que foram tomadas pelos teólogos
de Israel com objetivo catequético. Entrelemos que a preocupação presente nestes
relatos é pôr o Povo de sobreaviso contra a tentação da procura de refúgio e de
segurança longe de Javé.
O episódio em referência nesta dominga,
no qual Deus oferece ao Povo as codornizes e o maná ocorre no deserto de Sin, entre
Elim e o Sinai, no 15.º dia do segundo mês após a saída da terra do Egipto. Os
estudiosos identificam este espaço geográfico com o território que vai de
Kadesh Barnea para Ocidente, nomeadamente para Noroeste, onde está o Wadi El
Arish.
A saga das codornizes baseia-se num
fenómeno observável na Península do Sinai: a migração em massa de codornizes
que, depois de atravessarem o mar, chegam ao Sinai cansadas da viagem, pousam
junto das tendas dos beduínos e deixam-se apanhar. A saga do maná tem por base
a secreção de uma árvore (“tamarix mannifera”) de certas zonas do Sinai que,
após ser picada por um inseto, segrega uma substância granulosa e aguada,
branca e de sabor a mel, que se coagula; os beduínos recolhem, ainda hoje, essa
substância (chamada “man”), derretem-na ao calor do sol e passam-na sobre o
pão. E é com estes elementos – que o Povo conheceu e que o impressionaram, na
marcha pelo deserto – que os catequistas bíblicos plasmam a catequese que nos
transmitem nesta passagem veterotestamentária.
Após algumas semanas de caminhada
pelo deserto, os Hebreus, cansados das privações e das carências que vêm
enfrentando, reagem, murmurando “contra Moisés e contra Aarão”. Porém, a
crítica, subtilmente, atinge Deus, o responsável último pela saída da
escravidão do Egito.
Sentiam saudades do Egito onde,
apesar da escravidão, sentados “ao pé de panelas de carne”, comiam “pão com
fartura”. É o “materialismo” com as limitações e as deficiências próprias de um
grupo humano com mentalidade de escravo, sem maturidade, agarrado à mesquinhez,
ao egoísmo, ao comodismo, que prefere a escravidão à liberdade. E trata-se de
um Povo que, apesar de tudo o que Javé fez em seu benefício, não aprendeu a
confiar no seu Deus, a responder, sem hesitações, à sua proposta, a segui-Lo
incondicionalmente no caminho da fé. É quadro recorrente ao longo da História
do Povo de Deus.
A resposta de Deus à murmuração é
“fazer chover pão do céu” e dar ao Povo carne em abundância. O aparecimento do
“maná” (do hebraico “man-hú”, que significa “o que é isto?”) e das codornizes
no caminho feito pelos Hebreus pode explicar-se por fatores naturais. Porém, o
objetivo catequético é dar catequese sobre a solicitude de Deus, presente em
todos os momentos do caminho que o Povo percorre. Aqueles escravos libertados
do Egito foram fazendo, enquanto caminhavam da terra da escravidão para a terra
da liberdade, intensa experiência de Deus. No deserto, espaço de carência e de
privação, cada grama de comida e cada gota de água são milagre de Deus. Os que
atravessaram o deserto viram no maná, nas codornizes e noutros dons que
cobriram as suas necessidades, sinais do amor previdente de Deus, do seu
cuidado, da sua solicitude. Nessa experiência, Israel descobriu o Deus do
encontro e da comunhão e aprendeu a confiar n’Ele, a não duvidar do seu amor e
fidelidade.
Esta experiência ajudará o Povo
superar a mentalidade estreita, egoísta, materialista, do “escravo” que avança
de olhos postos no chão; abrir-lhe-á horizontes mais vastos e tornando-o, mais
adulto, mais consciente, mais responsável e mais santo. Israel aprende a
entregar-se nas mãos de Deus.
Dizer-se que Deus só dava a
quantidade necessária para cada dia é a lição do desprendimento e da confiança
em Deus. O Povo aprende a não acumular bens, a não viver para o ter, a
libertar-se da ganância e do desejo de possuir, a não viver angustiado com o
amanhã; e aprende a confiar em Deus, a entregar-se, serenamente, nas suas mãos,
vendo-O como a fonte de vida. Além disso, o maná e as codornizes, contra o entendimento
dos Judeus, antecipam Cristo como nosso alimento.
***
O Evangelho
(Jo 6,24-35) garante
que Jesus é o “pão de Deus que desce do céu para dar a Vida ao Mundo”. É Nele e
por Ele que Deus responde à fome dos homens e lhes dá a Vida em plenitude. Para
que esse pão nos alcance, nos alimente e nos transforme, temos de crer em
Jesus.
Após a partilha dos pães e
dos peixes Jesus, “sabendo que estavam prestes a vir apoderar-se dele para o
fazerem rei, retirou-se sozinho para o monte”. Demorou-se lá em oração, pois no
final de cada dia, sentia necessidade de conversar longamente com o Pai. E os
discípulos meteram-se no barco dispostos a voltar a Cafarnaum. Navegaram
sozinhos durante algum tempo, até que Jesus veio ter com eles, caminhando sobre
o mar. Tendo Jesus entrado no barco, logo chegaram a Cafarnaum, sítio do
episódio em referência, no dia subsequente aos factos narrados antes.
Passada a noite, a multidão
que tinha sido agraciada com os pães e com os peixes, não encontrando Jesus e
os discípulos e conjeturando que tinham voltado a Cafarnaum, dirigiu-se para
lá. Jesus estava na sinagoga, quando a multidão veio ao seu encontro. Os
acontecimentos do dia anterior foram tema de conversa; e Jesus, sentindo que
era necessário deixar tudo bem claro, teve com aquela gente longa conversa. O
que lhe disse nesse dia, na sinagoga de Cafarnaum, ficou conhecido como o
“discurso do pão da vida” (cf Jo 6,22-59).
A multidão, entusiasmada,
quis, a todo o custo, reencontrar Jesus e ficar com Ele. Parecia que a
atividade de Jesus está a dar frutos. Porém, Jesus percebe que muitos estão ali
por motivos errados. O gesto de repartir pela multidão os pães e os peixes
lançou-os num equívoco; e Jesus está consciente de que é preciso desfazer,
quanto antes, o mal-entendido. Sem responder à pergunta inicial (“Mestre, quando
chegaste aqui?”), Jesus aborda a questão que o inquieta: “Em verdade, em
verdade vos digo: vós procurais-Me, não porque vistes milagres, mas porque
comestes dos pães e ficastes saciados”. Como no deserto, Jesus tem, agora, de
resistir à tentação de estribar o Reino, predominantemente, na produção do pão
material, na realização do milagre espetacular e na posse de qualquer reinado de
feição terrestre.
Paralelamente, há que denunciar
a procura daquela gente como procura interesseira, que vai em sentido contrário
à mensagem que Jesus procurou passar-lhes, quando lhes ofereceu comida em
abundância. A divisão dos pães e dos peixes pretendeu ser, da parte de Jesus,
lição de amor, de partilha, de generosidade e de serviço; mas eles não foram
sensíveis ao significado do sinal de Jesus. Ficaram-se nas aparências e só
registaram que Jesus podia dar-lhes, gratuita e facilmente, pão em abundância. É
o materialismo grosseiro, não a vontade de abraçar o Reino de Deus.
Identificado o problema,
Jesus aponta a solução: “Trabalhai, não tanto pela comida que se perde, mas
pelo alimento que dura até à Vida eterna e que o Filho do homem vos dará.”
Aquela gente deve esforçar-se por conseguir, não só o alimento que mata a fome
física, mas sobretudo o alimento que sacia a fome profunda de Vida que todo o
homem sente e a que Jesus da resposta. Viver agarrado a valores rasteiros e
efémeros não é a vocação do homem. O que dá sentido à vida é o pão imperecível
que Jesus traz e que é preciso acolher para ter Vida verdadeira.
Os interlocutores de Jesus,
parecendo interessados, querem mais esclarecimentos sobre o que é preciso fazer
para ter acesso a esse pão. Aparentemente, pensam na observância de mandamentos
ou de práticas religiosas definidas na Lei judaica (“obras”). Todavia, Jesus
faz outra proposta: é preciso “crer n’Aquele que Deus enviou” e acolher o projeto
do Reino de Deus. No dia anterior, quando Jesus dividiu e distribuiu o pão e os
peixes, as pessoas não aprenderam a lição do amor, da partilha, do serviço; não
ligaram aos valores do Reino o que Jesus fez. Limitaram-se a correr atrás do
profeta milagreiro que distribuía pão e peixes gratuitamente e em abundância. Se
querem acolher o pão de Jesus, devem mudar a ótica das coisas e levar a sério
as palavras de Jesus; devem abraçar os valores do Reino, dispor-se a partilhar,
disponibilizar-se para servirem os irmãos com alma “de menino”, com humildade e
generosidade.
Contudo, os interlocutores de
Jesus não estão convictos de que este é o caminho que leva à Vida e, questionando
a autoridade de Jesus para apresentar tal proposta, desafiam-No a provar a sua
autoridade com um gesto espetacular, semelhante ao que Moisés fez ao
proporcionar aos Israelitas o maná, não só para cinco mil pessoas, mas para
todo o Povo e de forma continuada. Buscam o portentoso, o espetacular, o que
deslumbra, e não a Vida que se manifesta em gestos simples e quotidianos. Em
resposta, Jesus põe a nu os limites estreitos em que aquela gente quer encerrar
a questão. O maná foi um dom de Deus para saciar a fome material do Povo, mas não
é o pão que sacia a fome de Vida eterna do homem. Só Deus dá aos homens, a
todos os homens, de forma permanente, a Vida eterna; e esse dom do Pai não vem
por Moisés, mas por Jesus.
Assim, para ter acesso ao pão
que proporciona Vida eterna, o importante não é testemunhar gestos
espetaculares, que deslumbram, mas que não mudam nada; o decisivo, é acolher a
proposta de Jesus e vivê-la nos gestos simples do quotidiano.
A última frase do trecho em apreço
(“Eu sou o pão da vida: quem vem a Mim nunca mais terá fome, quem acredita em
Mim nunca mais terá sede”) identifica Jesus, já não com o portador do pão, mas
com o próprio pão que Deus oferece ao Povo para lhe saciar a fome e a sede de
Vida. É necessário ir ao encontro de Jesus, acolher o seu desígnio, assimilar
os seus valores, interiorizar as suas palavras, assumir o seu estilo de vida,
fazer da própria vida (como Jesus fez da sua) dom total de amor aos irmãos.
Seguindo Jesus, acolhendo-O no coração e deixando que Ele nos transforme em
gestos concretos de amor, de partilha, de serviço, encontraremos a qualidade de
vida que nos leva à realização plena, à Vida eterna.
***
A segunda leitura (Ef 4,17.20-24) sustenta que a
adesão a Jesus implica deixar de ser homem velho e passar a homem novo. Quem aceita
Jesus como o pão que dá vida e adere a Ele, passa a ser outro. O encontro com
Cristo tem de significar, para o homem, mudança radical, jeito totalmente
diferente de se situar face a Deus, face aos irmãos, face a si próprio e face
ao Mundo.
Os que optaram por Jesus integram o
“Corpo de Cristo”, o que implica viver de forma diferente, não podendo os
cristãos “agir como os pagãos, que vivem na futilidade dos seus pensamentos”.
Paulo usa duas expressões opostas
para definir a realidade do homem antes do encontro com Cristo e depois do
encontro com Cristo. O homem que não aderiu a Cristo é o “homem velho”, cuja
vida é marcada pela mediocridade, pela futilidade, pela corrupção, pela
escravidão aos “desejos enganadores”. A vida do “homem velho” é uma vida
marcada pelo pecado; e o pecado, embotando a sensibilidade e o entendimento,
não deixa o homem ser tocado pelo que é belo, justo e verdadeiro. Em contraste,
o homem que encontrou Cristo e acolheu o Evangelho recebe nova luz, que lhe
permite ver e abraçar os valores verdadeiros. É o Homem novo, regenerado por
Cristo, que vive animado pelo Espírito e adota uma nova forma de pensar e de
proceder. O homem novo faz obras de verdade, de justiça e de santidade.
A adesão a Cristo pelo Batismo é o
momento decisivo da transformação do homem velho em homem novo. O próprio rito sugere
a transformação e a ressurreição do homem para a vida nova, a vida em Cristo:
quando imerge na água, morre para a vida antiga de pecado; e, quando emerge da
água, renasce como homem novo, purificado do egoísmo, do orgulho, da autossuficiência.
A partir de então, vive para Cristo e por Cristo, devendo ser a vida coerente
com a nova situação. Todavia, após haver optado por Cristo, o homem continua
marcado pela condição de debilidade e de fragilidade, que o leva a sentir, por
vezes, a tentação de regressar ao homem velho do egoísmo, do orgulho, do
pecado.
O crente, animado pelo Espírito é,
pois, chamado a renovar, cada dia, a adesão a Cristo e a construir a sua
existência de forma coerente com os compromissos que assumiu no Batismo. O
homem novo não é realidade adquirida de uma vez por todas, mas realidade
continuamente a fazer-se, que exige contínua conversão e constante renovação.
***
O Senhor deu-lhes o pão do céu.
“Nós ouvimos e aprendemos, / os
nossos pais nos contaram / os louvores do Senhor e o seu poder / e as
maravilhas que Ele realizou.
Deus ordens às nuvens do alto / e
abriu as portas do céu; / para alimento fez chover o maná, / deu-lhes o pão do
céu.
O homem comeu o pão dos fortes! / Mandou-lhes comida
com abundância / e introduziu-os na sua terra santa, / na montanha que a sua
direita conquistou.” (Sl 78)
2024.08.04 – Louro de Carvalho
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